Marilac Luzia de Souza Leite Sousa Nogueira
Jorge Megid Neto
Maria Inês de Freitas Petrucci dos Santos Rosa
Faculdade de Educação – Unicamp – Secretaria
de Educação do Município de Campinas
Fui uma criança um tanto quanto diferente. Quando
lembro da minha infância percebo situações engraçadas
e um pouco estranhas para uma menina da década de 60. Brincava
muito e apesar de ser de família sem muitos recursos econômicos,
não ajudava nos afazeres da casa, isso não me atraía.
A única coisa que gostava de fazer era lavar a frente da casa e
a calçada, pois podia me molhar à vontade sem ter que dar
satisfação a ninguém.
Adorava brincar na chuva com meu irmão mais velho e rolar na enxurrada.
Era uma criança muito livre e sem medos. Nunca me preocupei se
havia ou não menina para brincar, saía atrás do meu
irmão. Quando estava sozinha me enfronhava na brincadeira dos meninos
(de três a quatro anos mais velhos), se me mandassem embora eu corria
atrás e ficava com eles mesmo sendo a “lanterninha”.
Assim aprendi a subir em árvore, descer barrancos, entrar nos riachos,
descobrir as minas de água, fazer caveira de mamão para
acendê-la à noite e assustar os transeuntes. Passávamos
na frente do banco do jardim onde sentavam os namorados para eles irem
embora e nos divertíamos com os revólveres de feijão.
À noite muitas vezes caçava vaga-lumes num charco perto
de casa, as pernas ficavam sujas de barro até quase a altura dos
joelhos.
Passava minhas férias junto com meu irmão, no sítio
do meu tio em Minas Gerais, à noite ouvíamos histórias
de fantasmas e mortos vivos o que me dava um certo medo. A luz era de
lampião e na penumbra tudo ficava meio estranho. Durante o dia
pescávamos no rio Jaguari, o qual cortava parte do sítio,
só não podíamos ir lá quando chovia e o rio
ficava cheio, pois era perigoso. Comíamos frutas do pomar, andávamos
a cavalo e ficávamos longe das vacas, a não ser quando queríamos
correr, pois mexíamos com a mais brava que endoidecia e corria
atrás de nós.
Perto de casa havia um grande bambuzal, quando eu soube que esta era a
morada do saci e que quem o emborcasse com um rosário ficaria seu
dono sonhava em roubar sua carapuça e colocá-lo numa garrafa.
As meninas tinham medo e não queriam pegá-lo, evitavam passar
por lá. Os meninos riam de mim dizendo que saci não existia.
Por várias vezes fui sozinha ao bambuzal com um terço e
uma garrafa nas mãos, pois se o pegasse seria só meu, já
que ninguém ajudava. Só desisti o dia em que adentrei muito
entre os bambus e fiquei cheia de espinhos pequeninos os quais encontram-se
na sua casca, foi muito incômodo!
Apesar da liberdade por brincar sempre gostei de ler. Passava várias
horas do dia lendo. Devo isso aos contadores de histórias da minha
infância, minha avó e meu pai, que sempre me contavam histórias
desde quando eu era muito pequenina. Minha avó contava em italiano,
muitas das histórias foram trazidas de lá, eram um pouco
diferentes das que meu pai contava ou lia.
Quando fui para a primeira série e já começava a
dominar a leitura, a professora sugeriu que todos os alunos fizessem a
carteirinha na biblioteca pública municipal, a qual ficava na esquina
da escola e a três quadras de minha casa. Meu pai, grande incentivador
da leitura, disse-me que daquele momento em diante o mundo se abria para
mim e que eu poderia ler as histórias que escolhesse não
precisando mais depender apenas do seu repertório. Tornei-me uma
usuária assídua e em pouco tempo tinha lido todo acervo
infantil destinado à minha faixa etária; hoje me lembro
da expressão da “moça da biblioteca” quando
disse que não sabia mais o que dar para eu ler, pois não
havia livros novos e se eu não me importaria em levar livros repetidos.
Nem me incomodei, cada releitura era um mundo de diferentes nuanças
que a mim se apresentava.
Tornei-me uma leitora e dos nove aos treze anos li quase na totalidade
uma enciclopédia de três volumes que meu pai havia comprado.
Terminei a quarta série com destaque entre os alunos, sendo a primeira
classificada da escola. Segui meu caminho no ginásio e depois com
incentivo de minha mãe fui fazer o Magistério, na época
Escola Normal. Meu sonho era cuidar das pessoas doentes, seguir carreira
de enfermagem ou medicina, hoje casada com um profissional da saúde
penso que tomei o rumo certo. O trabalho na educação oferece
um universo bem mais maleável do que o encontrado na saúde,
nem sempre é possível reverter uma situação
de doença crônica ou em fase termina enquanto na educação
a pessoa terá sempre a possibilidade de ampliar seu universo de
conhecimentos.
Em busca do melhor, resolvi sair da cidadezinha do interior onde morava
para fazer uma faculdade renomada. Vim para a Unicamp, onde cursei Pedagogia
em período integral me formando no ano de 1983.
Casei-me, tive duas filhas e fui aprovada em concurso público municipal
para docência de 1ª a 4ª série do ensino fundamental.
Antes já havia trabalhado na APAE – Associação
de Pais e Amigos de Excepcionais por três anos e como auxiliar didático
na Faculdade de Educação da Unicamp, também por três
anos.
Teci um percurso de quase vinte anos na rede pública municipal
de Campinas, iniciando a carreira no ensino fundamental, passando pela
educação infantil e pelos cargos de orientadora pedagógica
e vice-diretora no ensino fundamental, bem como na educação
infantil. Atualmente no cargo efetivo de diretora educacional, realizo
um trabalho que procuro traduzir numa prática extensiva do meu
trabalho docente, no sentido de gerar espaços de reflexão
conjunta entre os diferentes saberes e as diferentes histórias
que compõem o universo escolar.
A participação no grupo de estudos CONPPEC – Construção
de Novas Práticas Pedagógicas no Ensino de Ciências,
trouxe-me momentos de reflexão da prática docente os quais
muito me auxiliam no atual trabalho. O contato direto com professoras,
suas alegrias e angústias fazem reviver em mim muitas das experiências
tidas em sala de aula, bem como estar mais próxima da equipe docente
da escola que dirijo.
Voltando um pouco no tempo, em função das discussões
que fazíamos no CONPPEC sobre a prática docente no final
da década de 90, pretendo alinhavar algumas das experiências
marcantes por que passei enquanto professora na escola pública.
Todo início de ano letivo tínhamos e ainda temos na escola
pública a primeira semana dedicada à elaboração
do planejamento anual.
Além desse trabalho, também utilizávamos essa semana
para a organização de materiais didáticos e da sala
de aula. Outra atividade prevista era um planejamento específico
da primeira semana de aula, o qual incluía o acolhimento dos alunos
e pais, bem como as atividades a serem desenvolvidas.
Um dado importante que deve ser salientado é que para ser realizado
todo esse trabalho disponibilizávamos em média apenas vinte
horas de trabalho, o que sempre considerei um espaço de tempo bastante
escasso para uma efetiva elaboração conjunta, com todas
as implicações de análise e integração
dos diversos pontos de vista. Hoje esse contexto tem apresentado significativas
modificações. O calendário escolar prevê mais
momentos para a reflexão do planejamento anual e do projeto pedagógico
da unidade escolar, contamos também com reuniões de formação
continuada e reuniões semestrais com o propósito avaliativo
da intenção pedagógica e verificação
de sua efetiva implementação.
Retomando a referência inicial sobre o planejamento anual, toda
escola possuía seu Projeto Político Pedagógico o
qual trazia consigo as propostas norteadoras do trabalho a ser realizado
nas unidades escolares da rede municipal de ensino de Campinas.
A partir dessa orientação, a escola traçava seus
objetivos de longo e curto prazo os quais abrangiam questões pertinentes
ao espaço físico, recursos humanos e materiais, bem como
das propostas de trabalho com todas a séries/turmas, com os pais
e com a comunidade. Todas essas questões estavam sempre alinhavadas
na proposta pedagógica e nos objetivos propostos.
Anualmente esses objetivos eram analisados e revistos o que resultava
em algumas propostas de mudança e outras de continuidade.
A partir daí estabelecia-se o planejamento anual das séries
sempre buscando um trabalho integrado entre si.
Esse planejamento era realizado de modo flexível no decorrer do
ano letivo, de forma a integrar os conhecimentos prévios do aluno,
como também focava o olhar para o significado que a proposta de
trabalho mobilizava neste aluno. A partir daí o planejamento se
entrelaçava nos interesses da classe, tornando-se um espaço
rico de construção de conhecimento, com propostas significativas
que integravam necessidades, criando um movimento de construção
conjunta.
Na busca de atingir esses objetivos enquanto professora de pré-escola
lançava mão de vários recursos pedagógicos
como: brinquedos, livros de literatura infantil, livro de obras de arte,
música, canto, poesias, teatro, vídeo, passeios diversos,
saídas pelo bairro, diferentes tipos de livros, bandinha rítmica,
piquenique, culinária, plantio, brincadeiras, relatos, contos,
brinquedos de “play ground”, massa de modelar, desenho, expressão
gráfica, argila, oralidade, trazer os funcionários da escola
para conversar com as crianças na sala de aula, etc. Oferecia aos
alunos diferentes situações lúdicas que permitiam
a eles desenvolverem-se sócio-culturalmente e também se
apropriarem das noções conceituais das diferentes áreas
de conhecimento como: linguagem oral e escrita, matemática, ciências,
artes, etc.
Esta proposta de trabalho que realizava com os alunos era recheada de
atividades intencionalmente planejadas, que tinham como pauta a mediação
na construção do conhecimento. Para isso fazia-se necessário
muito estudo, pesquisa de materiais, criação de atividades,
troca de idéias com as colegas e estar sempre buscando atualização
profissional, num movimento reflexivo da própria ação
pedagógica (Mc Niff, in ROSA).
Grande parte destas atividades causava-me um prazer especial, mesmo entendendo
que elas devessem ser consideradas inerentes ao currículo da educação
infantil.
Apresentar Monet, Van Gogh, El Greco era uma atividade diferenciada, possível,
na qual os alunos demonstravam grande interesse, sem traçar meandros
pela história da arte, mas refinando o olhar para o considerado
belo. Ao mesmo tempo a valorização das garatujas e dos desenhos
com características de realismo gorado, bem como a liberdade de
expressão nas cores utilizadas criava na sala de aula um ambiente
de descobertas onde os alunos descobriam a si mesmos e aos outros como
“outro” (SILVA, 2004), nas suas diferenças e semelhanças.
Trazer para a sala de aula o Sr. Marcelo (guarda da escola) para cantar
as músicas que gostava para os alunos, criava um ambiente de proximidade
e curiosidade entre os alunos, conhecer o humano no guarda da escola,
seus gostos, poder rir junto com ele era uma forma de perceber o humano
no profissional que nos acompanhava dia a dia e que poderia passar no
anonimato sendo apenas mais uma pessoa na escola. O mesmo acontecia com
a cozinheira e a servente que adoravam dançar, e nos momentos de
expressão corporal lá estavam elas: uma ensinando dança
de salão e a outra ensinando os alunos a sambar.
A variedade de estilos musicais fazia parte desses momentos, era encantador
ver o movimento causado nos alunos o qual ia da estranheza, no início
do ano, à variedade de gostos meses depois. A expressão
corporal criada livremente por eles através da música e
do teatro segundo algumas observações necessárias,
exigidas pelo gênero musical ou texto apresentado trazia um espaço
criativo que proporcionava trabalhar e perceber suas emoções
e organização de pensamento.
Outro momento especial era as saídas pelo bairro, nesses momentos
eles reconheciam o trajeto de casa, mostravam a casa da avó, conheciam
os cachorros, encontravam conhecidos, sentiam-se felizes em contar o que
sabiam. Depois trabalhávamos o trajeto feito e tudo mais que esta
atividade oferecia de forma significativa para o aluno, pois o prazer
aliado ao conhecimento era a minha meta com eles.
Todo o trabalho que realizava em sala de aula buscava estar pautado nessa
tônica. Os alunos gostavam da escola e sentiam falta dela em julho,
mês de recesso.
Em meio a todo esse aparato técnico surge também a mulher-mãe
que é professora.
Outro universo que caminha lado a lado com essa docente: cuidar da família,
filhos, marido trazia um certo sabor de impotência perante a grandeza
de todas as tarefas que realizava. Às vezes, pensava que não
seria capaz de fazer tudo isso. Buscar as filhas em escolas diferentes,
em horários diferentes numa cidade grande que apresentava um trânsito
caótico nos horários de “pico”. Muitas vezes
dirigindo o carro me pegava pensando na escola, nos alunos ou num trabalho
que pretendia realizar; logo me lembrava do supermercado, do almoço
do dia seguinte e do que iria comprar para o lanche da tarde. Nos finais
de semana me organizava para ver minha mãe no sábado (quando
não estava no encontro do CONPPEC), a qual sempre pedia minha presença
e mora em uma cidade vizinha. Vida maluca essa!
Não demorava muito e toda esta dificuldade começava a ser
esquecida e sentia que era forte o suficiente para dar conta de supermercado,
empregada, roupas dos filhos, etc. Apesar de todos os afazeres domésticos,
as reuniões do CONPPEC também encontrava tempo para fazer
cursos de atualização na área da educação.
Tarefas nada fáceis, mas que sempre acabava conseguindo.
Mesmo sendo tudo cronometrado, a situação de vida em que
me encontrava trazia-me certo conforto. Não precisava realizar
as tarefas da casa, pois contava com uma empregada doméstica que
me acompanhava há muitos anos, a qual cuidava da casa, fazia o
almoço e estava sempre conversando com minhas filhas na minha ausência.
Tratava-me muito bem e cuidava de mim como se cuidasse de uma filha. Esta
era uma situação diferenciada da maioria das minhas colegas
professoras. Lavar, passar, cozinhar, fazer faxina na casa, cuidar dos
filhos, não fazia parte do meu dia a dia. Serviço bastante
pesado que é a rotina da maioria das mulheres brasileiras e dentre
essas as colegas docentes.
Toda essa infra-estrutura para trabalhar foi conseguida com muito sacrifício
por mim e por meu marido na época em que iniciei minha carreira
docente. Minha filha tinha três anos, apesar de colocá-la
numa escola nem sempre o horário que eu dispensava ao trabalho
coincidia com o dela. Na época eu utilizava ônibus para ir
e vir do trabalho o que me deixava fora de casa das nove e meia da manhã
às quatro e meia da tarde, já que lecionava no horário
das onze às quinze horas na periferia de Campinas. Longe da minha
família e não contando com ninguém na cidade onde
morava, era necessário ter alguém em casa que pudesse ficar
com minha filha na minha ausência. Assim decidimos pela contratação
de uma empregada. Contudo, optei por trabalhar apenas quatro horas diárias,
para ter tempo de me dedicar à educação das minhas
duas filhas (a segunda filha, nasce três anos depois). Enfim, consegui
dar conta de tudo. Hoje minhas filhas são duas grandes amigas que
conquistei e que apóiam a minha trajetória profissional.
O marido, sempre companheiro em todas as horas, ainda hoje se faz presente
em tudo que realizo.
Como seria se eu não tivesse todo esse suporte para o trabalho?
Teria tido êxito? Sonhado tanto? Acreditado na possibilidade de
uma educação melhor? Seria uma professora diferente da que
fui? Abandonaria o emprego? Não sei!
Admiro minhas colegas que fazem tudo em casa, sonham com a educação
e são excelentes professoras, verdadeiras educadoras de corpo e
alma!
Encantar-se com a produção de um aluno nos remete a um mundo
de sonhos e de um certo romantismo pedagógico, ao concebermos que
os meninos e as meninas são dotados de um potencial que podem torná-los
(as) grandes pessoas, que venham contribuir para um futuro melhor e mais
humano.
Às vezes me pego um pouco triste e também muitas vezes me
desencantei com os caminhos por que trilha a educação no
nosso país, se bem que esses sentimentos são fagulhas que
se perdem num universo de confiança no trabalho que se faz.
Lembro-me das conversas em nossos encontros no CONPPEC onde refletíamos
que a docência é recheada de momentos prazerosos únicos.
Únicos porque acontecem num espaço tempo singular com a
cumplicidade de quem as viveu. Muitas vezes nos deliciamos ouvindo o relato
das colegas, nos identificando nos prazeres e angústias.
Esses encontros realizados no grupo de estudo se traduzem num espaço
democrático de vivência profissional, crescimento e compartilhamento
de expectativas, dúvidas e certezas.
Penso em relatar um dos momentos de prazer que a vida de professora me
proporcionou, afinal o que mais agrada num professor é contar histórias
de seus alunos.
Lembro-me do caso de um garotinho, que foi meu aluno na pré-escola.
Esse fato marcou a minha vida e carrego essa lembrança sempre comigo.
“Início de ano, o menino vai ser meu aluno.
Seu nome: Daniel .
Menino pobre como muitos da nossa escola pública. Franzino, sempre
trajando roupas usadas, sujinho, cabelo despenteado (parece que não
toma banho regularmente), quando anda, o calcanhar sai fora do tênis
sujo e surrado, denunciando que fica o tempo todo de pé no chão,
na terra.
Daniel não escuta, é surdo.
Oito horas da manhã, vem trazido pela mãe, pessoa de pouco
trato, parece que não toma banho a uns dois dias. Cabelos encaracolados
um pouco crescidos por demais, faltam-lhe alguns dentes no canto esquerdo
da boca que percebe-se muito bem quando sorri ou fala inundando o seu
redor com o cheiro forte de cigarros baratos, tragados até queimar
a ponta dos dedos.
Cara fechada, brava ela chacoalha o menino que reluta em entrar na porta
da escola, vencido nesse obstáculo ele tenta em vão mais
um último recurso, joga-se no chão para transformar-se num
pesado fardo de resistência, emite alguns sons que não fazem
sentido à nossa linguagem convencional, não quer entrar
na sala de aula, recusa-se a ficar com a professora.
A mãe olha com severidade para o filho, segura firme em seu braço
e o entrega para mim, a professora.
Daniel é desobediente e teimoso. Faz gestos obcenos, e se satisfaz
com isso quando não quer participar das aulas. Um menino... de
apenas seis anos.
Acreditando nesse aluno enxerguei a possibilidade de ampliar seu universo
nas relações interpessoais/sociais e cognitivas e resolvi
enfrentar esse desafio. Sabia que não seria nada fácil.
No começo era imprescindível que eu estabelecesse um rapport
com esse aluno que se traduziria num canal para as mudanças pretendidas.
O respeito e atenção a ele dedicada foram suficientes para
sentir-se aceito e começar a estreitar relações comigo
e com os colegas de classe.
No início, a mãe duvidava que isso era possível,
principalmente no que se referia à melhora das atitudes no comportamento
de seu filho.
Por um bom tempo, a paciência e a compreensão da educadora
era indispensável, não significando que as regras combinadas
pudessem ser desconsideradas. Firmeza, respeito e ver no aluno um grande
potencial foram os segredos do sucesso.
Mostrando-se cada vez mais sociável, após alguns meses a
situação começa a apresentar um novo contorno. Daniel
interage com os colegas, participa das atividades (ele dizia-se incapaz
de desenhar, rasgava o trabalho dos colegas, e tudo mais...), adora mostrar
seus trabalhos na classe, às funcionárias e para a professora;
tem orgulho da sua produção.
Participa das brincadeiras, fica feliz quando canta no microfone é
aplaudido pelos colegas apesar de apenas emitir sons sem sentido. É
feliz e respeitado por todos.
Com a insistência da escola, apoio da direção, orientação
pedagógica, professora itinerante , os pais voltam a procurar a
entidade para portadores de deficiência auditiva, a qual havia sido
abandonada pelos mesmos.
Daniel recomeça a freqüentá-la e reinicia contato com
a linguagem de sinais, se comunica através dela comigo, com os
pais, e com os amigos de classe, que aprenderam alguns desses sinais para
comunicarem-se melhor com ele.
Durante esse ano, essa criança cresceu como ser humano acreditou
que podia fazer muitas coisas e foi feliz.
A turma toda, eu como professora e acredito que todos que se envolveram
com Daniel, aprenderam muito e hoje carregam consigo uma grande lição
de vida.
A experiência foi marcante e maravilhosa.
Daniel foi para a primeira série, mas esta é uma outra história”.
Trabalhar com os alunos considerados “difíceis”
no meio escolar sempre foi para mim um dos grandes prazeres da docência,
tenho muitas histórias para contar colhidas ao longo da minha profissão.
Acreditar no potencial do aluno e realizar um trabalho que busca unir
a afetividade aos conteúdos do currículo da escola sempre
me causou grande satisfação.
Por outro lado, perceber os entraves que impedem que esse tipo de situação
escolar se efetive traz-me grande preocupação, pois entendo
que trabalhamos com vidas humanas, e parto do pressuposto que todos são
capazes. Entender as amarras das políticas públicas com
salas de aula super lotadas, professores mal pagos que acumulam cargos,
às vezes trabalhando em três períodos me angustia
muito.
Ouvindo as transcrições das fitas de áudio que retratam
a discussão do grupo sobre angústias, fica também
muito clara a questão da violência (preocupação
que compartilho com o grupo) que interpenetra o espaço escolar,
mobilizando reflexões, emoções e por que não
dizer medo, o qual apesar de nunca aparecer literalmente nas nossas falas,
percebe-se nitidamente através da necessidade que relatamos em
sermos fortes para enfrentar situações que nos amedrontam,
as quais não aprendemos a lidar nos bancos escolares.
No ensino fundamental, a violência se faz presente nas brigas entre
os alunos, no afrontamento destes com seus professores e outros profissionais
da escola. Essa violência também se manifesta na própria
comunidade, a qual para sobreviver se reveste de uma certa rigidez em
relação às situações de vida que enfrentam,
naturalizando de certa forma esse modo de vida.
Já a educação infantil traz um contorno da violência
de um jeito bastante diferenciado do que acontece no ensino fundamental.
As crianças relatam casos que presenciam/sofrem física,
moral e emocionalmente como podemos ouvir em vários relatos das
gravações dos nossos encontros.
Muitas vezes refletimos sobre porque em meio a tantos conflitos de ordem
pessoal e profissional ainda nos mantemos na Educação.
A angústia que toma conta de nós educadoras quando nos perguntamos
se estamos realmente preparadas (escola e profissionais) para oferecer
aos alunos o sonho e a certeza de um novo caminho muito me incomoda, no
entanto acredito que posso sempre realizar um trabalho que busca a superação
dessas questões. Nessas horas penso que minha infância retrata
um pouco a persistência que demonstro no trabalho, antes insistia
em ter amigos para brincar, queria ser amiga do saci, hoje acredito que
tudo é possível com muito empenho e dedicação,
entendo que nas situações mais difíceis e tristes
é possível vislumbrar centelhasfagulhas indicativas para
um caminho melhor. É preciso ler as situações difíceis
com o vocabulário da alma e do conhecimento, ficar atenta ao senso
comum que naturaliza tudo, tendendo a manter situações que
necessitam de superação.
Entendo que um projeto político-pedagógico coerente com
a realidade da escola e da comunidade auxilia na construção
de espaços democráticos de saber que contribuem na busca
da superação das desigualdades e injustiças de origens
sociais e culturais dos alunos, entendo também que o Estado deve
cumprir seu papel de facilitador implementando políticas que promovam
um cidadão respeitado.
Além disso, penso ser indispensável que a escola se reestruture
num espaço onde alunos e professores possam refletir sobre essas
questões, sobre suas angústias pessoais, seus sonhos, seus
desejos, tendo garantido o direito de traçar seus caminhos, consciente
de seu fazer no mundo reconhecendo-se como ser planetário (MORIN,
2000).
Penso que o que me faz continuar é o sonho. O prazer de ver um
sorriso estampado no rosto do aluno e saber que sempre é possível
avançarmos quando a interlocução aluno/professor
se traduz num movimento de pensamento- linguagem –afetividade (MOURA,
...)
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ROSA, Maria Inês F. P. S. A Pesquisa Educativa no Contexto da Formação
Continuada de
Professores de Ciências. Campinas, SP, Tese de Doutorado - Faculdade
de Educação -
Unicamp. 2000