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LEITURA:
PRESSUPOSTOS DE UM PROJETO E RESPOSTA A UMA PROFESSORA QUE PEDE SOCORRO
Lucinea Aparecida de Rezende UMA IDÉIA LEVA À OUTRA ... professora (...), vou aproveitar e pedir uma ajuda.
Acredito que você tenha lido meu outro e-mail, no qual comentei
sobre uma amiga que é professora de Leitura (...), e está
com muita dificuldade para lecionar. Pelo que percebi, a formação
dela não foi das melhores (...) e a maioria dos professores não
está preparada para dar aula de leitura. Então vou lhe mostrar
o e-mail (...) e se você puder nos ajudar ficaremos muito gratas...
(Aluna da Graduação, participante de Projeto de Pesquisa
que focaliza a leitura). As duas correspondências transcritas chegaram às nossas mãos em razão de coordenarmos o Projeto de Pesquisa: “Leitura-paixão: o impacto de uma situação diferenciada”, do qual a primeira correspondente participa. As idéias que norteiam esse Projeto começaram a emergir no início nos anos 90. Naquele momento tínhamos acentuada a percepção de que a leitura dos alunos da Graduação deixava a desejar. Do final dos anos 90 ao início dos anos 2000, desenvolvemos a pesquisa de doutoramento. Evidenciou-se para nós que a leitura dos alunos do curso de Graduação tomado como referência na Pesquisa é insuficiente para a formação do ser humano. Em meados de 2003, iniciamos uma nova pesquisa acadêmica, visando colher dados acerca da possibilidade de uma maneira diferenciada para tratarmos do ensino da leitura, no intuito de formarmos leitores. Em 2005, iniciamos uma segunda fase do Projeto, ao qual chamamos “Leitura-paixão: o impacto de uma situação diferenciada – Fase II”. Nesse universo, ao recebermos as correspondências transcritas, ficamos pensando acerca de quantas questões estão aí implicadas - desde o texto da professora até a consideração acerca do número de alunos em sala de aula . No que diz respeito ao texto, ele foi ajustado em relação à pontuação, acentuação e repetição de palavras, por considerarmos que foi escrito a uma amiga e não para divulgação escrita; portanto, deixá-lo exatamente como estava seria expor uma escrita feita em um contexto e utilizá-la em outro, sem que a autora pudesse intervir (preocupar-se mais com a correção), se soubesse previamente dos usos de seu texto. Ainda assim, podemos afirmar que ele reflete alguns equívocos de escrita. Quanto ao numero de alunos em sala de aula, ele reflete as concepções e/ou distorções das políticas educacionais. Registrado esse dado, vamos à questão central do pedido da professora: diante do que tenho nas mãos, alunos carentes, pobres e uma classe numerosa, como trabalhar a leitura, como despertar neles o gosto pela leitura? Correlacionada à pergunta, a resposta – e inquietações - que a professora vem encontrando: O que estou fazendo é o seguinte: primeiramente, conquistando a confiança deles (difícil), levando textos diferenciados (aula de leitura, textos temáticos - discriminação, violência, etc) e por fim os faço anotar algumas observações e até mesmo escrever algum comentário sobre os textos (escrevem mal, justamente porque não lêem). Já pensei em trabalhar com a realidade deles, mas sabe qual é? Novela, funk, sexo, sexo, sexo e malandragem. Nesse encadeamento de idéias temos delineado nosso problema: como despertar o gosto pela leitura no contexto considerado? Para tratá-lo, recorremos ao que vimos defendendo: a ambiência de leituras. O que isso significa? AMBIÊNCIA DE LEITURA Entendemos ser desejável que os estudantes tenham
convivido de maneira agradável com textos em suas casas –
e, é claro, na escola - ao longo de suas vidas, tornando-se leitores
assíduos. No entanto, se essa ambiência de leitura não
ocorreu da maneira que gostaríamos e é desejável,
havemos de criar oportunidades para que venha a ocorrer, não importa
qual seja o nível de escolaridade em que o estudante esteja. Se
ele não é ainda leitor assíduo, carece de ser compreendido
e tratado dessa forma; só assim conseguiremos auxiliá-lo
devidamente. Dizendo de outra forma, não basta que nós,
professores, solicitemos leituras; é preciso que exerçamos
a condição de leitores e auxiliemos os alunos a lerem mais
e melhor. Tomamos como ponto de partida para nossas proposições a idéia de “intermediação” e os paradigmas sócio-culturais, conforme tratados por Vygotsky (1991). Partilhamos com Vygotsky a compreensão de que o homem é um sujeito histórico, que se desenvolve e transforma na relação com o outro, com o seu contexto e sua cultura. Temos, na situação de formação de leitores, a intermediação do próprio texto e também a intermediação do outro – leitor com quem podemos dialogar - na construção do repertório que constitui a visão de mundo do estudante (Rezende, 2005; Lajolo, 2001). Outro autor que nos orienta é Paulo Freire: primeiro, a “leitura” do mundo, depois, a leitura da “palavramundo”. O autor salientou que devemos procurar a significação mais profunda do texto em uma “prática que nos ensina” (Freire, 1985, p. 53 a 64), em um trabalho que tem como objetivo a “transformação do mundo” (idem, p. 72-4; 83), estando-se “presente na História” , tendo como sustentação o “pensar certo” (idem, p. 84-6). Pensar certo, descobrir a razão de ser dos fatos e aprofundar os conhecimentos que a prática nos dá - não são um privilégio de alguns mas um direito que o Povo tem... (p. 86). Ao caminharmos nesse sentido procuramos ampliar contextos, oferecendo instrumental aos alunos a fim de que os múltiplos textos – palavra, imagem, som - venham a fazer sentido para eles. O sentido do qual falamos é aquele que se constrói, conforme escrito por Leminski (1997, p. 11). Queremos evidenciar também a importância de contarmos com um referencial de leitura múltiplo - diferentes tipos de texto. Neste caso, trazemos a poesia para expressarmos nossos pensamentos. Buscando sentido O sentido, acho, é a entidade mais misteriosa do
universo. Relação, não coisa, entre a consciência,
O sentido dos gestos. O sentido dos produtos. O sentido do ato de existir. Me recuso a viver num mundo sem sentido. Estes anseios/ensaios são incursões conceptuais em busca do sentido. Pois isso é próprio da natureza do sentido: ele não existe nas coisas, tem que ser buscado, numa busca que é sua própria fundação. Só buscar o sentido faz, realmente, sentido.Tirando
isso, não tem sentido. Pois bem, a professora evidencia sua caminhada rumo ao encontro de sentidos – ensinar seus alunos a lerem - e espera que, por conseqüência, escrevam melhor, “levando textos diferenciados (aula de leitura, textos temáticos - discriminação, violência, etc)” a eles. Por outro lado, ela procura interferir na vida desses alunos - vistos como carentes -, de maneira tal que eles possam pensar para além de “novela, funk, sexo, sexo, sexo e malandragem”. Vamos ser cartesianos para tratar deste último parágrafo; comecemos por “levando textos diferenciados”. O diferente, aqui, apresenta possibilidades de estar relacionado à idéia de práticas discursivas diferenciadas. No entanto, como adverte Orlandi (1998, p. 7), o importante é que possamos “trabalhar com noções mais próximas das determinações reais [dos] aprendizes e não apenas “imaginadas” em nossas propostas bem intencionadas”. Que sentido tem o “diferente”? São textos contextualizados, vistos a partir de suas origens - queremos dizer no contexto do universo dos falantes/produtores de texto? Ou são diferentes atendendo ao princípio da variação, simplesmente? A autora citada, Orlandi (1998, 2000), bem como Coracini (2002), além de outros/as, podem oferecer elementos significativos para ampliar-se essa análise. Voltemos ao texto da professora: os alunos só se interessam por “sexo, sexo, sexo” e juntemos a essa uma outra informação: “meus alunos são adolescentes – 5ª a 8ª série”. Nessa correlação, podemos afirmar que estamos dentro da normalidade no que tange aos alunos. O que não nos parece ser normal é o distanciamento que a escola tem das coisas vitais. É o não sabermos tratar do que é próprio da nossa vida. É o sermos preparado – se o somos – para transmitir informações, mas não para lidar com gente, com aquilo que nos constitui, ou seja, nossas mudanças físicas ao longo do tempo, nossos sentimentos, valores, nossa leitura de nós mesmos no mundo e do mundo! Portanto, o que nos cabe é olharmos com realismo para os fatos e tratar deles com a delicadeza/sensibilidade de que somos capazes, ouvindo, orientando, levando os alunos a pensar acerca do que se passa com eles próprios e onde podem buscar informações - que os auxiliem a viver o mais plenamente possível, de maneira prazerosa, saudável, respeitosa, cidadã, coletiva. Tudo isso como descoberta a ser feita, construção de conhecimento, e não imposição de quem já descobriu seus próprios caminhos e os impõe, sem que haja sentido, aos alunos. Muitas pessoas na comunidade, se procuradas, podem auxiliar nessa tarefa; desde profissionais especialistas até pessoas comuns, que aprenderam a encarar a vida de frente, olhando os desafios e buscando formas de ultrapassá-los. Passemos à malandragem. Que pena, você não descreveu para nós o que isso significa... São artes infanto-juvenis, ou seja, traquinices, ou comportamentos outros, que poderíamos situar no universo dos delitos/infrações, sob o ponto de vista legal? Correspondem aos arroubos infanto-juvenis ou situações mais graves do ponto de vista da convivência social? Se corresponderem às traquinices, há que se trabalhar com a idéia de direitos e deveres, bem como o ser oportuno ou não em determinado espaço-tempo. Por outro lado, se fizerem parte dos chamados fatos graves, há que se trabalhar a idéia de grupo, de respeito ao próximo, de solidariedade, da correlação entre direitos e deveres, além de outras, específicas para a situação. Consideremos, agora, a referência “da novela e do funk”: Se bem entendi o que disse Dermeval Saviani - um pensador das questões educacionais que tem dado sua contribuição para nossas reflexões - ele disse, se não me falha a memória, em Congresso que se realizou em Marília, Estado de São Paulo, nos anos 90: ensina-se com um livro, quer seja ele bom ou ruim. Para tanto, basta estabelecermos uma crítica apropriada ao que ele contém. Em se tratando de funk e novela, acreditamos que vale a mesma regra. Juntando esse foco com o anterior, podemos dizer que uma novela X, em um dos seus capítulos já finais, mostrou uma conversa de uma adolescente com sua madrasta, acerca de questões sexuais, segundo as dúvidas da adolescente. Analisando um foco como esse se poderia estar considerando a sexualidade e o tratamento que ela recebe em diferentes segmentos (programas) na TV. Outros focos, outros momentos, podem vir, também, para a sala de aula, e ser analisados segundo critérios de ética, estética, arte, cultura, antropologia, vida social, etc. Uma forma de ensinar, de discutir questões que dizem respeito, diretamente, à vida dos adolescentes. Vale a mesma regra para o funk. Exemplo: discutir esse ritmo, sua origem e as implicações sócio-culturais que ele representa. Dessas idéias, fazemos ponte para nosso problema principal: como despertar nos estudantes o gosto pela leitura? Alguns pressupostos e hipóteses têm norteado o trabalho de Pesquisa e Ensino que vimos desenvolvendo; por exemplo, a compreensão do significado de leitura. Trabalhamos com a idéia de leitura como a relação leitor?texto. Em decorrência, cada leitor lê um texto segundo o que é, sente, pensa, conhece. Visto dessa forma, tem-se a implicação de que se desejamos formar leitores, precisamos investir nesses potenciais leitores, auxiliando-os a ampliarem/aprofundarem o que são, sentem, pensam, conhecem. Como o fazer? Tomemos alguns indicadores como nossas referências: • nosso tempo (século XXI) está permeado
por múltiplos textos, lidos a partir de diferentes suportes; Juntando esses elos, organizamos, rotineiramente, no Projeto de Leitura que desenvolvemos, situações que propiciam a ambiência com múltiplos textos e diferentes leitores. Portanto: falamos das leituras que realizamos, convidamos notórios leitores/produtores de texto – palavra, imagem, som – para falarem aos nossos alunos, apresentando possibilidades/olhares diferenciadas/os. Dessa maneira: • propiciamos a oportunidade de entendimento de
texto em seu sentido amplo;
Esse está sendo um possível caminho na tarefa de formar leitores, acerca do qual ainda estamos aprendendo, por meio dos indicadores de pesquisas – a de outros autores e a nossa. Esperamos que ele possa inspirá-la para o planejamento e desenvolvimento de ações profícuas junto aos seus alunos. REFERÊNCIAS CORACICINI, Maria José (org.). O jogo discursivo
na sala de aula. Campinas: Pontes, 2002. REZENDE, Lucinea Aparecida de (org.). Leitura e visão
de mundo: peças de um quebra-cabeça. Londrina: Atrito Art,
2005. |
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