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O
CONTO POPULAR BRASILEIRO E DE FADAS COMO UMA ALTERNATIVA NAS AULAS DE
LEITURA PARA ALUNOS DE EJA
Cilene Vicente dos Santos - EM Prof. André Franco Montoro –
Vinhedo/ SP
1. ERA UMA VEZ...
Neste trabalho
não pretendo fazer uma crítica literária e nem uma
crítica lingüística do conto popular brasileiro e/
ou do de fadas, mas mostrar uma nova alternativa de abordagem de textos
literários nas aulas de leitura na Educação de Jovens
e Adultos (EJA) do 2º segmento do Ensino Fundamental (5ª - 8ª
série). Foi dentro de uma nova proposta que este trabalho foi formulado,
tendo em vista que o currículo de EJA permite uma maior flexibilidade,
uma vez que o conteúdo deve ser adequado, pensado em relação
às características dos alunos.
É
de conhecimento público que há uma falta de material específico
para se trabalhar com alunos adultos no Ensino Fundamental. O Ministério
da Educação e Cultura – MEC (2002) reconhece essa
falta:
O fato de
uma grande parte (47,82%) dos professores entrevistados declarar que usa
exclusivamente o livro didático em suas aulas, ou cópias
de textos (54,65%), mostra que a diversidade não está sendo
explorada em toda sua potencialidade. Preocupante é também
o fato de que a maioria dos livros didáticos adotados se destina
ao Ensino Fundamental que tem como leitor virtual o adolescente de 11
a 15 anos, enquanto os alunos de EJA têm uma experiência acumulada
muito diferente. Por outro lado, sabe-se que o professor tem poucas alternativas,
pois é muito pequena a oferta de materiais didáticos específicos
para os cursos de EJA. Para aproximar o trabalho das reais necessidades
dos alunos, uma alternativa é o trabalho com textos em seus suportes
de origem – como alguns professores declaram já vir fazendo.
(MEC, 2002:68)
Além
disso, é necessário saber quem é o aluno de EJA para
que se possa pensar uma proposta curricular:
Determinar
claramente a identidade de um curso de EJA pressupõe um olhar diferenciado
para seu público acolhendo de fato seus conhecimentos, interesses
e necessidades de aprendizagem. Pressupõe também a formulação
de propostas flexíveis e adaptáveis às diferentes
realidades, contemplando temas como cultura e sua diversidade, relações
sociais, necessidades dos alunos e da comunidade, meio ambiente, cidadania,
trabalho e exercício da autonomia. (MEC, 2002:80)
Na falta
de material didático adequado os alunos “mais velhos”,
passei a pesquisar novos materiais e propostas, e senti a necessidade
de introduzir textos literários em minhas aulas de leitura. A escolha
do conto popular brasileiro e de fadas se deu, principalmente, pelas características
universais que este apresenta. Sua simbologia e estrutura permitem ao
aluno, mesmo àquele que não tem hábito de leitura,
reconhecer elementos e mobilizar conhecimentos anteriores (pré-construído)
e associá-los a outros discursos e textos (memória discursiva).
Nos contos populares temos uma linguagem simbólica muito forte,
e sobre este ponto, Fromm (1966) diz que:
O símbolo
universal é o único onde a relação entre o
símbolo e o simbolizado não é pura coincidência,
mas algo intrínseco. Ele tem suas raízes na experiência
de afinidades entre uma emoção ou pensamento, de um lado,
e uma experiência sensorial, do outro. Pode ser denominado universal
por ser partilhado por todos os homens, ao contrário não
só do símbolo acidental, pela própria natureza inteiramente
pessoal, mas também do símbolo convencional, restrito a
um grupo de pessoas, que adotam a mesma convenção. O símbolo
universal está implantado nas propriedades de nosso corpo, de nossos
sentidos e de nossa mente, comuns a todos os homens e, por conseguinte,
não restritos a indivíduos ou grupos específicos.
Com efeito, a linguagem do símbolo universal é a única
língua comum elaborada pela raça humana, uma língua
esquecida por esta antes de lograr criar uma linguagem convencional universal.
(Fromm, 1966:21)
Os contos
populares, especialmente o de fadas, muitas vezes foram classificados
como Literatura Infantil e, por este motivo, esquecidos pelos professores
quando trabalham com adultos. Sílvio Romero enquadra os contos
populares dentro das primeiras manifestações do gênero
no Brasil e a importância deste tipo de literatura é inquestionável,
pois por ser de tradição oral, reflete em suas histórias:
a cultura, a moral, os valores, ou seja, o modo de viver de um povo. Coutinho
(2004:45) afirma que “(...) os contos populares (...), não
obstante seu freqüente conteúdo filosófico, seu profundo
simbolismo humano, a malícia e o imprevisto de sua finalidade deliberadamente
moralizadora, pertencem antes à nossa literatura oral.” E
acrescenta (2004:77) que “(...) conceber a literatura não
é fazer crer que o fenômeno literário é como
uma bólide no espaço, sem contato com o ambiente social
e histórico, retirando-lhe assim qualquer significado humano.”
Por serem
passados oralmente de geração em geração,
os contos populares foram sendo recontados sempre a partir de uma nova
perspectiva sócio-histórica e foram-lhes atribuindo novos
sentidos. Sobre os contos de fadas, o psicanalista Bettelheim (1999) concluiu
que:
Através
dos séculos (quando não dos milênios) durante os quais
os contos de fadas, sendo recontados foram-se tornando cada vez mais refinados,
e passaram a transmitir ao mesmo tempo significados manifestos e encobertos
– passaram a falar simultaneamente a todos os níveis da personalidade
humana, comunicando de uma maneira que atinge a mente ingênua da
criança tanto quanto a do adulto sofisticado. (Bettelheim, 1999:14)
Nas aulas
de EJA, foram analisados três contos populares: Cinderela ou o Sapatinho
de Cristal de Perrault, Cinderela (versão alemã) e Maria
Borralheira (conto brasileiro).
2. O CONTO POPULAR BRASILEIRO E DE FADAS NAS AULAS DE LEITURA DE EJA
O “projeto
de leitura” foi desenvolvido no 2º bimestre do 1º semestre
de 2005 com três classes (1TA, 2TA e 3TA) da EM Professor André
Franco Montoro – Vinhedo/ SP, onde leciono Língua Portuguesa.
Os objetivos são: ampliar o repertório textual dos alunos,
entender as características dos contos populares, acompanhar com
atenção a leitura em voz alta, trazer à atenção
dos alunos para os diferentes efeitos de sentido e produção
de textos verbais/ não-verbais.
Selecionei
um conto extremamente difundido e que acreditei ser conhecido de todos
os alunos – Cinderela. O trabalho teve o seguinte desenvolvimento:
1. Os alunos
escreveram a história que conhecem de Cinderela.
2. Os alunos foram orientados a que prestassem atenção à
leitura em voz alta das três diferentes versões de Cinderela.
3. Registro verbal ou não-verbal (desenho) de cada versão
das histórias após a leitura.
4. Produção de duas tabelas: personagens (TABELA 1) e enredo
(TABELA 2).
5. Discussão sobre algumas imagens/ trechos selecionados pelos
alunos.
6. Produção textual de auto-avaliação.
7.
As tabelas foram feitas a partir das anotações dos cadernos
dos alunos. A classe foi dividida em grupos de no máximo três
pessoas e após a discussão nos grupos, cada grupo apresentou
a sua versão das tabelas e a classe decidiu por uma tabela única
para cada tema (personagens e enredo). O resultado foi o seguinte:
TABELA
1
versões
personagens |
Perrault |
Alemã |
Brasileira |
1.
Cinderela |
Boa, ingênua, bonita e abnegada. |
Boa, ingênua e bonita. |
Esperta. |
2.
“irmãs” |
Más, arrogantes e mandonas. |
Más, arrogantes e mandonas. |
Obedientes
à mãe. |
3.
madrasta |
Má, arrogante. |
Má e ambiciosa. |
Má
e ambiciosa. |
4.
pai |
Aparece só no 1º parágrafo. |
Conivente com a situação. |
Submisso
à esposa. |
5.
príncipe |
Apaixonado. |
Apaixonado
e ciumento. |
Apaixonado. |
TABELA 2
versões
enredo |
Perrault |
Alemã |
Brasileira |
1.
casamento do pai |
“Fidalgo que se casou em segundas núpcias”. |
Morte da esposa e segundo casamento em poucos meses. |
Viúva
insiste para que Maria convença seu pai a se casar com ela. |
2.
“madrinha” |
Madrinha que era uma fada. |
Aveleira do túmulo da mãe de Cinderela. |
Vaquinha
dada pela mãe de Maria. |
3.
baile/ festa |
Dois dias de baile no castelo. |
Três dias de baile no castelo. |
Três
dias de festa na igreja. |
4.
sapato |
Sapatinho de cristal. |
Sapatinho de ouro. |
Chapim
de ouro. |
5.
desfecho |
Cinderela
perdoa as irmãs e arruma casamento para elas. |
As
irmãs comparecem ao casamento e ficam cegas. |
Madrasta
morre ao ver Cinderela casada. |
Toda leitura passa por um processo de interpretação, de
atribuição de sentidos; tendo isto em mente, os alunos selecionaram
trechos para serem discutidos a partir das relações semânticas
que estabeleciam com os conhecimentos anteriores que eles têm. A
primeira discussão passou pela imagem da madrasta.
(...) Mal
foi celebrado o casamento, a madrasta já começou a mostrar
o seu mau humor.
Cinderela - Perrault
A nova mulher trouxe com ela suas duas filhas, que eram alvas e belas
externamente, mas negras e más de coração. Começou
o infortúnio para a pobre órfã.
Cinderela – versão alemã
(...) A menina pegou e falou ao pai para casar com a viúva, porque,
“ela era muito boa e agradável”. (...) o pai respondeu:
“Minha filha, ela hoje te dá papinhas de mel; amanhã
te dará de fel”. (...) Tudo que havia de mais aborrecido
e trabalhoso no trato da casa, era a órfã que fazia.
Maria Borralheira – conto brasileiro
Para a maioria dos alunos era natural que a madrasta provocasse o sofrimento
de Cinderela e favorecesse suas filhas biológicas. O mesmo não
aconteceu com a imagem do pai de Cinderela, que era omisso aos maus tratos
sofridos pela filha; ao contrário, a versão alemã
causou uma “revolta” nos alunos, pois em nenhum momento o
pai se refere à Cinderela como sua filha e a chama sempre pelo
nome.
Um dia, em que o pai ia a uma grande feira, ele perguntou às suas
duas lindas filhas o que desejariam que lhes trouxesse. (...) E tu, Cinderela,
que é que tu queres? (...) O pai disse: “Será a Cinderela?”
E mandou que lhe trouxessem um machado e uma machadinha para arrombar
a porta do pombal.
(...) Ele
[o príncipe] fez meia-volta com o cavalo e devolveu a falsa noiva
à sua casa. “Ainda não é esta”, disse
ele. “Não tendes outra filha?” “Não”,
respondeu o pai, “a não ser a da minha primeira mulher, a
coitadinha da Cinderela, que fica lá toda suja, no meio das cinzas;
mas não pode ser ela”.
Ainda na versão alemã, quando a mãe pede que as filhas
se mutilem para poder calçar o sapatinho de ouro que pertencia
a Cinderela, os alunos acharam a situação cômica e
não trágica, pois só numa situação
de comédia é que aceitariam a possibilidade absurda de colocar
a ambição antes da integridade física das filhas.
(...) a mais velha pegou o sapatinho e foi para se quarto experimentá-lo,
enquanto a mãe a observava. Mas o dedo grande do pé não
entrava no sapato, que era muito pequeno. A mãe entregou-lhe então
uma tesoura e falou: “Corta o dedo; quando fores rainha não
terás necessidade de andar a pé”. (...) A outra foi
para o seu quarto, a fim de fazer a tentativa; os dedos entraram facilmente,
mas o calcanhar é que era muito grande. A mãe estendeu-lhe
então uma faca e disse: “Corta o calcanhar; quando fores
rainha não terás mais necessidade de andar a pé”.
Para alguns dizer que a madrasta é má, é uma redundância.
Em quase todos os contos populares a imagem de malvada é intrínseca
a madrasta. Monteiro Lobato (1996?), que é considerado um dos maiores
escritores infantis, traz a evidência esta simbologia ao explicar
o conto popular brasileiro A Madrasta:
? E há
ainda um traço delicado – disse dona Benta – esse das
cabeleiras das meninas que viraram capinzal murmurejante ao vento. Aparece
também a figura da madrasta, que é muito comum nas histórias
populares. Toda madrasta tem que ser má. O povo não admite
a possibilidade de madrasta boa.
? E não
há – disse Narizinho. – As que eu conheço, como
a madrasta da Quinota e a da Maricoquinha, não chegam a ponto de
enterrar crianças vivas – mas boas não são.
? E a do Zeferininho da Estiva, que dava na cabeça dele com a colher
de pau? – acrescentou Pedrinho.
? Sim –
disse dona Benta. – Talvez a regra seja a madrasta má, embora
as haja excelentes. Sei de dois casos de madrastas boníssimas,
quase como mães. Tudo depende da criatura, e não do ato
de ser mãe ou madrasta. Há mães tão perversas
como as piores madrastas.
? Mas o povo
assentou que as madrastas não prestam e não prestam mesmo
– concluiu Emília. O coitado do povo sofre tanto que há
de saber alguma coisa. Esse ponto da madrasta má o povo sabe. São
más como caninanas – embora haja alguma degenerada que seja
boa. Madrasta boa não é madrasta. Para ser madrasta, tem
que ser uma bisca das completas. Eu, se pilhar alguma por aqui, furo-lhe
os olhos. (Lobato, 1996?:XI)
Aqui aparece outro pré-construído, além da madrasta
má, a de que a “voz do povo é a voz de Deus”,
ou seja, o povo sempre tem razão naquilo em que acredita. Além
disso, o fato de Narizinho e Pedrinho identificarem os enteados que sofrem
nas mãos de suas madrastas (Quinota, Maricoquinha, Zeferininho)
em contraste a dona Benta dizer que conhece dois casos sem dar muitos
detalhes, serve como um meio de reforçar a idéia defendida:
“Talvez a regra seja a madrasta má”. Sobre a madrasta
Darnton (2001) afirma:
Comer ou não comer, eis a questão com que os camponeses
se defrontavam, em seu folclore, bem como em seu cotidiano. Aparece em
inúmeros contos, muitas vezes em relação com o tema
da madrasta má, que deve ter tido especial ressonância em
torno às lareiras do Antigo Regime, porque a demografia do Antigo
Regime tornava as madrastas figuras extremamente importantes na sociedade
das aldeias. Perrault fez justiça ao assunto, em “Cinderela”,
mas negligenciou o tema correlato da subnutrição, que se
destaca nas versões camponesas do conto. (Darnton, 2001:50)
A importância das madrastas na França dos séculos
XVII e XVIII ocorria porque:
Terminados
com a morte, e não com o divórcio, os casamentos duravam
uma média de quinze anos, metade da duração que têm
na França de hoje. (...) As madrastas proliferavam por toda parte
– muito mais que os padrastos, porque o índice de novos casamentos
entre as viúvas era de um em dez. os filhos postiços podem
não ter sido tratados como Cinderela, mas as relações
entre os irmãos, provavelmente, eram difíceis. Um novo filho,
muitas vezes, significava a diferença entre pobreza e indigência.
Mesmo quando não sobrecarregava a despesa da família, podia
trazer a penúria para a próxima geração, aumentando
o número de pretendentes, quando a terra dos pais fosse dividida
entre seus herdeiros. (...) Os camponeses, no início da França
moderna, habitavam um mundo de madrastas e órfãos, de labuta
inexorável e interminável, e de emoções brutais,
tanto aparentes como reprimidas. A condição humana mudou
tanto, desde então, que mal podemos imaginar como era, para pessoas
com vidas realmente desagradáveis, grosseiras e curtas. É
por isso que precisamos reler Mamãe Ganso (Darnton, 2001: 44-45,
47)
A explicação histórica sobre a imagem criada da madrasta
má nos ajuda a entender, a aceitação das aflições
provocadas por estas as enteadas, pois se tratava de uma questão
de sobrevivência em uma época em que era escasso os alimentos
e as condições de vida eram extremamente precárias.
Outro pré-construído
é que a heroína ou a “mocinha” deve ser sempre
boa, não lhes é admitido que pensem ou façam mal
a alguém, mesmo ao seu pior inimigo. A compaixão e o perdão
parecem ser regras sempre aplicadas aos heróis. Este ponto foi
reforçado no final de Cinderela de Perrault:
Foi então que suas irmãs a reconheceram como sendo a linda
princesa que tinham visto no baile. Elas se atiraram aos seus pés
para pedir perdão por todos os maus tratos que lhe tinham feito.
Cinderela fez as duas se levantarem e disse, abraçando-as, que
as perdoava de bom coração e lhes pedia que a amassem sempre.
(...) Cinderela, que tanto tinha de bela quanto de bondosa, levou as irmãs
para o palácio e casou as duas, naquele mesmo dia, com dois ricos
fidalgos da corte.
Nas outras duas versões, o final surpreende pois as inimigas de
Cinderela são castigadas pelo sofrimento que causaram a heroína.
E quando se celebraram as núpcias, as duas irmãs compareceram,
fingindo alegrar-se com a felicidade da irmã mas na realidade estavam
roídas de inveja. Na igreja, a mais velha postou-se à esquerda
da noiva e a mais nova à direita; e cada um dos pombos furou um
olho da que estava do seu lado. Ao saírem da igreja, a mais velha
ficou à direita da noiva e a mais nova à esquerda; e cada
um dos pombos furou o outro olho da que estava do seu lado. E assim elas
foram castigadas por sua malvadez e falsidade, ficando cegas pelo resto
de suas vidas. (versão alemã)
Houve muita alegria e festas; a madrasta teve um ataque e caiu para trás,
e Maria foi para o palácio e casou o filho do rei. (conto brasileiro)
Num processo de identificação, que possibilita a aceitação
de uma “mocinha” esperta no lugar de uma heroína “tonta”
e extremamente boa, os alunos defenderam a versão brasileira como
a mais interessante. Isso foi justificado pela afirmação
de o povo brasileiro ser esperto e “safo”, o que chamaram
de “jeitinho brasileiro”.
Maria, que estava atrás da porta, apareceu já toda formosa
com os chapins de ouro nos pés e estrela de ouro na testa, e quando
falava saíam-lhe da boca faíscas de ouro. Amarrou um lenço
na cabeça, fingindo doença, para esconder a estrela, e tirou
os chapins dos pés, e foi-se embora para casa. Quando lá
chegou entregou o fato e foi para o seu borralho. Passados alguns dias,
as filhas da madrasta lhe viram a estrela e perceberam as faíscas
de ouro que lhe saíam da boca, e foram contar à mãe.
Ela ficou com muita inveja, e disse às filhas que indagassem da
Borralheira, o que é que se devia fazer para se ficar assim.
Elas perguntaram
e Maria disse: “É muito fácil; vocês peçam
para ir também por sua vez lavar o fato de uma vaca no rio; depois
de lavado botem a gamela com ele pela correnteza abaixo e vão acompanhando;
quando encontrarem um velhinho muito feridento, metam-lhe o pau, e dêem
muito; mais adiante, quando encontrarem uma casa com uns cachorros e gatos
muito magros, emporcalhem a casa, desarrumem tudo, dêem nos bichos
todos, e escondam-se atrás da porta e deixem estar que, quando
vocês saírem, hão de vir com chapins e estrelas de
ouro”. Assim foi.
(...) Quando as donas da casa chegaram e viram aquele destroço,
a mais moça disse: “Manas, faiemos, manas: permita a Deus
que quem tanto mal nos fez lhe apareçam cascos de cavalo nos pés.”
A do meio disse: “Permita a Deus que quem tanto mal nos fez, lhe
nasça um rabo de cavalo na testa”. A terceira disse: “Permita
Deus que quem tanto mal nos fez, quando falar lhe sai porqueira de cavalo
pela boca”. As duas moças, quando saíram de detrás
da porta já vinham preparadas com seus enfeites. Quando falaram,
ainda mais sujaram a casa das velhinhas. Largaram-se para casa e quando
a mãe as viu, ficou muito triste. (conto brasileiro)
Historicamente, a esperteza não é encarada como falta de
caráter, mas como uma forma do oprimido se colocar diante do opressor.
Darnton (2001), ao falar sobre a relação estreita entre
os contos populares franceses e o Antigo Regime, afirma que:
A velhacaria sempre joga o pequeno contra o grande, o pobre contra o rico,
o desprivilegiado contra o poderoso. Estruturando as histórias
dessa maneira, e sem explicitar o comentário social, a tradição
oral proporcionou aos camponeses uma estratégia para lidar com
seus inimigos, nos tempos do Antigo Regime. Mais uma vez, é preciso
enfatizar que nada havia de novo ou de incomum no tema dos fracos vencendo
os fortes, pela esperteza. (...) O que importa não é a novidade
do assunto, mas sua significação – a maneira como
ele se enquadra na estrutura de um relato e toma forma quando é
narrado um conto. (Darnton, 2001: 82)
E completa:
Em última
instância, então, a velhacaria expressava uma orientação
relativa ao mundo, mais do que uma variedade latente de radicalismo. Proporcionava
uma maneira de lidar com uma sociedade dura, em vez de uma fórmula
para subvertê-la. (Darnton, 2001: 86)
3. E VIVERAM
FELIZES PARA SEMPRE...
A partir
da leitura dos primeiros textos dos alunos, pude perceber que a versão
que conheciam é a da Disney. Fiquei surpresa ao constatar que muitos
alunos não conheciam a história e alguns homens disseram
que até sabiam mais ou menos o “assunto” do conto,
mas nunca lhe contaram a história por ser considerado como história
para meninas. Houve uma preferência pelo registro não-verbal
das histórias e a auto-avaliação apontou que leitura
do conto remetia a infância e a necessidade de imaginar/ sonhar
com um final feliz.
Encerro este
trabalho com as palavras de Darnton (2001), que sintetizam o que penso
sobre o valor dos contos populares e sobre a importância da leitura
destes no curso de EJA:
(...) Os contadores de histórias camponeses não achavam
as histórias apenas divertidas, assustadoras ou funcionais. Achavam-nas
“boas para pensar”. Reelaboravam-nas à sua maneira,
usando-as para compor um quadro da realidade, e mostrar o que esse quadro
significava às pessoas das camadas inferiores da ordem social.
No processo, infundiam aos contos muitos significados, cuja maioria se
perdeu, porque estavam inseridos em contextos e desempenhos que não
podem ser reconstituídos. Em linhas gerais, no entanto, parte do
significado ainda se evidencia através dos textos. (...) Mesmo
depois de absorvidas pelas principais correntes da cultura moderna, são
testemunhas de uma antiga visão de mundo. (...) Plus ça
change, plus c´est la même chose. (Darnton, 2001: 92, 93)
4. REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BETTELHEIM,
Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução
Arlene Caetano. 8ª edição. São Paulo: Paz e
Terra, 1990.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução á
análise do discurso. 2ª edição ver. Campinas:
Editora da UNICAMP, 2004.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria
de Educação Fundamental. Proposta curricular para a educação
de jovens e adultos: segundo segmento do ensino fundamental: 5ª a
8ª série: introdução. Vol. 1. Secretaria de
Educação Fundamental, 2002.
COUTINHO, Afrânio (org.) e COUTINHO, Eduardo de Faria (dir.). A
literatura no Brasil: Preliminares -Introdução. Vol. 1.
7ª edição. São Paulo: Global Editora, 2004.
¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬__________,
Afrânio (org.) e COUTINHO, Eduardo de Faria (dir.). A literatura
no Brasil: Relações e perspectivas - Conclusão. Vol.
6. 7ª Edição. São Paulo: Global Editora, 2004.
DARNTON, Robert. “Histórias que os camponeses contam: O significado
de Mamãe Ganso”. In: O grande massacre de gatos e outros
episódios da história cultura francesa. Tradução
de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
FROMM, Erich. A linguagem esquecida: uma introdução ao entendimento
dos sonhos, contos de fadas e mitos. Tradução Octavio A.
Velho. 3ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.
LOBATO, Monteiro. “A madrasta”. In Obra infantil completa.
Vol. 3. São Paulo: editora Brasiliense, 1996?.
ORLANDI, Eni P. “Do sujeito na História e no Simbólico”
e “Ponto Final: interdiscurso, Incompletude, Textualização”.
In: Discurso e Texto: formação e circulação
de sentidos. Campinas: Pontes, 2001.
_________, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos.
Campinas: Pontes, 2003.
PÉCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica
à afirmação do óbvio. Tradução
Eni P. Orlandi. 3ª edição. Campinas: Editora da UNICAMP,
1997.
PERRAULT, Charles. “Cinderela ou o Sapatinho de Cristal” e
“Cinderela”. In: Contos de Perrault. Tradução
Regina Regis Junqueira. Belo Horizonte: Villa Rica Ed., 1999.
ROMERO, Sílvio. “Maria Borralheira”. In: Folclore Brasileiro:
Contos populares do Brasil.Belo Horizonte: editora Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1985.
ANEXOS
TEXTO 1
Achei interessante a parte em que os passarinhos catava as azeitonas na
cinza para a Cinderela, e a parte em que a mãe mandou a filha cortar
os dedos do pé, e a outra o calcanhar dizendo que se casase com
o principe não ia precisar andar a pé.
Me fez lembrar o meu passado quando conheci o meu marido. Ele namorava
uma moça e eu me apaixonei por ele e o tempo passou eles terminaram,
e eu então consegui o que eu esperava e hoje temos um casal de
filhos posso dizer somos uma família feliz.
TEXTO 2
Essa história da Cinderela na realidade tenhe muita gente que passa
por iço com eu.
TEXTO 3
A versão que mais se identifica comigo eu acho que é a versão
brasileira, que tem o jeitinho de Brasileiro mesmo, a Cinderela é
astuta, esperta, trabalhadeira, bonita e as irmãs eram pau mandado
da mãe. Ai se parece com minha história, meus irmãos
eram pau mandado da minha mãe adotiva, judiavam de mim tinham ciúmes
e inveja de mim, porque meu pai me protegia, minha mãe mandava
ele arrumar namorado para mim, até que um dia o Flávio arrumou
mesmo um namorado pra mim, e eu tinha 13 anos e ele 25 anos. Eu não
gostava dele, pois ele já era um alcolótra mais minha mãe
e meu irmão tramarão tudo, ele arrumou o namorado pra mim
e minha mãe me obrigou a se casar com ele, eu com 14 anos de idade
me casei com uma pessoa que eu não gostava e vivi 11 anos com ele,
o que quer dizer vegetei 11 anos e não vivi 11 anos, me separei
e casei novamente com aquele que eu escolhi e vivo bem Graças a
Deus.
TEXTO 4
Meu pai é viúvo, minha irmã cuidou dos irmãos,
minha fada-madrinha foi minha mãe. E não tem mais nada.
TEXTO 5
Eu gostei mais da versão brasileira tem mais perseguição
parece com um pessoa próxima que eu conheço que era sempre
perseguida por alguém tem a Maria que intercede ao pai para se
casar com a velha também gostei da vaquinha milagrosa porque minha
mãe é viúva e tinha uma vaquinha e foi graças
ao leite e os filhotes que ela nos deu que minha mãe conseguiu
criar 6 filhos sozinha só não apareceu um príncipe
para casar com Cinderela e seus 6 filhos.
TEXTO 6
Eu gostei mais do conto de fadas brasileiro porque, existia, uma coisa
mística nela e eu gosto dessas coisas. Eu não identifico
com nenhum desses contos, mas acho que se fosse meu marido, daria certinho
porque ele perdeu a mãe dele com 5 anos de idade, e o pai casou-se
depois de 3 meses e a madrasta era malvada, não dava de comer para
ele, e ainda fazia o pai dele bater nele e nos irmãos, sempre as
melhores coisas eram p/ os filhos dela, que eram 4, e essa parte acho
que combina com o conto de fadas.
TEXTO 7
A Cinderela que eu mais me indentifiquei foi a brasileira, por que a vida
da gente é trabalhar, trabalhar e trabalhar, tempo para ir a baile,
festa etc é difícil porque se tem dinheiro não tem
tempo e se tem tempo não tem dinheiro e assim vai quando dar para
ir a festa é só festa na igreja.
As meninas de hoje em dia são teimosas e incistentes quando quer
ir ao baile pula até janelas.
A gente começou a trabalhar cedo as de hoje não quer nem
saber de lavar os copos que toma água.
TEXTO 8
Eu me indetifico mais com a Cinderela brasileira.
Gosto muito de trabalhar só não gosto que mande ne mim sempre
coidei de mim mesmo meus pais morrem sede demais os meus irmãos
que cuidaram de casa só que eles gostavam de mandar por isso que
eu comecei trabalhar com 14 anos comecei coidar de mim mesmo hoje em dia
não gosto de me alembral do passado de sofre muito.
TEXTO 9
Na versão brasileira em que a Cinderela tem as qualidades de ser
boa moça, bonita, astuta, trabalhadeira, é a que eu mais
gostei, porque algumas pessoas por serem espertas trabalhadeiras alcançam
seus objetivos e Cinderela, alcançou superando seus obstáculos,
suas meias irmãs, a morte de sua mão acreditando que sua
madrasta seria uma boa esposa para seu pai e tantas coisas que lhe aconteceram
decepções, mentiras, falsidade, as boas coisas, boas situações,
boas oportunidades para vencer.
O amor, a bondade, a caridade tudo supera.
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