Liliane da Silva Prestes - Universidade Federal
de Pelotas / UFPEL
1. Introdução
Os cursos de formação de professores, em
nível de graduação, são denominados licenciaturas.
Geralmente com duração de quatro anos, oferecem a seus alunos
disciplinas teóricas especificamente relacionadas à área
de conhecimento escolhida; disciplinas de “formação
geral” (comuns a qualquer licenciatura) e disciplinas que possibilitam
a inserção do acadêmico em situações
de sala de aula enquanto professor). Pode-se afirmar que os cursos vão
desenvolvendo essas disciplinas “num crescendo”: nos primeiros
semestres, privilegiam-se as disciplinas teóricas, em uma fase
intermediária, as ditas disciplinas de formação geral
são uma constante e, próximo ao final do curso, várias
atividades de prática são realizadas.
Assim é estruturado o curso de Letras (habilitação
Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa) da
Universidade Federal de Pelotas (doravante UFPel). Com relação
à prática, algumas oportunidades são oferecidas para
que o aluno comece desde cedo a ter experiências ministrando aulas,
tais como a participação em projetos de extensão.
Oficialmente, as práticas começam no sexto semestre, por
ocasião da disciplina denominada Lingüística Aplicada
II. O pré-estágio, supervisionado e avaliado nessa disciplina,
constitui-se uma experiência de dez horas-aula em uma turma de ensino
fundamental ou médio da rede pública de ensino. O estágio
é realizado no oitavo semestre e segue os mesmos moldes, porém
a carga horária é aumentada para vinte horas-aula.
Estando no final do sexto semestre, ou seja, tendo passado pela primeira
experiência prática oficial em minha formação
como professora, e participando das discussões nas aulas da disciplina
supra citada, algumas questões passaram a ser, para mim, motivo
de reflexão. Na etapa em que eu e meus colegas nos encontramos,
já podemos antever o que e como será nossa atuação
profissional no futuro; porém ainda somos alunos. Esta parece ser,
pois, uma situação ímpar a ser investigada. Tal percepção
levou-me a desenvolver este trabalho, que tem por objetivo identificar,
em discursos de acadêmicos do sexto semestre do curso de Letras
da UFPel, as formações discursivas relacionadas às
seguintes questões:
• O que é ser professor?
• O que é ser aluno?
Este trabalho visa, também, a analisar as ideologias que estão
subjacentes a essas formações discursivas, utilizando, para
tanto, o aparato teórico da Análise de Discurso de linha
francesa (doravante AD).
O presente artigo estrutura-se da seguinte maneira: após a descrição
metodológica, apresento, no referencial teórico, as bases
conceituais da AD necessárias para o desenvolvimento do estudo,
A seguir, procedo à análise dos discursos à luz do
referencial teórico. Apresento, então, as considerações
finais, nas quais busco estabelecer relações entre as formações
ideológicas subjacentes às respostas para as três
perguntas. Por fim, refiro a bibliografia utilizada durante o estudo.
2. Metodologia
2.1. Os sujeitos da pesquisa
A pesquisa tem como sujeitos dezessete alunos do sexto semestre do curso
de Letras (habilitação Língua Portuguesa e Literaturas
de Língua Portuguesa) da UFPel. Esses alunos realizaram, a meu
pedido, uma produção textual na qual respondiam às
três questões anteriormente referidas.
Cabe salientar, aqui, algumas características da turma. Grande
parte dos sujeitos, apesar de ter feito o pré-estágio durante
o semestre em curso, já tem experiência em sala de aula há
pelo menos quatro semestres. Alguns deles trabalharam (e ainda trabalham)
no Pré-vestibular Desafio _ projeto desenvolvido pela UFPel para
oferecer curso preparatório para o vestibular à população
de baixa renda. Outros fazem parte de outros projetos como voluntários;
por exemplo, contribuindo para a preparação de candidatos
às provas dos supletivos de ensino fundamental e médio em
comunidades de bairro ou mesmo em instituições não
governamentais. Há, ainda, aqueles que já trabalham em escolas
particulares. Por essas razões, entendo que o “processo de
construção como profissionais” pelo qual estamos passando
é, para alguns, bastante rico, visto que a prática vem permeando
todo o seu caminhar enquanto universitários.
2.2. Etapas da pesquisa
O presente estudo foi elaborado nas seguintes etapas:
1. Coleta dos dados;
2. Análise prévia dos dados;
3. Elaboração do referencial teórico;
4. Análise propriamente dita dos dados, a partir de categorias
que refletem diferentes formações discursivas nas respostas
para cada questão proposta;
5. Produção do artigo.
3. Referencial teórico
A Análise de Discurso é uma ciência
que tem por objeto o discurso, ou seja, a palavra na dinamicidade dos
usos, enquanto prática de linguagem eivada de sentido, enquanto
constructo simbólico que reflete aspectos sociais, históricos
e econômicos de seus sujeitos. Busca trazer à tona tudo aquilo
que subjaz o que está sendo dito, relacionando , portanto, linguagem
e exterioridade para entender como o texto significa (ORLANDI, 2003:17).
É uma ciência de entremeio, cujo quadro epistemológico
é composto pelos arcabouços teóricos de três
áreas de conhecimento (articuladas por uma teoria da subjetividade):
? Materialismo histórico: como teoria das formações
sociais, suas transformações e a teoria das ideologias;
? Lingüística: coco a teoria dos processos sintáticos
e dos processos de enunciação;
? Teoria do Discurso: como a teoria da determinação histórica
dos processos semânticos.
No que se refere ao materialismo histórico, levando em conta os
conceitos abordados neste trabalho, cabe lembrar que é através
dos chamados aparelhos ideológicos do Estado (tais como escola,
igreja , meios de comunicação e partidos políticos)
que se mantém a ordem política e, por estarem imbricadas,
também a ordem econômica. Através dos aparelhos ideológicos
do Estado, a classe dominante privilegia a ideologia por meio da repressão
simbólica, conquistando, assim, cada vez mais novos adeptos.
Desta forma, a ideologia interpela o indivíduo e fornece as formações
discursivas que constituirão a subjetividade. Por conseqüência,
a ideologia impõe ao sujeito, sutilmente, algumas “verdades
absolutas”, portanto, inquestionáveis. Esse processo de interpelação
torna o sujeito assujeitado, ou seja, submete-o às condições
de produção impostas por uma ordem superior estabelecida,
embora haja uma ilusão de autonomia.
Essa exterioridade aparece nas formações discursivas, que
são matrizes de sentido que regulam o que o sujeito pode e deve
dizer e, também, o que não deve ser dito. Às formações
discursivas subjazem as formações ideológicas, que
são conjuntos complexos de atitudes e de representações
que se relacionam às posições de classes em conflito.
É preciso considerar que a ideologia não é homogênea,
única e particular de uma determinada época, refletindo
sempre as questões de natureza econômica e suas conseqüências.
Com relação à lingüística, a AD tem como
ponto de partida de seus estudos o modo como os elementos lingüísticos
se articulam, bem como suas condições de produção,
que, fazendo parte da exterioridade lingüística, são
responsáveis pelo estabelecimento das relações de
força no interior do discurso e mantêm com a linguagem uma
relação necessária.
A teoria do discurso estuda a relação entre os processos
discursivos e a língua. Nessa perspectiva, o discurso seria um
efeito de sentido entre interlocutores, que se evidencia por um efeito
ideológico que provoca no gesto de interpretação
a ilusão de que um enunciado quer dizer e que realmente diz. Assim,
os sujeitos deixariam as suas marcas na interlocução, de
maneira a manifestar, por vezes implicitamente) a sua formação
ideológica.
Para a análise que segue, é indispensável fazer,
ainda, referência à noção de heterogeneidade
discursiva. Segundo AUTHIER REVUS (1990), a heterogeneidade apresenta-se
sob duas formas: a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade constitutiva,
termo que destaca que todo discurso é atravessado pelo discurso
do Outro ou por outros discursos, que mantêm entre si relações
de contradição, de dominação, de confronto,
de aliança e/ou de complementação.
4. Análise dos dados
A análise dos dados tem como ponto de partida categorias
criadas a partir das marcas lingüísticas encontradas nos discursos
dos sujeitos. Para cada uma das questões propostas foram definidas
categorias específicas, ainda que, como veremos, algumas delas
sejam convergentes.
4.1. O que é ser professor?
Para a primeira questão (O que é ser professor?), foram
criadas as seguintes categorias:
(a) Transmissão de conhecimentos: é aquela em que o professor
transmite um conhecimento que detém, e um ser age para que os alunos
aprendam algo.
(b) Construção de conhecimentos: é aquela em que
o professor interage com os alunos no sentido de construir um dado conhecimento
que, portanto, não é monopólio seu.
(c) Aspectos afetivos: é aquela em que o professor é valorizado
pela capacidade de estabelecer um vínculo emocional (de carinho
e/ou confiança) com os alunos.
(d) Professor autoritário: é aquela em que o professor se
coloca em um patamar diferenciado em relação ao aluno e,
em função disso, trata-os de forma extremamente rígida.
(e) Vocação: é aquela em que o professor é
um indivíduo dotado de um dom que o torna um profissional mais
competente, mais consciente.
(f) Consciência social: é aquela em que o professor está
conscientemente vinculado a uma ideologia que é por ele defendida
durante sua prática.
Procedendo a uma leitura atenta das produções dos sujeitos,
percebi que a maioria delas orienta-se para a primeira categoria _ a do
professor que transmite conhecimentos. Essa formação discursiva
está traduzida em marcas lingüísticas, tais como: Ser
professor é “transmitir conhecimentos”, é “ser
um mestre em conhecimentos”; é “dividir sua sabedoria”;
é “repassar para os alunos conhecimentos e experiências
adquiridos”. Em seguida, encontra-se a segunda categoria _ a do
professor interage com a aluno para construir conhecimento. As marcas
lingüísticas correspondentes a essa categoria são,
por exemplo: “ Este ser tem a oportunidade de socializar o conhecimento”
; “ser professor é estabelecer uma convivência na qual
ambos os lados tenham conhecimento”; “é colocar-se
em situação de igualdade para poder atingir o fim maior:
a troca de experiências”. Ambas as formações
discursivas dominam os discursos dos sujeitos. Por serem intrinsecamente
antagônicas, de um modo geral tais categorias dividem os sujeitos
em dois grandes grupos: aqueles que acreditam que ser professor é
transmitir conhecimento e aqueles que acreditam que ser professor é
contribuir para a construção do mesmo.
As demais categorias aparecem em um número bem menos expressivo
de discursos e, muitas vezes, associadas às outras formações
discursivas já analisadas. Assim, alguns sujeitos referiram: “ser
professor é ser amigo, compreensivo com os alunos”; “é
ter carinho e dar muita atenção aos alunos”; “é
estabelecer uma empatia com o outro”; evidenciado considerarem importante
o estabelecimento de um vínculo afetivo com os alunos. Dos dois
discursos citados, o último deles ligava-se à formação
discursiva descrita na segunda categoria. O sujeito estabeleceu, portanto,
a necessidade de um bom relacionamento (“uma empatia”) para
que haja a “troca de experiências”.
Um discurso fez referência à questão da vocação
(quinta categoria), relacionado- os com algumas atitudes: “ é
ter o dom da dedicação, do empenho, da renúncia,
do carinho, pois o professor tem que se dedicar, dar todo o seu empenho
em prol de seus alunos e muitas vezes tem de renunciar aos seus afazeres
particulares: a sua vida pessoal para se dedicar à profissão”.
Como é possível perceber, esse dom chega aos limites da
vida particular e passa pelo empenho e pela renúncia. Esse professor
e, então, antes de tudo, um professor. Sua profissão deve
ser tomada como prioridade absoluta.
Com relação à quarta categoria, não houve
qualquer referência a uma atuação autoritária
como professor. Ainda que uma postura desse tipo possa estar, de certa
forma, vinculada à idéia de transmissão de conhecimentos,
considero o não aparecimento de formações discursivas
desse tipo é de extrema relevância para minha análise.
É preciso lembrar, neste ponto, que, para a AD, o não dito
tem tanta importância quanto aquilo que se diz, pois daí
decorrem os implícitos. Ora, se nenhum sujeito abordou a questão
do “professor autoritário”, pode-se depreender que
nenhum deles vê a prática profissional desse modo, o que
pode indicar para a elaboração de um “modelo de professor
mais democrático”.
Julgo pertinente, ainda, lançar um olhar mais cuidadoso para um
dos discursos que são objeto desta análise. Optei por transcrevê-lo
na integra:
Professor é professar um conhecimento que cada vez menos interessa.
É receber um salário indigno que não estimula em
nada a reflexão pedagógica. É ser maltratado por
pais, alunos e colegas de profissão que não são capazes
de olhar para o lado e ter o mínimo de bom senso para entender
as condições precárias das escolas. Ser professor
é estar engessado em uma burocracia que mais atrapalha que ajuda.
Mas apesar de tudo ensinar, entrar em uma sala de aula e ter um frio na
barriga e se perguntar a todo instante se não está esquecendo
algo e se vai alcançar os objetivos daquele encontro não
tem preço! Que apesar da falta de todos os tipos de incentivos
ser professor é ainda uma profissão que vale a pena, pelo
menos para mim, que acredito na transformação do ser humano.
Este discurso pode ser dividido em duas partes. Na primeira, o sujeito
relaciona uma série de problemas pelos quais o professor passa
durante sua prática. Esse elencar de aspectos negativos parece
convencer pela “exaustividade”: essa profissão é
marcada pelo não reconhecimento tanto moral quanto econômico.
Porém, na segunda parte do discurso, introduzida pela conjunção
adversativa mas, o sujeito passa a enumerar, também “exaustivamente”,
uma série de aspectos positivos da profissão, na sua maioria
relacionados ao psiquismo do professor enquanto tal, sua dedicação
e preocupação em realizar um bom trabalho. A frase, um tanto
extensa, termina com a expressão não tem preço, Em
outras palavras: os sentimentos ali descritos são, por assim dizer,
de uma grandiosidade ou de uma importância tal que não é
possível qualquer mensuração pecuniária.
A associação do emprego de mas a essa expressão leva
ao entendimento de que nenhuma das adversidades anteriormente descritas
é capaz de inviabilizar, para o sujeito, a prática da profissão.
Todos esses problemas têm sua relevância diminuída
pelo empregos de mas e, em seguida, aspectos positivos são tidos
como “sem preço”, indicando o grau de valor dado a
eles. Para concluir, sujeito refere que “ser professor é
ainda um profissão que vale a pena, pelo menos para mim, que acredito
na transformação do ser humano”. Tal afirmação
demostra o nível de envolvimento do sujeito, ser professor vale
a pena, por uma série de razões, para ele, que acredita
na transformação. Então, para esse sujeito, o professor
é um agente que pode transformar. Pode-se relacionar esse discurso,
pois, à sexta formação discursiva, segundo a qual
o professor está conscientemente vinculado a uma ideologia: no
caso, a crença na transformação do ser humano.
Com relação às posições-sujeito explicitadas
nos discursos, a grande maioria, para essa questão optou pela imparcialidade,
respondendo “ser professor é...”, sem identificar-se
como profissional. Isso pode ser um indício de que, apesar das
experiências em sala de aula que recentemente tiveram, os sujeitos
ainda não se vêem como professores. O único sujeito
que fez referência a si como professor foi o citado acima.
Por fim, enfatizo que, para esta questão, os discursos são
relativamente homogêneos, ou melhor, seguem uma mesma linha de formações
discursivas. Assim temos, de um lado , as figuras do professor que transmite
conhecimentos (amplamente citado) e do professor autoritário (nunca
citado). De outro, temos as figuras do professor “mais democrático”,
que interage com os alunos para construir conhecimento. A essa formação
discursiva mais facilmente podem relacionar-se as figuras do professor
que tem “dom” e do professor que procura criar um vínculo
afetivo com os alunos. A todas essas formações discursivas
relaciona-se aquela que fala que ser professor é ter “consciência
social”, visto que, independente das opções políticas
que se faça, a prática do magistério envolve sempre
essas escolhas. O sentido dado ao trabalho desenvolvido pelo professor,
bem como tudo que disso decorre, é resultado de ideologias. Devemos
lembrar, no entanto, que para a AD, suporte teórico deste trabalho,
a consciência social não é decorrente de uma escolha
livre. Nesse caso, opera o que a AD chama de ilusão de subjetividade.
Segundo ORLANDI (2003: 48-49):
Como não há uma relação termo-a-termo entre
linguagem / mundo / pensamento essa relação torna-se possível
porque a ideologia intervém com seu modo de funcionamento imaginário.
(...) O efeito ideológico elementar é a constituição
do sujeito. Pela interpretação ideológica do indivíduo
em sujeito inaugura-se a discursividade. (...) O modo como o sujeito ocupa
seu lugar, enquanto posição, não lhe é acessível,
ele não tem acesso direto à exterioridade (interdiscurso)
que o constitui.
4.2. O que é ser aluno?
As categorias criadas como dispositivos de análise para esta questão
são:
(g) Receber conhecimento _ o aluno é um ser passivo, este é
um conceito que se aproxima daquela visão mais tradicional em que
o aluno é uma “tábula rasa”, ou seja, o conhecimento
que tem vai-lhe sendo inscrito ao longo da vida escolar.
(h) Construir o conhecimento _ o aluno é um ser que participa ativamente
na construção de seu conhecimento, esta visão é
antagônica à anterior.
(i) Visão transcendente _ o aluno é visto levando-se em
conta toda a complexidade inerente a o ser humano, esta visão considera
tudo aquilo que o aluno é e faz além da escola.
(j) Sofrimento _ o aluno é visto como uma pessoa que está
envolvida no processo ensino-aprendizagem por obrigação.
(k) Prazer _ o aluno é uma pessoa envolvida nesse processo por
gosto pessoal, por interesse próprio etc..
Passemos, então à análise dos discursos dos sujeitos
a partir das categorias anteriormente explicitadas. Para esta questão,
a maior quantidade de discursos corresponde à primeira categoria,
ou seja , aquela que vê o aluno como um ser passivo. Assim, encontram-se
nos discursos formações discursivas do tipo: “Ser
aluno é tentar aproveitar o máximo de conhecimento que é
transmitido pelos professores na escola”; “é estar
na condição de aprender”; é “um ser interessado
em adquirir conhecimentos”; “é receber informações”;
é “ter uma predisposição para aprender”.
Como se pode perceber, o aluno, nessa visão, é um ser que
apenas recebe ou busca receber. Aqui o não dito revela-se muito
importante: sendo o aluno um ser passivo, ele de forma alguma pode contribuir
para a construção de seu conhecimento ou para a construção
de um conhecimento comum para si e para o professor. O aluno que apenas
recebe nunca acrescenta nada porque não tem nada a ensinar. Então,
procurando ir mais afundo nessa questão, pode-se dividir professor
e aluno em categorias do tipo “pessoas que têm algo a acrescentar
na vida dos demais” e “pessoas que não o têm”.
Essa é uma formação ideológica que estigmatiza
o aluno, que o coloca em uma posição inferior, que o faz
calar, visto que “não tem nada de importante para acrescentar”.
A segunda categoria também é a segunda em número
de discursos que a ela se filiam: Ser aluno é “colaborar
com algo de relevante que acaso tenhamos”; é “compartilhar
idéias com os demais numa constante permuta”; “em um
ambiente onde haja interação entre todos os integrantes”.
Estes são, portanto, discursos em que o aluno encontra-se em uma
posição mais igualitária em relação
ao professor, não há, subjacentes a estas formações
discursivas, divisões entre aqueles que sabem e aqueles que não
sabem. Privilegiando a igualdade, é uma visão que dá
voz ao aluno. O processo ensino-aprendizagem dá-se por uma troca
de experiências e, por assim dizer, uma troca de turnos, constituindo-se
verdadeiro dialogismo.
A terceira categoria é aquela que vê o aluno como um ser
que ultrapassa as fronteiras da escola. É um ser humano, visto
em toda a sua complexidade e que, por isso, leva para sua vida aquilo
que aprendeu ou construiu durante o processo ensino-aprendizagem. Aluno,
segundo tais formações discursivas, é “ alguém
que almeja alcançar um objetivo futuramente, é “interagir
com a vida”; é “saber adequá-lo (o conhecimento)
ao nosso dia-a-dia”; é “ser capaz de aplicá-lo
em sua vida, nos mais variados âmbitos”. O aluno é,
aqui, um agente no momento em que faz valer os conhecimentos escolares
em sua vida de uma maneira geral.
A quarta e última categoria de análise é denominada
“sofrimento”. Nela, aparecem formações discursivas
segundo as quais o aluno é obrigado, visto que a condição
de aluno lhe é, de alguma forma, imposta. Para essa visão,
ser aluno é “complicado, (porque) nem sempre está
disposto a estar em sala de aula”; é “um indivíduo
qualquer jogado numa sala de aula”; é “ não
ter muita vontade de estar na faculdade pelo cansaço que dá
depois de um longo dia de trabalho”; “é ter que aprender
sobre vários assuntos”. Cabe salientar, sob o meu ponto de
vista, um discurso em especial para transcrevê-lo em sua totalidade:
Aluno é um ser interessado em adquirir conhecimentos. Ou é
um indivíduo qualquer jogado numa sala de aula. Aluno qualquer
um é. Agora ser professor não é para qualquer um.
A primeira frase do enunciado coaduna-se com a primeira formação
discursiva, logo já foi analisada. A essa frase ligam-se outras
através do conector ou, de caráter alternativo. Então
temos duas possibilidades de definição de aluno: ou ele
é alguém que adquire conhecimentos, ou enquadra-se na segunda
definição, que passo a analisar. Apesar de não ter
sido explicitamente citado, o sofrimento toma, nesta formação
discursiva, grandes proporções, situando-se “dentro”
da expressão “um indivíduo qualquer jogado numa sala
de aula”. “Um indivíduo qualquer” parece ser
alguém sem a menor importância, alguém que não
conhecemos e não queremos conhecer; não existe, pois, um
sujeito (mesmo que passivo) de conhecimento. Estar “jogado numa
sala de aula” é estar ali por obrigação ou
qualquer outra contingência da vida, não há interesse
ou motivação para sua permanência na escola. Da mesma
forma, estabelecer diferença entre o aluno (“qualquer um
é”) e o professor (“não é para qualquer
um“) é determinar quem é importante e quem não
é, quem tem atributos especiais e quem não tem. Assim, esse
discurso não vê qualquer característica peculiar ao
aluno (“qualquer um é”), o que demonstra que, quando
o aluno não está “interessado em adquirir conhecimentos”,
ele não tem importância alguma.
A heterogeneidade dos discursos está novamente marcada nessas produções,
visto que há sujeito que, em dado momento, consideram o aluno como
um ser que apenas recebe conhecimento, em outro, por exemplo, afirmam
que o conhecimento adquirido seja relevante de modo eu o aluno consiga
transpô-lo para o seu cotidiano. Cabe ressaltar também que,
em nenhum discurso, houve referência ao aluno como alguém
que gosta de aprender. A dimensão do prazer não existe para
o aluno. Apesar de alguns sujeitos terem usado a palavra “interesse”,
tal sentimento pode ser motivado por razões outras, como a necessidade
de arrumar um emprego, por exemplo. Essas considerações
corroboram a importância da busca pelo não dito constitutivo
do discurso para que se proceda a uma análise mais aprofundada
das formações ideológicas.
Para finalizar, resta constatar que somente dois sujeitos colocaram-se
na posição de aluno, os demais construíram um discurso
de modo a não se colocarem nem a posição-sujeito
aluno, nem na posição-sujeito professor, o que pode estar
demostrando que estes sujeitos realmente encontram-se, no processo de
construção de suas identidades, em uma fase intermediária
“entre esses dois pólos” e, por isso, já não
se vêem como alunos, mas ainda não se identificam como professores.
5.Considerações finais
Feita a análise dos discursos produzidos para cada
questão proposta, passa-se agora a estabelecer relações
entre as formações discursivas presentes nas mesmas, bem
como às formações ideológicas a elas subjacentes.
Com relação à pergunta “O que é ser
professor?”, verifiquei o predomínio das formações
discursivas relacionadas à visão tradicional (do professor
que transmite conhecimento). As demais categorias contém um número
bem menos expressivos de discursos. Porém, considera-se pertinente
fazer a ressalva de que a última categoria (consciência social),
apesar da ocorrência de somente um discurso que abordasse explicitamente
a questão, abarca todos os demais discursos. Tal afirmação
se sustenta se tomarmos como ponto de partida a idéia de que toda
a vida humana é permeada pela “consciência”,
ou melhor, pelas ideologias que nos interpelam e que acabam por constituir
o que comumente chamamos de “escolhas conscientes”. Assim,
qualquer que seja a visão de professor preconizada pelos acadêmicos
sujeitos desta pesquisa, essa visão resulta de uma posição-sujeito
definidas a partir de “escolhas” que têm como ponto
de partida as ideologias às quais foram eles assujeitados.
No que se refere à questão “O que é ser aluno?”,
a análise dos discursos fez salientar a heterogeneidade como seu
traço principal. Um mesmo sujeito, por exemplo, vê o aluno
como um ser que apenas recebe o conhecimento (visão tradicional),
mas que pode aplicá-lo no seu cotidiano (visão mais moderna,
transcendente). Confirma-se para esse estudo, portanto, o postulado segundo
o qual todo discurso é heterogêneo, visto que encontram-se,
no interior de cada um deles, relações de contradição,
de dominação, de confronto e/ou de complementação.
Relacionando as produções textuais elaboradas para cada
questão, destacam-se dois aspectos principais. Primeiramente, reafirma-se
a presença da heterogeneidade discursiva. Não há
convergência necessária entre categorias aparentemente similares.
Seria de se esperar que um sujeito que vê o professor como um agente
transmissor de conhecimento visse o aluno como um ser passivo. Não
é o que acontece, pois o mesmo sujeito que afirma que ser professor
“vale a pena”, vê o aluno como alguém desmotivado.
Esse é um exemplo não de incoerência, mas, como já
foi referido, do caráter heterogêneo dos discursos, o que
demonstra que a atual configuração dos mesmos é composta
por diferentes fatores.
Embora os sujeitos da pesquisa sejam colegas desde o início da
faculdade que cursam e, de certa forma, estejam expostos enquanto alunos
aos mesmos discursos sobre a pratica profissional, a criação
de diferentes categorias de análise também demonstra não
haver consenso sobre nenhuma das questões. Disso depreende-se,
então, que as construções identitárias são
motivadas por razões que vão além da leitura de textos
e dos debates em sala de aula. Certamente outras vivências estão
influenciando esses dizeres, além do fato de que cada um apreende
uma determinada experiência de uma maneira singular. As identidades
são, como define MOITA LOPES (2002), fragmentadas, pois são
construções sociais baseadas na alteridade e no contexto.
Cabe lembrar, neste ponto, a lição de BAKHTIN(1999) , segundo
a qual o social constitui o individual.
Em segundo lugar, destaca-se a importância do não dito para
a elaboração da análise. O fato de não haver
discurso que mencione a figura do professor autoritário é
um indício de que os sujeitos, mesmo aqueles que vêem o professor
como um ser transmissor de conhecimento, pensam na prática profissional
de um forma um pouco mais democrática. Da mesma forma, o prazer,
o gosto pelo processo ensino-aprendizagem, não foi referido em
nenhum discurso, tanto em relação ao aluno quanto em relação
ao professor. Neste ponto, é importante retomar a condição
dos sujeitos da pesquisa para lembrar que todos já tiveram experiências
como professor e ainda são alunos de um curso de licenciatura.
Mesmo que a impessoalidade seja a tônica dos discursos, o não
dito faz inferir que nem como professor nem como aluno a dimensão
do prazer, para os sujeitos, está presente no processo ensino-aprendizagem.
Tal verificação pode levar-nos a uma série de reflexões
relacionadas à escolha da profissão e às futuras
atitudes enquanto participantes desse processo.
Talvez esta seja a maior contribuição, ainda que muito modesta,
do presente trabalho. Diante do exposto, só resta fazer novas perguntas:
O processo ensino-aprendizagem e, por conseguinte, o professor e o aluno,
são mesmo e necessariamente marcados pelo sofrimento? Por quê?
Onde está e como se verifica (se é que existe) o prazer
no processo ensino-aprendizagem? Talvez as respostas a essas novas perguntam
levem à elaboração de outras.
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