Voltar | ||
A
CONSTRUÇÃO DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA: FORMAÇÃO
E APRISIONAMENTO DA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL
Marta Passos Pinheiro - FAE-UFMG A construção da infância como uma fase específica da vida, distinta da fase adulta, pode ser melhor observada a partir da primeira metade do século XVIII, dentro do modelo familista burguês. Para ajudar a família burguesa no processo de educação das crianças, afastando-as do mundo dos adultos, surgiu a escola. Cunha ressalta que a escola, reformulada no século XVII, surgiu, como agência de apoio à família (2003. p.447). Comênio, um pensador da época, defendia a implantação de escolas usando como argumento a falta de tempo e de competência dos pais para educar os filhos. ... raramente os pais estão preparados para educar bem os filhos, ou raramente dispõem de tempo para isso, daí se segue como conseqüência que deve haver pessoas que façam apenas isso como profissão e desse modo sirvam a toda a comunidade . (apud Cunha, 2003. p.448) A escola moderna proposta por Comênio é inserida no processo capitalista de divisão social do trabalho. Ela é definida como o lugar especializado em um novo seviço da modernidade: a educação das crianças. Com efeito, se um pai de família não tem disponibilidade para fazer tudo o que a administração dos negócios domésticos exige, mas se serve de vários empregados, porque não há de fazer o mesmo no nosso caso? Na verdade, quando ele tem necessidade de farinha, dirige-se ao moleiro; quando tem necessidade de carne, ao carniceiro; quando tem necessidade de bebidas, ao taberneiro; quando tem necessidade de um fato, ao alfaiate; (...) porque não havendo de ter escolas para a juventude? (apud Cunha, 2003. p.448) Para Cunha, Comênio estava à frente de seu tempo, já que naquela época o sistema da aprendizagem cotidiana, que mantinha a criança junto dos mais velhos, era suficiente para transmitir a maioria das técnicas e dos valores relacionados à vida profissional (2003. p.449). Porém, apesar da educação das crianças ser responsabilidade da família, podemos observar no discurso de Comênio que essa responsabilidade deveria ser dividida com a escola. Aos poucos, segundo Ariès, a escola foi se constituindo como uma espécie de quarentena e a escolarização como um processo de enclausuramento: …a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização. (1981. p.11) Enclausurada na escola, a introdução da
criança no mundo dos adultos é feita aos poucos, e de modo
selecionado. Para isso, a pedagogia, novidade que estava em ascensão,
utiliza como um de seus instrumentos, a partir do século XVIII,
a literatura infantil. Esse novo gênero literário contribuiu
para a formação moral das crianças e para a definição
de um determinado tipo de infância, a infância burguesa, que
passou a ser naturalizado como o único existente, o modelo considerado
ideal. as múltiplas vivências da infância e seu processo de aprendizagem para a vida adulta deram-se historicamente a partir de seu pertencimento sociorracial e de gênero. Assim é que, por exemplo, a criança escrava exercia seu aprendizado para a vida adulta através do trabalho, iniciado já aos seis, sete anos de idade. O menino branco de elite tinha sua formação nos colégios, onde adquiria sua instrução intelectual, ao mesmo tempo que se preparava para o exercício do mando. Já as meninas brancas de elite tinham um aprendizado mais restrito, voltado para a aquisição de saberes tidos como “femininos”. (2003. p.14) As diversas vivências da infância são
definidas pela inserção social, por pertencimentos raciais
e de gênero (Gouvêa, 2003. p.14). A pesquisadora ainda destaca
que a inserção social continua definindo a vivência
da infância. Crianças da classe média têm na
escola o seu espaço “natural” de aprendizagem e preparação
para a vida adulta (p.16). Já as crianças de camadas populares
estabelecem uma relação diferenciada com a escola: a escolarização
se dará num período de menor duração e a entrada
nas responsabilidades do mundo adulto ocorrerá num período
anterior (p.16). A maioria das escolas primárias permanece fiel ao velho hábito da simultaneidade do ensino. O jovem operário que obtém o certificado de conclusão do primeiro grau e não passa por uma escola técnica ou um centro de aprendizagem entra diretamente para o mundo do trabalho, que continua a ignorar a distinção escolar das idades. E aí ele pode escolher seus camaradas numa faixa de idade mais extensa do que a faixa reduzida da classe do colégio. O fim da infância, a adolescência e o início da maturidade não se opõem como na sociedade burguesa, condicionada pela prática dos ensinos secundário e superior. (Ariès, 1981. p.177) A separação dos alunos, por idade, em classes
escolares contribuiu para a definição da segunda infância
e da adolescência. Quanto menor for a divisão em classes,
menor será a divisão dos alunos. Em um lugar em que só
exista o ensino primário, como definir (separar) a segunda infância
da adolescência? Isso nos leva a refletir sobre o papel da escola
na definição e separação de determinadas fases
da vida, como a infância e a adolescência. A construção da imagem do jovem ou do adolescente parece ter sido o passo seguinte, prosseguindo a segmentação com especificações à esquerda e à direita, dando concretude e visibilidade tanto a faixas etárias anteriores à idade escolar, quanto seccionando os anos finais da adolescência em novas categorias e subcategorias. O resultado é uma visão cada vez mais nítida dos indivíduos e dos segmentos populacionais que, recobertos por tais categorias, tornam-se mais conhecidos e, conseqüentemente, mais acessíveis, controláveis, manipuláveis. (Lajolo, 2001. p.26) A construção de categorias, referentes
às fases da vida, permite um maior controle dos indivíduos.
Enquadrados nelas, os indivíduos devem apresentar comportamentos,
sentimentos, gostos e hábitos compatíveis com os que foram
definidos como determinantes da categoria a qual fazem parte. Como construções
sociais, essas definições são instáveis, mudam
com o tempo.
Segundo Ariès, esse modelo surgido na Alemanha wagneriana penetrou mais tarde, em torno de 1900, na França. A “juventude”, que então era a adolescência, iria tornar-se um tema literário, e uma preocupação dos moralistas e dos políticos (1981. p.46). Após a Primeira Guerra Mundial, em que os combatentes da frente de batalha se opuseram em massa às velhas gerações da retaguarda (Ariès, 1981. p.47), o sentimento (consciência) da juventude se consolidou. Daí em diante, a adolescência se expandiria, empurrando a infância para trás e a maturidade para a frente. Daí em diante, o casamento, que não era mais um “estabelecimento”, não mais a interromperia: o adolescente-casado é um dos tipos mais específicos de nossa época: ele lhe propõe seus valores, seus apetites e seus costumes. Assim, passamos de uma época sem adolescência a uma época em que a adolescência é a idade favorita. Deseja-se chegar a ela cedo e nela permanecer por muito tempo. (Ariès, 1981. p.47) Podemos observar que a valorização da força
física do jovem contribuiu para a consolidação da
consciência da adolescência. A adolescência foi construída
como exclusividade masculina e ela aparece como sinônimo de juventude. No plano teórico, os estudantes de 1968 polemizaram
duramente contra as concepções sociológicas da revolta
enquanto revolta juvenil, mas na prática e na imaginação
privilegiaram a figura do jovem andrógino em versão masculina,
rebelde à ordem existente e portador do futuro, com fé numa
igualdade fundada no fato de pertencerem a uma mesma classe de idade. Segundo Lajolo (2001. p.28), os primeiros modelos de
comportamentos que caracterizariam o jovem vieram de Hollywood: o jeito
rebelde de ser presente na juventude sadiamente transviada representada
por James Dean e Elvis Presley. Referências bibliográficas: ARIÈS, Philippe. História social da criança
e da família. Trad. Dora Flaksman. 2.ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981. |
||
Voltar |