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SABERES
POPULARES E A APRENDIZAGEM ESCOLAR
Isis Flora Santos - Universidade Federal do Estado
do Rio De Janeiro – Unirio
Neste trabalho abordarei uma situação vivenciada
dentro de um colégio de aplicação do Estado do Rio
de Janeiro, o CAp-UERJ (Instituto de Aplicação Fernando
Rodrigues da Silveira). Os CAps (colégios de aplicação
das Universidades), são considerados centros de excelência
no quesito aprendizagem em todo o Estado do Rio de Janeiro.
Mas, como surge o CAp-UERJ? Ele nasce em abril de 1957, denominado na
época, Ginásio de Aplicação da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Distrito Federal
e abrangia o ensino das últimas quatro séries do Ensino
Fundamental. A partir do ano de 1961 incorpora-se o Ensino Médio
e em fevereiro de 1977 abraça-se toda a Educação
Fundamental, mas é só em 1986 que a Classe de Alfabetização
passa a fazer parte da história desta instituição.
Hoje o CAp chama-se Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues
da Silveira, em homenagem ao seu primeiro diretor e fundador do Ensino
Médio.
A prática alfabetizadora realizada nesta instituição
é reconhecida e valorizada socialmente. A procura por uma vaga
nas classes iniciais de alfabetização é enorme, o
que pôde ser constatado através do último sorteio
realizado, que tinha o objetivo de preencher sessenta vagas existentes,
as quais obtiveram uma média de dezesseis a dezessete candidatos
por vaga (999 inscritos para o sorteio).
O CAp-UERJ atende, em média, 20 alunos por turma. Cada série
possui três turmas, o que dá um total de, aproximadamente
720 crianças/adolescentes matriculados no Instituto. O ingresso,
nesta instituição, acontece na Classe de Alfabetização
(CA) e 5ª série do Ensino Fundamental quando são sorteadas
60 vagas para a CA e 60 para a 5ª série mediante concurso
público (50% destinadas a funcionários da UERJ e 50% para
a comunidade externa).
Os professores deste espaço possuem graduação, muitos
já fizeram o Mestrado e alguns estão fazendo Doutorado ou
Pós-doutorado. A exigência mínima de formação
dos candidatos a professor, que desejam participar dos concursos para
docentes, do CAp-UERJ é a titulação de pós-graduação
Strictu-Sensu. O regime de trabalho varia entre 20 e 40 horas semanais.
Os docentes com carga horária de 40 horas devem atuar na área
da extensão e/ou pesquisa, além do ensino, apontando para
uma prática docente investigativa sobre o processo ensino-aprendizagem.
Atuando, desde o início de 2005, sob a forma de contrato, como
professora substituta de uma das classes de alfabetização,
percebo as dificuldades encontradas pelo grupo de professoras na realização
do trabalho cotidiano. É comum ouvir falas como: a cada dia está
mais difícil trabalhar, Essa escola é muito cruel ou Depois
da 4º série o CAp vira outra escola, não é à
toa que na 5ª série o número de jubilados seja tão
grande.
A realidade é opaca, mas há certos pontos, pistas, sintomas
que nos permitem decifrá-la (GINZBURG, 1991) e é por essa
via que pretendo caminhar, atenta aos pequenos detalhes que podem ser
chaves reveladoras sobre a pesquisa em andamento. Ao fazer essa opção
tenho clareza que não conseguirei ver todas as pistas, nem vou
chegar a uma única resposta, mas posso compreender algumas faces
da questão abordada.
Frente a esses pontos que ressaltei anteriormente trago um relato de experiência
vivido em uma das classes de alfabetização da escola investigada.
Em uma de nossas primeiras aulas, uma criança entra em sala dando
uma meia lua com o corpo (aparentemente um gingado de capoeira). Ao ver
esta cena a professora, muito preocupada com a postura dos alunos, pede
que ele retorne e adentre novamente “conforme um estudante do CAp”.
Assim foi feito, a criança retornou, mas em seu olhar pude perceber
a não compreensão do que havia ocorrido.
Muitas vezes com a preocupação de utilizar bem o tempo,
perdem-se momentos que poderiam ser de grande valia para a aprendizagem
das crianças. Enquanto a preocupação das professoras
e da escola estiver voltada para a apropriação dos saberes
considerados legítimos pela sociedade, continuaremos sem garantir
espaço aos saberes populares. Para justificar essa falta de abertura
aos conhecimentos das classes populares utilizasse o seguinte argumento:
o tempo em sala é reduzido por isso não se pode perder tempo
com bobagens ou não-saberes, apresentados pelas crianças.
Se não usarmos bem o tempo, eles não aprendem a ler antes
de terminar a CA (professora da Classe de Alfabetização).
Mas, afinal o que seria essa perda de tempo? Ao parar para pensar no tempo
levando em consideração a nossa relação estabelecida
no dia-a-dia percebo, em um primeiro momento, que a noção
corporal está intimamente interligada à existência
humana. O tempo, como diz Angel Pino, “parece confundir-se com a
vida e o tempo conduz necessariamente a paradoxos: este possibilita aquela,
mas, ao fazê-lo, a conduz inexoravelmente à morte”
(2003: p. 51).
Pino me faz pensar que “falar de vivência de tempo é
falar da relação, por vezes complicada, entre o tempo como
objeto da razão (mental ou lógico) e o tempo como experiência
subjetiva” (2003: p.58), mas vivê-lo seria fazer do tempo,
vida. Como se sabe em cada campo do saber há concepções
de tempo diferentes. Tendo o autor como base desta discussão compreendo
o tempo como um “estado” de mudança constante, de novidades
acontecendo a cada momento, ou seja, o tempo “é a representação
de algo que flui sem parar e que nos escapa continuamente” (2003:
p.60).
Se o tempo nos escapa continuamente, me parece que não cabe mais
essa sustentação - perda de tempo - como um elemento forte
para não darmos espaços às singularidades de cada
um. Em minha forma de perceber essa questão não existe uma
única maneira de utilizar bem o tempo. Cada grupo tem suas particularidades
e, explorá-las, pode abrir possibilidades para enriquecer as aprendizagens
cotidianas realizadas na escola.
Uma parte considerável dos (as) docentes, e nesse grupo me incluo,
foram formados (as) para utilizar todo o tempo das crianças, com
atividades “dirigidas” e escolares. Salvo o recreio que, muitas
vezes, é considerável supérfluo. Brincadeiras, conversas
ou demais atividades que não tenham um cunho “pedagógico”
são rapidamente excluídas desse ambiente, pois se acreditava
e ainda hoje vemos essa visão (...) que o estatuto do conhecimento
passa pela escolarização, isto é, que a escolarização
é constitutiva do conhecimento. O que quer dizer: “quem não
vai a escola não possui conhecimentos” (SMOLKA, 2003:31).
O que devemos refletir é sobre que criança é essa
que chega hoje à escola? Acredito que devemos partir do seguinte
pressuposto,
(...) as crianças já conhecem muitas coisas
quando chegam à escola, já possuem valores adquiridos no
seu meio cultural. Como eu tinha falado antes, acho que no nosso trabalho
com as crianças precisamos partir do que já sabem. Mas é
claro que elas têm muito a aprender e construir em relação
à língua, à matemática, às ciências
naturais, às ciências sociais. Como professores, nosso trabalho
(me parece) é fazer as pontes entre o que conhecem e os novos conhecimentos.
Para mim essa é a função da escola. (KRAMER, 2002:114)
Será que a forma como o aluno entrou na sala foi
desrespeitosa. Ele não apresentou uma postura de estudante digna
do CAp-UERJ, como ressaltou sua professora? O que é uma atitude
respeitosa? E desrespeitosa? Sob o ponto de vista de quem? Talvez se o
modo como o aluno chegou fosse discutido, em roda com a turma, algumas
questões poderiam ter surgido: esse “passo” é
da capoeira? Você sabe jogar capoeira? Alguém mais sabe?
Vocês conhecem outros “passos”? Quem já viu,
ou participou, de uma roda de capoeira? Mas, ao rejeitar esse modo de
chegar na sala abafamos, mais uma vez, os saberes populares e legitimamos
o saber acadêmico, como única via de aprendizagem.
Essa visão persiste porque durante muitos anos vivemos sobre os
fortes pilares da ciência clássica que trabalhava com visões
dicotômicas (corpo x mente, sujeito x objeto, certo x errado...)
e separava o saber científico, legitimado pela academia dos conhecimentos
populares, considerados não-científicos. Com o surgimento
de questões que ultrapassavam as fronteiras do paradigma da simplicidade,
deu-se início uma busca paradigmática.
Para compreender esse novo paradigma que vem sendo pensado, recorro a
Boaventura de Sousa Santos (2002), o qual sugere uma dupla ruptura com
o senso comum. A primeira se constituiria na oposição da
ciência moderna ao senso comum. Ao ir de encontro com o senso comum
e ao mesmo tempo dizer-se desprovida de preconceito ela impõe o
seu próprio preconceito a sociedade, nesta falsa ausência
de (pre) conceitos. Visão esta, como escrevi anteriormente, que
marcou por bastante tempo o lugar do saber acadêmico dentro das
instituições de ensino. Na tentativa de ultrapassar este
impasse epistemológico que é apresentado, o autor sugere
uma segunda ruptura, a qual denomina de dupla ruptura, ou seja, depois
de realizada a primeira, sugere uma nova ruptura com o objetivo de transformar
o conhecimento científico num novo senso comum. Realizada essa
dupla ruptura estaríamos reaproximando senso comum e saber científico,
e assim, restabelecendo o diálogo entre os dois campos de conhecimento.
(...) Senso comum e ciência se aproximam criando novos conhecimentos
que, sendo práticos, tornam-se mais democráticos e mais
bem distribuídos (GARCIA, 2004:25).
A linguagem corporal é tão importante quanto a verbal e
escrita, mas desde cedo ensinamos aos alunos que alguns conhecimentos
são mais importantes que outros. Muitas vezes, obrigamos as crianças
a ficarem sentadas, sem poderem conversar com os colegas próximos,
sob pena de punição. Mesmo que queiram só tirar uma
dúvida essa atitude já é vista como desordem ou “caos”.
Mas, o que é um “caos”? E o que seria ordem? Nesta
sala de aula que estou investigando não é permitido às
crianças circularem pela sala sem prévia autorização,
o silêncio muitas vezes impera. Disciplinamos seus corpos para que
permaneçam frágeis e dóceis. Mas, quando se vêem
livres desse controle estabelecido em sala mostram atitudes bem diferentes
que as apresentadas acima. Costumam correr sem parar, pular e brincar
de luta nas aulas de Educação Física, Artes e Música.
Ao perguntar a elas porque apresentam atitudes tão ambíguas
me responderam: a professora é muito brava, briga muito, deixa
a gente sem recreio e diz que vai levar à coordenação.
Em seguida questionei: Mas os outros professores não chamam a atenção
de vocês? Eles brigam menos com a gente, não tiram o recreio,
nem levam para a coordenação.
Conforme pudemos constatar com a observação acima a disciplina
dos corpos surge desde cedo nas escolas primárias,
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
os chamados “corpos dóceis”. A disciplina aumenta as
forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui
essas mesmas forças, ela dissocia o poder do corpo, faz dele por
um lado uma ”aptidão”, uma “capacidade”
que ela procura aumentar; inverte por outro a energia, a potência
que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição
estrita. (FOUCAULT, 1997: 119)
A disciplinarização do corpo do aluno no
dia-a-dia da escola não deixa espaço para as crianças
de classes populares revelarem seus saberes. A forma de cada pessoa chegar
no outro é muito própria. Quando sistematizamos, por exemplo,
uma única forma de entrar em sala sem levarmos para uma discussão
mais ampla, negamos o espaço das trocas de conhecimentos, revalidando
os saberes acadêmicos, adquiridos na escola, como se fossem os únicos
válidos e, conseqüentemente, os únicos reconhecidos
socialmente.
Ora, se o discurso da escola é de que a ela caberia
a socialização do conhecimento(...) tudo que não
fosse aprendido na escola, não teria valor. (...) Logo, aqueles
e aquelas que portassem um outro tipo de conhecimento, adquirido no cotidiano
de suas vidas, no trabalho, em suas lutas por sobrevivência, nenhum
valor teriam, nenhum crédito mereceriam, nenhum direito poderiam
ter garantido, pois nenhum mérito teriam conquistado. (GARCIA,
2004: 14).
No cotidiano das crianças tecem-se saberes que interagem com os
acadêmicos na construção de um sujeito pensante. Todos
estão ensinando alguma coisa aos outros (ALVES, 2001:27) e, através
dessas diferentes vivências enriquecemos as redes de conhecimentos,
ampliando nossas experiências através das trocas em grupo.
Devemos estar atentos às manifestações dos saberes
populares para darmos espaço e, aproveitarmos para interagir, estabelecendo
relações entre os saberes acadêmicos e os considerados
senso comum. Acredito que o aprenderensinar (sic) ocorre em diferentes
espaçotempos (sic) , na rua, com vizinhos, na família, entre
amigos, navegando na internet e também na escola. A criança
ao chegar em sala apresenta saberes que podem enriquecer bastante as atividades
pedagógicas e, portanto, as trocas podem ser consideradas “materiais
didáticos”. Mas, para isso, precisamos dar voz a essas situações
ao invés de rejeitá-las em nosso cotidiano escolar.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Nilda.
“Espaço e tempo de ensinar e aprender.” In: CANDAU,
Vera Maria (org) Linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender.
Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
BENJAMIN, Walter.Obras Escolhidas. Magia e Técnica, arte e política.
São Paulo: Brasiliense,1994.
GARCIA, R. Leite (org.). Novos olhares sobre a alfabetização.
São Paulo: Cortez, 2004.
GINZBURG, Carlo. Chaves do Mistério: Morelli, Freud e Sherlock
Holmes. In: ECO, U&SEBEOK, Thomas (org). O signo de três. São
Paulo: Perspectiva, 1991.
KRAMER, Sonia. Alfabetização leitura e escrita. São
Paulo: Ática, 2002
FOUCAULT, Michael.Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1997.
PINO, Angel. “Tempo Real, Tempo Vivido, Representações
do Tempo.”In:DE ROSSI, Vera Lúcia S. e Zamboni, Ernesta.
(org) Quanto tempo o tempo tem! Campinas: Alínea editora, 2003.
SAMPAIO, Carmen Sanches.Aprendi a ler(...)quando eu misturei todas aquelas
letras ali...Campinas, São Paulo. Tese de Doutorado/UNICAMP, 2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente.
São Paulo: Cortez, 2002.
SMOLKA, Ana Luiza. A criança na fase inicial da escrita. São
Paulo: Cortez, 2003. |
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