Fabio Pinto Gonçalves dos Reis
Este trabalho tem como finalidade identificar algumas
práticas de escravos brasileiros em relação à
aquisição da cultura escrita, bem como, seus respectivos
significados de autonomia, ascensão social e inserção
no mundo dos brancos. Além disso, destaca-se também a atuação
de grupos, movimentos ou instituições como a igreja, a maçonaria
e o abolicionismo, no sentido de oferecerem as populações
cativas da época possibilidades de acesso à escrita, entre
as quais, ressalta-se o funcionamento de escolas noturnas. Outra contribuição
importante deste trabalho, diz respeito às iniciativas desses sujeitos
históricos em relação ao seu próprio processo
de alfabetização, como no caso da criação
de clubes, escolas ou espaços educativos diferenciados, ou até
mesmo em experiências autodidatas.
Para dar conta dessa complexidade de processos que envolveram a escolarização
das camadas negras, buscou-se na historiografia social da escravidão
e na história da educação autores que trabalham com
a temática, a fim de subsidiar teoricamente esta investigação.
Uma ação necessária, pois durante muito tempo a historiografia
da escravidão brasileira quando remetida às questões
como a da escolarização das camadas negras, sempre caminhou
para negar as suas experiências escolares bem sucedidas. De acordo
com Pinto (1987):
(...) quanto à época da escravidão,
não há um consenso entre autores sobre a extensão
da escolaridade do negro. Encontramos informações de que
os escravos eram absolutamente excluídos da escola, mesmo de instrução
primaria (...) os escravos e leprosos eram proibidos de freqüentarem
as escolas (...). (p.13)
Nesse mesmo sentido, Romão e Carvalho (2003) ressaltam
que no ano de 1835 ficou estabelecido à proibição
dos escravos freqüentarem as escolas. Para demonstrar tal afirmação,
as autoras apresentam a Resolução Imperial n. 382 datada
de 1o de julho de 1854, que determinava:
Art. 35 – Os professores receberão por seus
discípulos todos os indivíduos, que, para aprenderem primeiras
letras, lhe forem apresentados, exceto os cativos, e os afetados de moléstias
contagiosas. (p. 66)
Na Resolução Imperial n.382 a discriminação
ficou menos obscurecida e mais explicita em relação às
possibilidades de os escravos freqüentarem escolas públicas,
uma vez que a Constituição de 1824 não declarou tão
limpidamente este impedimento.
A discussão sobre a legislação emancipacionista brasileira
e o papel destinado à questão da educação
remete a este problema mais amplo, pois, como já foi indicado,
a forma de legislação do Estado brasileiro, neste caso a
Constituição de 1824, impediu o acesso dos negros escravizados
à instrução pública.
Este impedimento foi articulado de forma indireta porque a Constituição
garantia o direito de todos os cidadãos de freqüentarem as
escolas, porém, como os negros não eram considerados “cidadãos”
ficavam impedidos perante a lei, e mesmo na dimensão prática
quando eram garantidos seus direitos, não se criaram condições
para tal realização.
Conforme a prescrição da Constituição de 1824,
aparentemente bastante democrática, foi restritiva quando discutiu
a definição de cidadão. São cidadãos
brasileiros, segundo o artigo 6.º, somente:
1o. Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos
ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não
resida por serviço de sua nação.
2.º Os filhos de pai brasileiro, e os ilegítimos de mão
brasileira, nascidos em país estrangeiro, que vierem a estabelecer
domicilio no Império.
3.º Os filhos de pai brasileiro, que estivesse em país estrangeiro,
em serviço do Império, embora não venham estabelecer
domicílio no Brasil.
4.º Todos os nascidos em Portugal e suas possessões, que,
sendo já residentes no Brasil na época em que se proclamou
a independência nas Províncias, onde habitavam, aderiram
a esta, expressa ou tacitamente, pela continuação da sua
residência
5.º Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua religião.
A lei determinará as qualidades precisas para se obter carta de
naturalização. (OLIVEIRA, 1995, pp. 68- 69)
A propagação da idéia referente à
exclusão do escravo no processo de aquisição das
primeiras letras, predominante na época, perdurou durante muito
tempo, pois as condições de vida e trabalho ainda não
permitiam a instrução sentida como necessidade.
Sabe-se hoje que ainda em 1850, foi legalmente determinado que os escravos
não poderiam freqüentar as escolas e que estas seriam permitidas
somente aos homens livres. Foi a partir da década de 1860, a escolarização
do negro começou a ser apresentada no parlamento como uma dimensão
fundamental, para integrá-lo à sociedade organizada com
base no trabalho livre. (MOYSÉS, 1994)
Apesar de todo o mecanismo legal que impedia o negro ter acesso à
escola, deve-se considerar as apropriações e recriações
de uma língua oral e escrita por escravos e libertos que fogem
dos quadros estáticos desta sociedade. Imobilidade demonstrada
nos índices de alfabetização de 1872 que relacionava
“um escravo alfabetizado para 999 analfabetos e de 0,6 mulheres
escravas para 999,4 analfabetas” (MOYSÉS, 1994, p.200).
Em contrapartida, não se pode negar que embora as dificuldades
e o preconceito na época fossem devastadores, o negro encontrou
algumas oportunidades para ter acesso ao mundo letrado.
A inserção do negro nas discussões correlatas ao
campo de aquisição da cultura escrita foi encetada por Wissenbach
(2002) no seu artigo Cultura escrita e escravidão – reflexões
em torno das práticas e usos da escrita entre escravos no Brasil.
Nessa pesquisa, a autora dedicou-se ao tratamento das fontes históricas
como instrumento para desvelar aspectos obscurecidos da educação
dos escravos, ex-escravos e forros. Wissenbach (2002) tomou como ponto
de partida a reflexão sobre os processos criminais com escravos
e forros envolvidos em São Paulo na segunda metade do século
XIX, uma vez que estes autos ofereceram diversos aspectos relativos à
difusão da escrita entre escravos.
Segundo Wissenbach (2002) foram anexados aos autos pequenos escritos (bilhetes,
lista de objetos roubados, rezas e preces) que tiveram as mais variadas
finalidades na vida cotidiana do escravo, ou seja, uma série de
fragmentos escritos de próprio punho por escravos utilizados como
provas incriminatórias dos crimes realizados por eles. Mais do
que isso, a confirmação da existência de escravos
alfabetizados e a averiguação do uso da escrita entre eles
significam, por um lado, desmistificar grande parte da produção
historiográfica vulgarmente já produzida e, por outro lado,
associar esta aquisição a uma vivência relativamente
autônoma.
Wissenbach (2002) ressalta ainda que, a aquisição da linguagem
escrita pelo negro implicava na aquisição de um código
que, até então, era privilégio dos brancos, essa
apropriação de saber lhe proporcionava o usufruto de condições
de relativa autonomia. Condições que de acordo com a autora,
eram instrumentalizadas pela escrita para legitimar posses, agenciar os
trabalhos, de morar só, e, sobretudo, gozar da liberdade de ir
e vir.
De acordo com Moyses (1994), no final do século XIX:
O negro que aprende a ler e escrever não é
mais um “negro das ocorrências policiais” ou aquele
que não conhece o seu lugar, a senzala. O acesso a leitura é
considerado um bom comportamento desse indivíduo, que consegue
se distinguir de uma comunidade inferior, selvagem. (MOYSÉS, 1994,
p.202) (grifo do autora)
Embora a concepção dessa historiadora sobre
o negro e seu envolvimento nas ocorrências policiais seja vista
de forma diferente em outros trabalhos , não se pode negar a contribuição
da escrita na construção do conceito de um indivíduo
“negro”, que não tem os mesmos comportamentos das populações
negras e analfabetas, e pode, por méritos, partilhar o mundo dos
brancos.
Independentemente de saberem ler e escrever no sentido usual do termo,
os escravos tiveram de lidar com as diversas formas de escrita por intermédio
de situações práticas vivenciadas, o que Souza (2001)
chamou de “raciocínios constitutivos de uma nova economia
do fazer e pensar”. (p. 101)
Conforme a autora, a necessidade da escrita irrompia mais nitidamente
do que antes na cidade de São Paulo ao final do século XIX,
uma vez que a cultura predominantemente oral da sua população
não interrompera seu fluxo tradicional.
Nesse sentido, Souza (2001) salientou que:
Não é coincidência que a aprendizagem
da notação comece primeiro por atingir aquilo que não
se faz nem se fabrica cotidianamente, mas sim aquilo que constituía
a ossatura mesma de uma sociedade urbana, em que o centro nervoso do sistema
de sobrevivência na economia da circulação de pessoas
e de produtos. A escrita se difunde englobando seletivamente o miolo do
sistema – as trocas monetárias em primeiro lugar, as listas,
a filiação e a identificação, o calendário
depois – tudo aquilo que, enfim, nas novas estruturas da cidade,
não é retido na memória oral de modo completo, nem
nas cadeias de gestos e produtos, nem nas palavras ditas e ouvidas. (p.
102)
Foi pela necessidade proporcionada pela crescente urbanização
na São Paulo do século XIX, que os cativos aprenderam a
utilizar as moedas e a escrita, portanto, aprenderem a ler, escrever e
contar.
Entretanto, não eram somente estes os benefícios trazidos
com o acesso à cultura escrita como relata Souza (2001), “servia
também para o privilégio de não ser incomodado pelas
autoridades, adquirir uma identidade independente de verem ser reconhecidas
a ‘boa aptidão’”. (p. 102)
Existem outras descrições que indicam o uso consciente da
escrita pelas populações negras como um instrumento facilitador
na conquista da cidadania, em situações de falsificação
das cartas de alforria e até mesmo no registro de planos de revoltas,
levantes e reivindicações sociais.
O poder do escrito aparece mais nitidamente e com legítima importância
nos cadernos de segredos ou nos livros de magia que cerceavam o curandeiro
ou feiticeiro, quando as rezas escritas em papel e minuciosamente dobradas
detinham poderes extraordinários e fechavam o corpo dos protegidos.
(REIS, 2003)
A escrita também cumpria, dentre as várias funções,
a de comunicação entre as pessoas ausentes que afastadas
pela condição do próprio tráfico ou por parentes
distantes, que ao conquistarem a alforria se debandam para a cidade. (WISSENBACH,
2002)
Segundo Moysés (1994), um outro motivo que levou os negros a se
alfabetizarem foi a falta de uma memória histórica escrita
na qual eles participassem diretamente, pois os registros escritos sobre
escravos no Brasil, quase que na sua totalidade, são relatos nas
palavras do branco. Então, num momento posterior, os negros superaram
uma conivência cultural quase que restrita a uma memória
oral e passaram a utilizar da memorização de elementos da
linguagem escrita sem que adquirissem as referências essenciais
de um leitor mais especializado.
Assim, Souza (1998) chamou a atenção para a vinculação
da memorização mecânica, considerada como faculdade
mental inferior, com a escravidão citando uma passagem do psicólogo
Gustave Le Bon:
Sem dúvida a instrução permite, graças
à memória que possuem os seres inferiores e que não
é absolutamente privilégio do Homem, de dar ao indivíduo
colocado no lugar bem abaixo da escala humana o conjunto de noções
que possui um europeu. Se faz facilmente de um negro bacharel e advogado,
mas só damos um verniz muito superficial e ineficaz sobre sua constituição
mental. (LE BON apud SOUZA, 1998, p.92)
Essas discussões encontram um eco mais forte nas últimas
décadas do Império, uma vez que a questão educacional
foi trazida à tona com mais ênfase nos artigos dos jornais,
nos debates e discursos políticos, ou seja, em grande proporção
das análises públicas a precariedade do sistema escolar
brasileiro sofria uma crítica intensa. Nesta mesma época,
algumas forças políticas apontavam para o presumido final
da escravidão e o futuro liberto deveria ser enquadrado nesta nova
sociedade que surgia.
Deste modo, abriram-se as portas às ações direcionadas
vindas para suprir esta insuficiência educacional a ponto de surgirem
na época inúmeros grupos envolvidos com a causa, detidos
em oferecer uma educação institucionalizada aos cativos,
ex-escravos ou forros. A igreja, os abolicionistas e a maçonaria
caminharam ao desenvolver uma educação assistencialista,
guardada as especificidades, que visava à exploração
da mão de obra por intermédio da educação
para o trabalho e à qualificação do negro.
Para ilustrar a participação da Igreja nos processos educativos
dos negros no período transitório de um Brasil escravista
para o período marcado pelo pós-abolição,
toma-se como exemplo a presença do Conde José Vicente de
Azevedo (1859-1944).
Membro de uma família pertencente às oligarquias cafeicultoras
e empresárias da província de São Paulo, Vicente
de Azevedo desenvolveu programas em variadas dimensões de restabelecimento
da Igreja Católica nos anos de 1870 até 1930.
Como figura importante nos quadros da história da educação
brasileira, participou da militância em favor da imprensa católica
no ano de 1876, desenvolvendo o projeto de um jornal para a diocese de
São Paulo que circularia com a “Pequena Revista Católica”,
assim como, encetou os debates em torno da polêmica gerada pela
liberdade de ensino superior decretada pelo ministro Leôncio de
Carvalho em 1879. (HILSDORF; SOUZA, s/d)
Os elos de ligação do Conde com o professorado católico
da província se estabeleceram principalmente pela sua atuação
como advogado e procurador de professores públicos. Vicente de
Carvalho também lecionava as cadeiras de Geografia e Cosmografia
no Ginásio do Estado e as aulas de Geografia no curso Anexo da
Faculdade de Direito a partir de 1895, e:
(...) dava suporte á vinda e instalação de verias
congregações religiosas masculinas e femininas romanizadas,
destinadas à assistência e educação escolar
dos diferentes segmentos da sociedade paulista em escolas, asilos e hospitais.
(HILSDORF; SOUZA, s/d, p. 3).
Assim, outra iniciativa de Vicente de Azevedo foi a construção
de uma instituição destinada para ex-escravos chamada de
“Educandário Sagrada Família”, implantada “através
de projeto de 1890, incluindo também a construção
de casas-asilo para velhos escravos e de uma escola agrícola para
seus descendentes”. (HILSDORF; SOUZA, s/d, p.8).
Além disso, de acordo com as autoras, foi dele também o
projeto para “educação de meninas negras, retomado
em 1903, e que a partir de 1918 funcionaria desdobrado no “Orfanato
Santa Zita” e no “Colégio Sagrada Família”
”.(HILSDORF & SOUZA, s/d, p.8)
Em grande medida, o ensino para essas populações negras
agenciadas pela Igreja implicava em educação para o trabalho,
pois esta instrução profissionalizante, de acordo com as
idéias da época, tiraria o negro do estado atrasado em que
se encontrava na sociedade.
Diferentemente do olhar que considera o negro pertencente a um grupo incapaz
de freqüentar a escola, Eliane Peres (2002) desenvolveu sua pesquisa
em torno dos cursos noturnos da Biblioteca Pública Pelotense, enfatizando
a presença dos negros nestes cursos. Perante a documentação
estudada pela autora, os cursos noturnos da Biblioteca Pelotense iniciaram
suas atividades no ano de 1877 e teriam perdurado até 1956, ou
seja, funcionaram durante setenta e nove anos.
Segundo Peres, a questão de pesquisa tornou-se cada vez mais complexa
ao longo da investigação, na medida em que se constatou
que os cursos foram projetados e criados por um grupo da elite pelotense
e destinado às classes populares.
Foi preciso, conforme a autora, também atuar para dar maior visibilidade
às fontes, considerando a presença de alunos negros nas
aulas, e posteriormente verificando se estes educandos estiveram na condição
de escravos ou se apenas os negros livres e libertos tiveram este acesso.
Acoplada à idéia de construção da moralidade
do povo, a instrução elementar atingiu, em grande medida,
o discurso hegemônico que considerava esses elementos essenciais
ao progresso e a modernidade do país. Esta forma de pensar a instrução,
poderia ter facilitado a abertura dos cursos noturnos da biblioteca Pelotense
ao grupo de negros, a fim de integrá-los à vida social,
uma vez que eram considerados seres incapazes e inferiores.
As evidências encontradas por Peres para afirmar a presença
dos negros nos cursos noturnos muitas vezes vieram dos:
(...) exemplos ilustrativos que estão registrados
nos periódicos a respeito das características dos negros.
Visando argumentar que os negros foram aceitos como alunos nos cursos
noturnos (antes da Abolição apenas os livres e libertos)
porque era necessário, na visão das elites, prepará-los
para novas relações de trabalho e para inserção
na vida em sociedade como indivíduos livres, é preciso conhecer,
ainda, outras idéias sobre os negros, vigentes na vida pelotense.
(2002, p.95)
A autora argumentou que os negros eram vistos como indisciplinados, promíscuos,
diferentes biologicamente dos brancos e conseqüentemente pertencentes
a uma raça degenerada. Se por um lado, uma das justificativas apresentadas
por Peres talvez explicasse a presença dos negros nas aulas noturnas
foi desenvolvida a partir da concepção da época que
considerava necessário vigiar e controlar o negro constantemente,
pois sua remediação advinha pela moralidade proveniente
da instrução. Por outro lado, a segunda justificativa foi
arrolada pela confirmação da recorrência do ideal
abolicionista entre os membros da diretoria da Biblioteca. Este fato gerou,
segundo a autora, um certo “paternalismo racista, que procurava
libertar, ajudar e proteger os negros por considerá-los como inferiores”.
(PERES, 2002, p.100)
Além da atuação dos abolicionistas a favor da escolarização
dos negros, pode-se sublinhar também a entrada da maçonaria
na luta contra o analfabetismo e pela difusão da instrução
do povo. A ação maçônica, com a forte herança
da moldura iluminista, buscava maior participação política
no país e principalmente a conformação da cidadania
plena de todos os brasileiros, insurgências indispensáveis
à consolidação de um Estado Republicano. De acordo
com Moraes (1998):
A grande campanha pela instrução do povo
foi deflagrada na Província de São Paulo pela maçonaria
republicana e, posteriormente pelos clubes republicanos. As Lojas Maçônicas
foram as primeiras a criar, na Província, escolas ou aulas noturnas
para a alfabetização de adultos, trabalhadores livres ou
escravos. (MORAES, 1998, p.10) (grifo nosso)
A incidência de escravos freqüentando as escolas pode ser,
ainda observada no movimento endossado pelas lojas maçônicas
no ano de 1874, no qual:
(...) a Loja Independência de Campinas criou uma aula noturna para
instruir não apenas “homens pobres de condição
livre, mas também os escravos”. Em 1875, a aula noturna contava
com 42 alunos de 5 até 56 anos. Em 1878, seus cursos foram ampliados
constando, a partir de então, o ensino da gramática portuguesa,
da aritmética, da geometria, da geografia, e da história
da pátria, lecionadas gratuitamente a 214 alunos, sendo 191 livres
e 23 escravos. (MORAES, 1998, p.11)
Houve, ainda, o caso da “recém fundada Loja Perseverança
III de Sorocaba, Estado de São Paulo, em sessão de 7 de
agosto de 1869 (...) o grande líder republicano e abolicionista
Ubaldino do Amaral apresentava uma proposta, subscrita por ele e por José
Leite Penteado.” (COSTA, 1999, p. 76). Por sua vez, nessa Loja foi
colocada uma caixa denominada Emancipação, na qual os associados
maçônicos poderiam depositar suas contribuições
em dinheiro. Esta caixa tinha por finalidade arrecadar quantias que fossem
destinadas ”à libertação de crianças
negras do sexo feminino de 2 a 5 anos de idade, bem como, as crianças
libertadas ficariam sob a proteção da loja”. (COSTA,
1999, p. 77)
De acordo com Costa (1999), cerca de nove meses depois da caixa de Emancipação
os maçônicos constituíram um Projeto de Abolição
apresentado à Loja América, sob consideração
do Grande Oriente Brasileiro do Vale do Baneditinos, dentre os quais,
destacam-se Saldanha Marinho e Rui Barbosa.
Importante ressaltar neste projeto, que além de toda a sua importância
no processo que considera às iniciativas de grupos sociais e políticos
a favor do término da escravidão, seu desdobramento enveredou
“o início prático do movimento da maçonaria
brasileira a favor da futura lei de 28 de setembro de 1871”. (COSTA,
1999, p.78)
Portanto, legitima-se aqui, a importância das iniciativas de grupos
ou pessoas envolvidas com o abolicionismo, maçonaria e igreja,
no sentido de elaborar e defender projetos que amparassem o negro, facilitando-lhe
o acesso à cultura escrita.
Numa outra instância, apontam-se as iniciativas providas pelas próprias
populações negras na construção de clubes,
escolas e espaços culturais, por meio dos quais puderam ter contato
com as primeiras letras.
Para comprovar a hipótese do grau de autonomia atingido pelos negros,
salientam-se alguns outros espaços de sua inserção
no mundo letrado. Dessa forma, pode-se localizar num livro de época
que retratou a história da cidade de Bragança Paulista-SP,
um fato pouco conhecido nos anais da história da educação
no Brasil, correspondente à instalação de um Clube
de Escravos nesta cidade no ano de 1881.
Para explicar esse acontecimento, Martins e Laurito no livro Bragança
1763-1942 publicado em 1943, apontaram que no dia:
(...) 14 de agosto de 1881, num modesto casebre da rua
Santa Clara, reuniram-se diversos escravos para elegerem entre si os diretores
da nascente sociedade (...) A sociedade tinha por escopo o desenvolvimento
intelectual dos sócios por meio da leitura e fundação
de uma escola noturna, o que se positivou com esplêndida freqüência.
(LAURITO & MARTINS, 1943, p.177)
O acontecimento foi encarado pelos escravocratas e pela sociedade em geral
como “coisa do outro mundo”, fato muito comum para uma sociedade
que vivia sob a égide do preconceito e da exclusão racial.
Quando os proprietários de escravos perceberam que os objetivos
do Clube dos Escravos foram atingidos, logo acentuaram a publicação
de notícias que o pormenorizavam no jornal da época chamado
Guaripocaba, fato que colaborou ainda mais para o seu desaparecimento
em 1883. Entretanto, não deixam de ser significativas às
atitudes e a organização destes escravos, que fizeram frente
à sociedade escravista e conseguiram, ainda sim, se agrupar e permanecer
com a escola durante quase dois anos.
Com extremo significado e imenso valor histórico, cabe destacar
também a iniciativa do professor negro Pretextato dos Passos e
Silva de organizar um espaço de educação escolar
envolvendo uma parcela da população afro-descendente na
Corte, espaço esse que funcionou primeiramente em sua própria
casa.
De acordo com Silva (2002), esta escola foi inaugurada oficialmente por
este professor negro somente em 1853, pois teve que requerer permissão
para dar continuidade ao funcionamento da instituição ao
inspetor geral da Instrução Primária e Secundária
da Corte, o então conhecido Eusébio de Queirós. O
mais interessante foi que, no período anterior ao pedido de permissão
para dar continuidade ao funcionamento da escola, esta instituição
tinha sido freqüentada por crianças e adultos negros durante
dezoito anos na Corte Imperial.
Foi estipulado na época que todas as escolas existentes na Corte
deveriam ser cadastradas, o professor Pretextato elaborou um dossiê
alegando que com ele, aqueles meninos poderiam receber a mais ampla e
significativa instrução, pois iria ensiná-los sem
coagi-los racialmente.
Neste processo de cadastramento da escola, o professor negro pediu ao
inspetor sua dispensa da provas orais e escritas, requisito fundamental
na época para o exercício do magistério, alegando
timidez excessiva. Eusébio Queiroz ao perceber que o professor
tinha a “cor preta”, além de deferir o pedido, também
aconselhou o Ministro Couto Ferraz a defender a necessidade de se existirem
mais escolas para este tipo de público.
Para a obtenção deste deferimento, o professor organizou
inusitadamente um documento abarcando criticas contundentes ao racismo:
(...) das escolas da Corte, nas quais os meninos “pretos
e pardos”, ou eram impedidos de freqüentar ou, em freqüentando,
não recebiam “uma ampla instrução” porque
eram pessoal e emocionalmente coagidos. E em razão de ele também
ser “preto”, os pais daqueles meninos imploram-lhe para que
desse aulas aos seus filhos e ele o fez. (SILVA, 2002, p.151)
Diferentemente dos outros professores que estiveram nesta mesma situação,
o professor negro não ocultou as relações discriminatórias
acontecidas no âmbito escolar ou fora dele. Nesta perspectiva, é
de suma importância perceber a educação como um instrumento
de conscientização, pelo qual os negros aprenderiam a história
de seus ancestrais, os valores e a cultura de seu povo, podendo a partir
deles reivindicar direitos sociais e políticos, direito à
diferença e respeito humano.
Nesse processo de valorização da escrita como um componente
político-social, também houveram algumas iniciativas em
torno da aquisição da língua escrita com conotação
autodidata. Desta maneira, pode-se recuperar a história de vida
da importante figura histórica do ex-escravo Luiz Gama, pois a
sua trajetória reforça ainda mais a perspectiva que considera
que os próprios negros buscaram seu processo de escolarização.
Ou seja, além de demonstrar a presença de um escravo alfabetizado
ocupando uma posição social diferenciada, o caso específico
de Luiz Gama ajuda a delinear a relação da apropriação
da escrita e da leitura com a questão da cidadania e conseqüentemente
com a autonomia do ex-escravo.
Caminhando nessa direção, propõe-se traçar
os percalços da vida do então jurista da escravidão,
por meio de uma longa carta autobiográfica escrita “dois
anos antes de morrer. A carta em si é de grande qualidade literária.
O estilo ágil, o humor leve e cheio de subtendidos dão idéia
do que teria sido a literatura de São Paulo do século XIX,
caso tivesse se dedicado a ela. Não foi assim”. (SOUZA, 2001,
p. 97). Na verdade, Luiz Gama, conhecido por ter um conhecimento exímio
das leis e dos instrumentos jurídicos no Brasil Império,
teve uma infância muito sofrida, aos dez anos de idade foi vendido
como escravo pelo seu próprio pai.
Depois de remetido por navio juntamente com outros escravos ao Rio de
Janeiro, desembarca em Santos e vai para a casa de um português
de nome Vieira, que recebia sempre os cativos trazidos da Bahia. Na cidade
de Santos foi vendido ao negociante e contrabandista alferes Antônio
Pereira Cardoso e fez toda a viagem até Campinas, onde seria revendido,
sem nenhum recurso de transporte, ou seja, plenamente a pé. Neste
percurso, o próprio Luis Gama disse que foi “por todos repelido,
como se repelem coisas ruins, pelo simples fato de eu ser ‘baiano’.
Valeu-me a pecha!” (GAMA, 1882, p.181).
Este acontecimento obrigou-lhe a morar com Cardoso, ao trabalhar em sua
casa aprendeu a ser copeiro, sapateiro, a costurar, lavar e engomar roupa.
Foi no espaço privado da cidade que Luiz Gama ainda na condição
de escravo se deparou com o aprendizado de diferentes ofícios.
Esse aprendizado foi enriquecido ainda mais quando foi morar na casa de
Antônio Cardoso como hóspede, pois o menino Antônio
Rodrigues do Prado Junior cuja pretensão era estudar humanidades,
estabeleceu uma certa relação de amizade com Luiz Gama.
Segundo Gama, os dois constroem uma “amizade íntima, de irmãos
diletos, e ele começou a ensinar-me as primeiras letras”.(GAMA,
1882, p. 181)
Segundo Gama (1882), “em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa,
e tendo obtido ardilosamente e secretamente provas inconcussas de minha
liberdade, retirei-me, fugindo da casa do alferes Antônio Pereira
Cardoso”. (p.181)
Pode-se notar que, além de ampliar o grau de autonomia do escravo
Luiz Gama para poder dar uma nova direção a sua própria
vida, mesmo que por meio da fuga, a escrita e a leitura forneciam esse
grau de possibilidade à imensa população negra no
Brasil Império.
A função social da escrita fica evidente quando nos deparamos
com a história de vida de Luiz Gama, pois toda a sua ascensão
social, profissional e intelectual teve uma estreita relação
com o seu grau de instrução.
Constata-se esta prerrogativa na fase em que, durante o tempo de serviço
no exército, Luiz Gama trabalhou como copista no escritório
do escrivão major Benedito Antônio Coelho Neto e dele tomou
grandes lições de letras e de civismo.
Por um lado, envolveu-se com questões literárias e chegou
até se auto-intitular como aprendiz-compositor das letras, passando
a escrever trovas e poemas de grande significado para a história
da literatura brasileira, como apontou Souza (2004). Por outro lado, ao
mesmo tempo em que trabalhava no fórum libertando escravos, se
envolvia com a política e escrevia em jornais.
Além desse quadro que apontou a trajetória de Luiz Gama,
todas as idéias expressas pelo jurista em torno da busca de melhorias
das condições de vida dos escravos são de enorme
significado para a composição da história educacional
dos negros. Algumas dessas idéias podem ser recuperadas no primeiro
número do jornal Radical Paulistano, de 7 de junho de 1869, redigido
e criado por este grupo coordenado por Luiz Gama. O grupo elencava “reformas
que defendiam a descentralização, o ensino livre, a substituição
do trabalho servil para o trabalho livre e a política efetiva”
(AZEVEDO, 1999, p.89)
Após o relato da história de vida de Luiz Gama e das tentativas
de mudanças endossadas por ele, enfatiza-se a função
social da escrita para o escravo do século XIX, alcançando
os limites e as barreiras da sua própria liberdade, como é
o caso do padeiro negro João Mattos.
Conforme Duarte (2002), a utilização de trabalho escravo
na panificação era muito comum nas cidades brasileiras,
no século XIX. Até 1850, no Rio de Janeiro, capital do Império,
os escravos, principalmente os nascidos na África, eram a única
força de trabalho utilizada na fabricação do pão.
De acordo com a autora, o trabalho de padeiro era extenuante para homens
livres e escravos, que além de fazer manualmente a massa do pão
e vigiar o forno durante a madrugada, precisavam carregar os pãezinhos
ainda quentes, em grandes sacos, nas costas, e entregá-los de porta
em porta.
Duarte (2002) afirmou que o padeiro negro cujo nome João de Mattos
elaborou, na época, um plano para libertar os escravos tendo como
primeiro passo a falsificação da carta de alforria. Posteriormente,
“cada escravo fugia com a sua, indo apresentá-la em fazendas
distantes para conseguir emprego já na condição de
liberto”. (DUARTE, 2002, p. 34). Mais detalhadamente, era combinada
uma hora e todos padeiros da cidade abandonavam seus trabalhos e se dispersavam,
cada escravo levando uma carta de alforria falsificada.
O fato mais interessante desta estória, é que João
Mattos por dominar a escrita falsificava a alforria dos colegas e conseguia
organizar verdadeiros levantes de padeiros escravos. Segundo Duarte (200),
João demonstrava muito orgulho em diversos trechos do seu relato,
por considerar os padeiros como os primitivos abolicionistas.
Depois de ser preso em Santos e por falta de provas ser solto, João
partiu para a capital da província chegando praticamente no mesmo
dia da inauguração da estrada de ferro que ligava São
Paulo à Corte. Assim, Duarte (2002) descreveu que “João
ficou surpreso com o q encontrou na capital: bem maior q Santos, São
Paulo já contava com 11 ou 12 padarias. Ali, depois de algum tempo
de planejamento, novamente João liderou uma fuga de escravos padeiros”.
(p. 35)
Para continuar explicitando o significado da escrita no despertar da consciência
política dos escravos e, de certa forma, do gerenciamento de sua
autonomia, é de extrema relevância ressaltar que João
Mattos depois de estabelecido por algum tempo na Corte:
No dia 5 de abril de 1880, no largo do Paço, reuniram-se
e organizaram o ‘Bloco de Combate dos Empregados de Padaria’,
cujo lema era ‘Pelo Pão e pela Liberdade’. Essas organizações
de trabalhadores escravos, na qual cada padeiro com uma pequena quantia,
alugavam uma sala de reuniões. Antes das reuniões começarem,
os diretores daquele bloco de Combate penduravam na parede 11 ‘bases
sociais’, uma espécie de estatuto da entidade. Consta que
um ano depois de organizado, a entidade já contava quase cem associados.
(DUARTE, 2002, p. 41)
Os relatos de João mostram como foram diversificadas as formas
de resistência de trabalhadores escravos tanto à escravidão
quanto às condições de trabalho, pois nem a libertação
dos escravos, nem a mudança de monarquia para República
melhorariam a vida dos operários e os padeiros de uma maneira geral.
Nessa situação, a apropriação da linguagem
escrita por João Mattos tornou-se uma “arma” contra
a escravidão e, ao mesmo tempo, uma comprovação de
que o negro, por iniciativa própria, buscou ter acesso às
primeiras letras.
Aprender a ler e escrever, enfim, podia permitir aos escravos africanos
e crioulos passarem como libertos ou exercerem ofícios que os aproximassem
da experiência de liberdade. Somadas a essas possibilidades, ainda
uma outra, a “possibilidade de travar contato com as letras dos
homens de cor que, a partir de 1830, na Corte, criaram jornais específicos
nos quais se discutiam questões referentes à raça,
identidade e mobilidade social em meio aquele segmento”. (SILVA,
2000, p.112)
Além desse caso de João Mattos, em circunstâncias
um pouco diferenciadas, Wissenbach (2002) ao pesquisar os autos dos processos
judiciários envolvendo os escravos de São Paulo no século
XIX, relatou que:
(...) foram anexadas pequenas peças escritas utilizadas,
geralmente, como evidência dos crimes - curtos bilhetes (alguns
endereçados pelos réus presos às autoridades policiais);
listas de objetos (feitas com a intenção de assegurar posses,
especialmente quando seu autor se encontrava foragido); rezas preces colocadas
no interior de escapulários e amuletos, que homens e mulheres portavam
como elementos de proteção; e, finalmente, cartas escritas
de próprio punho por escravos e que, transformadas em peças
incriminatórias, nunca foram endereçadas. (p.108)
Segundo a autora, foi isso o que aconteceu com as cartas escritas pelo
pedreiro Claro Antônio dos Santos e endereçadas à
africana Theodora Dias da Cunha, ambos residentes na cidade de São
Paulo em 1868. No caso de Claro e Theodora, em especial, a escrita aparece
mais trivial, isto é, como um instrumento de comunicação
capaz de possibilitar o reencontro entre marido mulher e filho, os quais
haviam se separado já algum tempo. As cartas ainda indicavam o
planejamento para o alcance de seus objetivos, o maior, voltar para a
terra natal, a África. Anexadas aos autos criminais como prova
da possível participação da africana num roubo praticado
na cidade em que morava com seu senhor, “as sete cartas de Claro/Theodora
tiveram diferentes destinatários e a maior parte delas seria endereçada
ao marido, cujo destino ela somente intuía.” (WISSENBACH,
2002, p. 114)
Na verdade, essas cartas remetem-se às situações
e vivências relativamente comuns entre as populações
negras da época, pois a separação das famílias
escravas acontecia por diferentes motivos e também era muito comum
na época, inclusive pela venda dos cativos a diferentes proprietários.
Uma vez, sendo separada do marido e do filho e depois vendida isoladamente
a diferentes escravocratas, a africana passou a juntar esforços
para reunir a família e conseguir a alforria.
Wissenbach (2002) chamou atenção para a importância
das fontes criminais no estudo do significado das práticas de escritas
entre escravos e forros na sociedade escravista brasileira. Ao discutir
essa questão, a autora destacou ainda que “a intenção
é também refletir, de maneira preliminar, sobre a existência
de escravos alfabetizados (...) numa sociedade com baixos índices
de letramento e entre frações sociais no geral analfabetas
ou semi-analfabetizadas.” (WISSENBACH, 2002, p. 109)
Na historiografia social da escravidão, podem ser localizados outros
casos como os do pedreiro Claro e da africana Theodora na região
Nordeste do país, também no século XIX. Assim, tendo
como referencia o convulsionado Recife, Carvalho (1998) informou sobre
o angolano Lourenço, mencionado no Diário de Pernambuco,
de outubro de 1831, que naquela época estava desaparecido há
quatro ou cinco anos, “passando por forro graças a uma carta
falsa que trazia consigo. Informou também sobre Ana, provavelmente
fugida, com trinta anos, que também carregava um papel dizendo
que é forra”. (p.29)
Segundo Carvalho (1998), houve ainda o caso do crioulo Agostinho José
Pereira, de 40 anos, leitor e escritor, em 1846, acusado pelo chefe de
polícia do Recife de liderar uma seita religiosa cujo verdadeiro
propósito era o de servir de disfarce para uma sociedade secreta,
a qual tencionava instruir os negros.
Este crioulo estava no Rio de Janeiro e na Bahia como oficial de milícias,
quando foi considerado um alfabetizador de seus seguidores, isto foi comprovado
porque encontraram com ele um “ABC”, cujo conteúdo
não foi explicitado pelo autor.
Outro caso interessante encontrado na historiografia social foi o de Antônio
Pereira Rebouças (pai de André Pinto Rebouças) e
demonstrou como o negro adquiriu, certo grau de autonomia, com a cultura
escrita. Conforme Santos (1985), com forte dose de sangue negro, Antônio
Rebouças tornou-se notabilidade no Império uma vez que com
princípios de música e rudimentos em latim, principiou modestamente
a trabalhar nos cartórios, logo se tornando um rábula conceituado,
que passando a estudar direito por autodidatismo, teve ativa militância
no foro. Sendo assim, Santos (1985) descreveu que “notabilizando-se
nas Ciências Jurídicas, o parlamento outorgou-lhe em 1847
o direito de advogar, como se diploma tivesse”. (p. 25)
Um dos principais escritores brasileiros, se não o maior escritor
nacional do século XIX, também era negro. “Machado
de Assis nasceu em 1839, no Rio de Janeiro. Filho de Francisco José
de Assis, “mulato pintor”, e de Maria Leopoldina Machado de
Assis, portuguesa ilhoa e lavadeira” . Machado de Assis equilibrou
sua vida entre o serviço público e a literatura, estando
sempre atento aos eventos artísticos, literários políticos
e sociais. Estas observações lhe ofereceram recursos para
desenvolver seu trabalho literário, dando-lhe independência
financeira. Foi nesse momento que escreveu poesias, contos e romances
seguindo os preceitos do romantismo, porém, sem se deixar escravizar
por eles. Com esse estilo próprio, despertou e a admiração
do público e de outros escritores.
Essas situações em que o negro adquiriu a cultura letrada
e se utilizou dela para ascender socialmente ou se inserir no mercado
de trabalho, não foram as únicas formas de instrumentalizar
o código escrito. Verifica-se também na historia social
da escravidão, a existência de escravos muçulmanos
alfabetizados, mais conhecidos como “malês”. Na Bahia
de 1835, os africanos muçulmanos eram minoria considerando o tamanho
dos grupos étnicos entre os quais o Islã estava mais difundido,
porém, os seus membros pareciam ter, na sua maioria, se convertido
a religião islâmica antes de chegar no Brasil. (REIS, 2003)
De acordo com Reis (2003), os haussás na Bahia se tornaram prontamente
identificados com o islamismo. Essa etnia, por sua vez, já tinha
sido considerada anteriormente na África, como os muçulmanos
mais bem treinados e competentes intelectualmente. Para confirmar tal
constatação, Reis citou o relatório do chefe de polícia
Francisco Gonçalves Martins quando relatou que os escravos daquela
religião:
Em geral vão quase todos sabendo ler e escrever
em caracteres desconhecidos, que se assemelham ao árabe, usados
pelos Ussás,, que figuram terem hoje combinado com os Nagôs.
Aquela Nação em outro tempo foi a que se insurgiu nesta
Província por várias vezes, sendo depois substituídas
pelos Nagôs. E a escrava Marcelina, perguntada sobre os escritos
achados pela polícia na casa de um liberto que lhe alugava um quarto,
disse que os papéis de reza de malês [foram] escritos e feitos
pelos mestres dos outros, os quais andam ensinando, e estes mestres são
de Nação Ussá porque os Nagôs não sabem
e são convocados por aqueles para aprender, e também por
alguns de Nação Tapa. (REIS, 2003, p. 178)
Além de saber ler e escrever, nota-se que os malês tinham
uma espécie de organização ou sistema de aprendizagem,
os que dominavam as letras transmitiam aos que nada sabiam. Com a finalidade
de propagar a aquisição da língua escrita, estes
escravos muçulmanos acabavam socializando a sua religião
e, ao mesmo tempo, inculcando os horrores de um levante negro na sociedade
e nas autoridades da época.
Segundo Reis (2003), organizados em torno desta religião, os africanos
acreditavam estar preparados para dar início à luta, liderá-la
e vencê-la. Por diversos motivos, entre eles a má sorte de
serem denunciados poucas horas antes do momento aprazado, o levante não
vingou. Mesmo assim, os rumores de uma possível insurreição
escrava assolaram as autoridades e a população em geral
causando terror, desconforto e muito medo.
É importante apontar que estes registros escritos em letras árabes
foram utilizados como provas comprobatórias para incriminar os
negros capturados durante a intervenção da polícia
baiana na possível efetivação da insurreição
escrava denominada Levante dos Malês, no ano de 1835. (REIS, 2003).
Ou seja, os escritos foram interpretados pela sociedade branca da época
como o planejamento das ações e das estratégias utilizadas
para a fuga em massa das populações africanas que creditavam
fé ao islamismo.
Os textos religiosos contidos nestes escritos malês não devem
ser lidos apenas como objeto de proteção, uma vez que sua
função era ampla e permitia interpretações
e usos diversos. Para intento desta pesquisa, eles revelam uma face em
que os negros alfabetizados eram considerados como lideranças capazes
de desconstruir o status quo da sociedade. Segundo Reis (2003), os domínios
dos códigos escritos, em alguns momentos, colocam os negros escravizados
numa hierarquia social mais elevada do que os brancos, que não
sabiam ler nem escrever. Pode até parecer um exagero num estado
preconceituoso como a Bahia oitocentista, porém, o significado
mágico da escrita para desenvolver a consciência política
dos povos que se apropriavam dela, tornava os indivíduos ágrafos
com menos poder de coesão, baixo potencial de intelectualidade
e, principalmente, sem identidade pátria.
Num importante trabalho publicado recentemente, abrindo caminho para retomada
dos debates sobre identidades africanas e crioulas nas experiências
escravas, Mariza Soares (apud GOMES; SOARES, 2001) apresenta-nos as trajetórias
dos pretos minas no Rio de Janeiro desde o século XVIII. A autora
apontou que os negros vindos da África Ocidental (negros minas)
ao ameaçarem a hegemonia política dos grandes senhores da
Bahia e a própria ordem escravocrata, se deslocaram ou foram vendidos
pelos seus senhores para fazendeiros com propriedades na região
da Corte Imperial.
Diante deste acontecimento, esta massa negra ocupou vários ângulos
da preocupação e das dores de cabeça das autoridades
policiais da Corte que cultivaram durante longa data o medo de uma “sublevação
geral”. (GOMES; SOARES, 2001, p. 10).
De acordo com Gomes e Soares (2001), o suposto perigo que assombrou os
moradores da cidade do Rio de Janeiro naquela época se alastrou
para o Brasil inteiro, pois os negros minas se viram com a pecha de desobedientes,
revoltados e baderneiros. Para complicar ainda mais a situação,
alguns africanos:
Eram familiarizados com a cultura letrada (...) e isto
também lhes conferia um papel especial, quando vemos a quantidade
de requerimentos escritos por pretos minas para conseguir a liberdade,
algo pouco comum na cultura afro-carioca do século XIX. (GOMES
& SOARES, 2001, p.10)
Portanto, com o alcance da liberdade por parte destes
africanos, a penetração dessas populações
no seio da heterogênea sociedade escrava do Rio de Janeiro foi cada
vez maior.
Nessa ótica, a rede de sociabilidades entre eles também
foi se intensificando e tal fato pode ser comprovado na verificação
da existência dos chamados “Clubes de Africanos”. Esses
clubes, quase sempre, localizavam-se em casas alugadas e tinham como finalidade
promover reuniões periódicas de africanos libertos ou livres.
O pesquisador Sidney Chalhoub (apud GOMES, SOARES, 2001) ao investigar
os pretos minas nos trouxe evidências da existência desses
agrupamentos apontando que:
Nos últimos dias de 1835 seriam determinadas ao
Juiz de Paz de Santana investigações junto a uma casa da
Rua Larga de São Joaquim onde parecia haver reuniões de
pretos Minas, a título de escola de ler e escrever. Tais encontros
eram realizados diariamente, à tarde. (p.8) (grifo nosso)
A problemática ressaltada pelos historiadores fornece subsídios
para reafirmar a hipótese da aquisição da escrita
por escravos, sobretudo, com ênfase na capacidade de auto-organização
e resistência a uma sociedade preconceituosa e racista.
Isso demonstra também que as idéias sobre “resistência
cultural” debatida por autores como Arthur Ramos, Edison Carneiro
e, posteriormente, Roger Bastide, consideraram os significados religiosos
das culturas escravas como recriações genuínas de
uma cultura de pureza africana, e não levaram em conta as solidariedades
entre escravos forros, libertos e ex-cravos quanto à apropriação
da cultura escrita.
Para combater a ideologia racista que enfatizava a incapacidade do negro
em se socializar, constituir família e ter acesso a cultura escrita,
foi necessário que pessoas interviessem em favor dessas populações
com ações individuais ou filiados aos seus grupos e movimentos.
Na sua grande maioria, as atuações desses intelectuais refletem
a perspectiva de pessoas brancas da elite brasileira, diferentemente do
que acabamos de ver no final deste texto. Dessa forma, foram destacadas
as atuações das camadas negras na busca de seu processo
educacional, ou seja, uma tentativa de recuperar essas iniciativas sociais
na interpretação e sob a ótica das populações
negras.
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