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SANTO
FORTE DE EDUARDO COUTINHO E PROVOCAÇÕES DA TV CULTURA: ALGUMAS
IMPRESSÕES.
Giovana
Scareli - Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP - Faculdade
de Educação e Ciências Gerenciais – UNOPEC
“...
todo filme é uma forma de discurso que fabrica seus próprios
efeitos, impressões e pontos de vista.” (Bill Nichols)
Este trabalho
pretende abordar algumas questões a partir do filme Santo Forte,
de Eduardo Coutinho e do programa Provocações da TV Cultura,
apresentado por Antônio Abujamra. As impressões que pretendo
desenvolver dizem respeito, principalmente, sobre a entrevista, momento
que é tão especial para Coutinho e que caracteriza o programa
Provocações, que Abujamra apresenta. É interessante
observar o espaço e as condições em que as entrevistas
são realizadas, porque através destas observações,
é possível fazer outras leituras tanto do filme quanto do
programa.
Santo Forte
O filme Santo
Forte de Eduardo Coutinho foi feito com os moradores da favela Vila Parque
da Cidade que fica na Gávea no Rio de Janeiro e tem aproximadamente
1.500 habitantes. As filmagens tiveram início em Outubro de 1997.
O tema ou o fio condutor do filme é a expressão religiosa
destes moradores.
Eduardo Coutinho revela alguns aspectos da sua produção
numa entrevista concedida para o Caderno Mais da Folha de São Paulo
de 28 de Novembro de 1999, um deles diz respeito à escolha dos
personagens: “Eu me baseei, primeiro, numa pesquisa prévia
feita na favela Vila Parque da Cidade por uma antropóloga junto
a um certo número de moradores. Ela trabalhou com uma moça
da comunidade, a Vera Dutra dos Santos, que acabou funcionando como assistente
de produção”. Além desta pesquisa prévia,
teve uma segunda etapa, na qual a escolha dos personagens foi feita a
partir do depoimento que cada um havia dado. “Houve gente que tinha
histórias maravilhosas, mas que contava mal, e por isso ficou de
fora. Essa poética depende de saber contar.”. Outro fato
interessante é que o Sr. Braulino, por exemplo, não estava
na pesquisa feita pela antropóloga, foi, segundo Coutinho, “um
achado” durante as filmagens.
Podemos observar que, diferente dos documentários clássicos,
Coutinho não tenta investigar os personagens nem suas histórias,
não faz comparações entre as diversas religiões
citadas e também não traz o depoimento de um especialista
para explicá-las ao espectador. Ele busca outros modos de olhar
e apresenta neste filme, como aquele conjunto de moradores de um determinado
lugar, num determinado tempo, vivem e se relacionam com suas crenças,
com aquilo que para eles é sagrado.
Outro aspecto interessante é a interação entre os
personagens e o diretor que, muitas vezes, também é filmado,
fugindo do estilo clássico de documentário em que o cineasta
nunca aparece. Podemos ver durante o filme a equipe, as câmeras,
o microfone, o contrato e o pagamento que é feito com dois dos
entrevistados e deduzimos então que todos que forneceram depoimentos
receberam uma certa quantia pela sua entrevista. Não há
locutor, o filme é montado através de ligações
entre um bloco de entrevista (que Coutinho prefere chamar de “conversas”)
e outro, esta ligação se dá pela palavra, pelo “eixo
temático” que acaba havendo no filme.
A narrativa do filme é construída privilegiando as histórias,
o modo como são contadas, envolvendo os espectadores pela maneira
como os personagens contam sobre como vivem em suas religiões.
Assistimos ao filme e nossa imaginação vai construindo cada
uma das cenas descritas pelos personagens, uns contando com mais riqueza
de detalhes, outros com menos, contudo não desconfiamos do que
dizem, respeitamos suas histórias assim como o diretor as respeita,
pois como ele mesmo diz, “a verdade não é investigável.
Se uma mulher fala que viu a Pomba-Gira e conversou com ela, se aquilo
é verdade para ela, isso me basta”. Isto também nos
basta.
Coutinho filmou em vídeo, “não tanto pela economia,
mas pela possibilidade de filmar continuamente por meia hora, coisa que
em cinema seria impossível. Quando acaba o filme e você tem
de interromper o depoimento para trocar de rolo, estraga tudo. Esfria
o clima, inibe o personagem.”, diz ele em entrevista. Durante o
filme e em sua entrevista para o jornal, Coutinho demonstra muito respeito
com todos. Ele não faz cortes abruptos interrompendo as falas dos
personagens ou intercalando depoimentos, que poderiam modificar o sentido
de cada história. Mantém as histórias da forma como
cada personagem contou. Coutinho usa o termo personagem para fazer referência
às pessoas que deram depoimentos pois, segundo ele, “a pessoa
que fala para uma câmera, para mim, passa a ser personagem. Ele
não é um professor que está lá para dar uma
informação: é um anônimo que está falando
da sua vida”. Cada um faz uma imagem de si e do que viveu. “A
filmagem é um acontecimento único: não houve antes,
nem há depois”. É por isso que Coutinho não
gosta de fazer contato com a pessoa que será “entrevistada”
antes do momento da filmagem, se houver pesquisa, ele recorre à
elas, mas nunca é ele quem vai pesquisar antes, pois ele gosta
da surpresa, de chegar no local com toda a equipe montada e sentir o “frescor”
daquele contato para começar a filmar. É esta possibilidade
que o instiga e o faz sentir vontade de filmar.
Não podemos afirmar que o tema de Santo Forte seja a religião,
este é o eixo central. O próprio Coutinho disse que as pessoas
não conseguem separar a religião da vida, portanto se perguntar
a ele: “[o] filme [é] sobre religião? É. É
o eixo. Mas na verdade eu faço filmes sobre a vida das pessoas,
sobre o cotidiano das pessoas.” Este filme trata das pessoas que
vivem numa determinada comunidade, e da sua religiosidade porque para
elas vida e religião não se separam. O que torna este filme
tão interessante, neste aspecto, é a relação
que as pessoas têm com religiões aparentemente muito distintas,
é o caso do catolicismo, da umbanda, do espiritismo, do candomblé
e das igrejas evangélicas. Embora quase todos os personagens se
auto-denominem Católicos Apostólicos Romanos, a grande maioria
tem uma relação bem próxima com a Umbanda.
O filme apresenta o que é praticado por aquelas pessoas e em quê
elas acreditam. Segundo Coutinho “Existe uma aprovação,
uma valorização do candomblé, que é interessante
porque exalta a auto-estima da cultura negra. Mas a umbanda ainda é
algo reprimido no Brasil”. Além disso, ele coloca que “a
umbanda assusta, porque o bem e o mal estão misturados. Umbanda
sem quimbanda não existe”. Para ele “a verdadeira religião
popular de massa é a católica-umbandista, essa coisa misturada
em que o transe está presente, o bem e o mal estão presentes,
e na qual o Exu tem um papel essencial”.
Freqüentemente, o depoimento tem início com a pergunta –
“Qual sua religião?” – feita por Coutinho. Em
sua maioria a resposta é católico. Depois cada entrevistado
fala sobre suas outras crenças e quase sempre se dizem espíritas
ou umbandistas, muito embora, quando se dizem espíritas se refiram
à umbanda.
Esta pergunta inicial dá um auxílio para as pessoas começarem
a falar, segundo Coutinho, é mais fácil falar de religião
do que se ele perguntasse “E o Brasil, como vai?”, portanto,
“a
religião é um eixo maravilhoso porque permite que as pessoas
ficcionem, as pessoas voem (...) No canto da religião, o imaginário
solta mesmo. E por isso que dá nesse filme um efeito ficcional
que é difícil ter em outro. E tem um nível ficcional
pulsando lá. Claro, as memórias e os encontros com o sobrenatural
eles tem tanto de ficção quanto de verdade. São mistérios
imprevisíveis, as pessoas voam mesmo. E contam bem. Se contam bem,
acreditam. e quando acreditam são fortes. E aí é
um filme de ficção em parte.”
Não
sabemos se aquelas pessoas mentem ou falam a verdade, se suas histórias
são verídicas ou fantasiosas, mas neste caso isto não
faz tanta diferença, as histórias nos envolvem, o filme
é sobre as pessoas, não pretende fazer uma tese sobre a
religião no Brasil, então tanto faz se cada uma das religiões
citadas no filme são bem definidas, conceituadas ou não,
o que vemos é uma verdadeira teoria popular sobre o assunto.
As pessoas são fantásticas porque não vivem de um
sincretismo religioso, que seria criar uma outra religião com elementos
de várias outras, como é o caso da umbanda, mas estas pessoas
convivem com cada uma das religiões de modos diferenciados, recorrendo
a cada uma em momentos distintos da vida. Podemos dizer que vivem a religião
ou as religiões porque em cada situação estão
envolvidos com uma.
Podemos também observar, através do filme, como vivem os
moradores daquela favela que são marginalizados pela sociedade
em geral e até mesmo dentro da comunidade - eles não dizem
qual é sua crença religiosa de início, talvez por
medo de mais preconceitos e então se dizem católicos, espíritas
ou evangélicos que são religiões mais legitimadas
afim de serem aceitos e depois contam como é sua prática
religiosa, quais são os guias que os acompanham e suas histórias.
O que vemos durante o filme, são pessoas simples, que vivem em
casas muito pequenas (como pode ser visto quando a câmera faz uma
panorâmica nos quartos ou em outros cômodos dentro das casas.
Isto é raro, pois, em geral, o filme é todo com câmera
fixa), que trabalham como doméstica, dançarina, entre outros,
ou estão desempregados ou ainda, aposentados.
Um outro elemento do filme é a entrevista. No entanto, segundo
Coutinho, em debate na Unicamp em 20 de Abril de 2005, “é
preciso encontrar um termo melhor, entrevista é horrível,
na verdade estou tentando estabelecer relações, estabelecer
conversas” Por enquanto, não vou me deter no nome mais apropriado,
o que pretendo dizer aqui é sobre este momento que é tão
especial para Coutinho e sobre o qual é interessante olhar mais
demoradamente.
Coutinho utiliza-se das entrevistas coletadas previamente por um grupo
durante a pesquisa temática para escolher os personagens, e depois
de escolhidas vai até suas casas durante as filmagens. As entrevistas
são indispensáveis para a montagem de Santo Forte, porque
neste filme elas predominam. É um momento muito rico que envolve
uma forma de diálogo, mas na qual está presente uma hierarquia.
Segundo o próprio diretor é a partir dos temas tirados de
cada entrevista que este filme foi construído, sem haver a presença
de um narrador que trata do tema, “amarrando” as falas, explicando
algo ao espectador.
Segundo (XAVIER, s.d., p. 55)
“Arma-se
a cena como momento de vida, passagem efêmera, pela sua duração
e abertura, mas o olhar do aparato e a moldura do processo marcam uma
dualidade clara: trata-se de um encontro que num extremo chegaria à
ontologia de Bazin, caminharia na direção da revelação
do mundo (o “ser em situação” se revela em sua
autenticidade); em outro, seria puro teatro. Na prática, há
sempre essa dualidade constitutiva, e a questão, para Coutinho,
é saber trabalhar com ela, apostando na espessura da relação
intersubjetiva (entre ele e o escolhido) sem esquecer esta marca de ambigüidade,
pois tudo se dá no seio da operação do dispositivo
(aí, ninguém é inocente, embora a assimetria da situação
confira ao cineasta maior autoridade e “culpa”).
As pessoas,
quase sempre, são entrevistadas em suas casas mostrando ao espectador
algumas partes da sua habitação. Em geral, a câmera
não faz excursões pelos cômodos da casa, temos uma
idéia das dimensões espaciais através da câmera,
em alguma tomadas durante as entrevistas o local onde a personagem se
encontra está tão próximo da TV que ela está
assistindo, que temos a idéia do espaço ser pequeno. Esta
impressão espacial nos faz pensar sobre várias coisas, as
condições em que vivem estas pessoas e sobre como abrigar
uma equipe de filmagem dentro deste espaço para filmar a entrevista.
Podemos pensar que em algumas entrevistas, o espaço filmado pode
dar força às histórias que estão sendo narradas,
mas também, o filme nos leva a pensar sobre um possível
constrangimento porque dá indícios relativos à vida
das pessoas e às condições de receber uma equipe
com todos os seus aparatos técnicos neste local. Entretanto, como
o diretor fica em off e a equipe se acomoda num determinado lugar de modo
que a personagem olhe para o diretor que está perto da câmera,
nós espectadores, temos a impressão de que ela está
falando para nós e como as histórias são muito interessantes,
é habitual que prestemos mais atenção ao conteúdo
das histórias do que aos elementos técnicos da filmagem.
Coutinho respeita as falas dos personagens, permitindo que cada um conte
sobre sua vida e sobre sua vivência religiosa. A postura do diretor
durante as entrevistas é bastante discreta, poucas vezes o vimos
em cena e poucas vezes o ouvimos fazendo alguma pergunta mas, mesmo quando
ele faz uma pergunta, em geral ele não é filmado, permanecendo
em off .
A maneira como o diretor se apresenta durante as filmagens e a forma como
organiza o material que compõe o filme revelam sua postura em relação
ao que lhe foi dito e àquilo que ele quer nos dizer. Portanto,
há várias vozes na sua produção: a voz das
pessoas entrevistadas, a voz do diretor e a voz do filme como um todo.
Segundo Nichols (1983),
“Como
nós, o filme funciona como um todo autônomo. Ele é
maior que suas partes e as orquestra enquanto: (1) vozes recrutadas, sons
e imagens recrutados; (2) a “voz” textual, expressa pelo estilo
do filme como um todo (de que modo a multiplicidade de seus códigos,
inclusive os pertencentes às vozes recrutadas, é orquestrada
num único padrão de controle); e (3) contexto histórico,
inclusive o próprio ato de assistir, que a voz textual não
pode ignorar ou controlar plenamente. O filme é pois um simulacro,
um traço externo da produção de significado a que
nos propomos a cada dia, a cada momento.”
Para pensar
um pouco sobre esta citação, escolhi um trecho do filme
que apresenta várias características interessantes do trabalho
do Coutinho. O trecho no qual me refiro é a entrevista feita com
a Vera Dutra.
Na cena inicial aparece a sala, com uma cadeira vazia no centro e alguns
dos aparatos de filmagem. Logo depois entra o diretor e a Vera. O diretor
passa até quase sair do campo de filmagem, ela se senta na cadeira.
Coutinho diz “Vera inaugura”, talvez porque tenha sido a primeira
a dar entrevista durante as filmagens. A câmera mostra a Vera se
arrumando na cadeira enquanto Coutinho e um operador de câmera organizam
os aparatos. Coutinho está do lado esquerdo da câmera que
focaliza a personagem. Há um corte e é dado um close no
rosto da personagem com uma legenda indicando seu nome, como se fosse
uma fotografia. Ela começa a falar, sem ouvirmos qualquer pergunta
feita pelo diretor. Sua primeira frase é: “A primeira religião
que eu tive não foi por opção...”
Durante seu depoimento, Coutinho faz uma pergunta que podemos ouvir “Qual
foi o motivo que te fez entrar para a Universal?” e ela responde.
Além desta pergunta ouviremos mais algumas que a Vera irá
responder. A câmera permanece a maior parte do tempo focalizando
seu rosto em close, depois amplia o quadro e aparecem os ombros da personagem.
Durante a fala da Vera são mostradas algumas imagens que parecem
“ilustrar” a história que ela nos conta, aparece uma
imagem da pomba-gira, depois um close numa dedicatória feita numa
Bíblia e, por último, mostra-se uma imagem de Iemanjá.
Não há evidência de que estes objetos estão
na casa da personagem, entretanto eles aparecem nos momentos em que são
mencionados. Este encadeamento de fala e imagem parece reforçar
a história que está sendo narrada.
Num determinado momento, a equipe aparece durante a filmagem. Podemos
ver a sala com a cadeira no centro onde a Vera está sentada, uma
câmera à sua frente com um operador, ao lado direito uma
TV pequena e uma mulher de costas que depois olha para trás, onde,
certamente há outra câmera, com outro operador, afinal é
através desta câmera que estamos vendo a cena, e do lado
esquerdo, há uma outra pessoa, além do diretor, que vimos
no início sentar-se neste local. A equipe também é
testemunha de tudo que estamos vendo e ouvindo enquanto espectadores.
Percebemos que neste local há no mínimo, além da
Vera, mais umas cinco pessoas e isto é interessante para se pensar
no espaço que a equipe tem para fazer a filmagem. Além disso,
fica clara a constituição de um cenário, mesmo sendo
a casa da pessoa, neste momento a configuração não
é mais a mesma, porque o local foi preparado previamente para a
entrevista, tanto que há lugares certos para sentar. Podemos considerar
que existe uma hierarquização a partir do espaço,
afinal, aquele que está do lado de uma equipe e que conhece a tecnologia,
aparenta ter mais poder que aquele que está do outro lado, sozinho,
sendo entrevistado. Há portanto, uma relação de poder,
implícita neste momento da entrevista.
A composição do espaço parece ser um elemento interessante
para se pensar. Há o espaço onde é feita a filmagem,
o espaço escolhido para ser mostrado e o espaço que não
é visível na tela. Portando, há o espaço que
vemos durante a projeção do filme e há outros espaços
como, por exemplo, o espaço onde está o diretor e que em
alguns momentos podemos vê-lo. Há o espaço em que
a equipe está instalada e há outros espaços que em
determinados momentos nos é concedido penetrar. Isto faz lembrar
sobre a moldura dita por Ismail Xavier, na qual o espaço é
maior do que aquele que está visível, que existem outras
pessoas, outros espaços que, ao mesmo tempo que estão fora
da cena filmada, participam dela.
Sabemos que existe um diretor, equipe de filmagem e aparatos técnicos
que envolvem a cena, entretanto, parece-nos que Coutinho tenta se “apagar”
e “apagar” a equipe para que a personagem conduza o espectador
para a sua história. Entretanto algo pode fugir do “roteiro”,
como quando a filha da D. Teresa aparece dentro de casa, enquanto a mãe
está dando seu depoimento no quintal. Nesse momento, nos dispersamos
por alguns instantes da história contada por D. Teresa. O diretor
não tenciona este momento, tanto que mantém a cena e dá
continuidade à entrevista.
Há um outro elemento que levaremos em conta juntamente com o momento
da entrevista que é a “voz”. Para Bill Nichols “voz”
se refere a algo mais restrito que o estilo, para ele voz é
“aquilo
que, no texto, nos transmite o ponto de vista social, a maneira como ele
nos fala ou como ele organiza o material que nos é apresentado.
Nesse sentido, ‘voz’ não se restringe a um código
ou a uma característica, como o diálogo ou comentário
narrado. Voz talvez seja algo semelhante àquele padrão inatingível,
formado pela interação de todos os códigos de um
filme, e se aplica a todos os tipos de documentário.”
Podemos pensar
que além das vozes das personagens, há uma voz que é
do filme dita pelo diretor no momento em que ele organiza o material com
as entrevistas coletadas e dá uma ordem a elas. Nós, enquanto
espectadores damos mais uma voz ao filme, trazendo nossos olhares sobre
estas imagens, produzindo outros sentidos, talvez diferentes dos sentidos
provocados pelo diretor na montagem do filme. Podemos inferir também
que, o diretor ao montar o filme com diversas histórias, nos diz
sobre seu estilo, sobre uma escolha de produção, sobre um
padrão e uma estética.
Programa
Provocações
O programa
Provocações, veiculado pela TV Cultura, é apresentado
pelo conhecido Antônio Abujamra, ator, apresentador, entre outras
coisas. Abujamra abre o programa recitando um texto e depois vem a abertura
“oficial” do programa que destaca uma boca se movimentando.
Neste texto vou analisar um programa gravado em 2004, no qual foi entrevistado
o cientista político Oliveiros Ferreira.
O programa é aberto com o apresentador recitando um texto, a seguir
faz uma pequena introdução a respeito da pessoa que irá
entrevistar e, em seguida, inicia-se a entrevista com alguma pergunta
feita pelo Abujamra. No final do programa eles se levantam para um abraço,
que, segundo o entrevistador “é a única coisa falsa
do programa”. Aparecem os créditos, volta o Abujamra que
recita mais um texto, aparecem mais créditos e o fechamento seguido
da banda sonora feita por André Abujamra para o programa que simula
o som de muitas vozes.
O programa Provocações é gravado num estúdio,
decorado com fotografias do Abujamra em grandes dimensões, há
uma poltrona que parece ser muito confortável para o entrevistado
uma cadeira para o entrevistador, que ficam um em frente ao outro e uma
mesa de vidro, que fica posicionada do centro para a lateral. Como o cenário
é um pouco escuro, os limites não são tão
definidos. Esta característica do cenário que deixa o ambiente
um pouco “carregado” se junta à figura do apresentador
que parece atuar como alguém que quer provocar, desestabilizar,
“encostar na parede”, causando-nos a impressão de que
não há como fugir deste lugar.
A pergunta feita por Abujamra é o início de um diálogo
que, algumas vezes, torna-se mais ou menos “provocativo”.
Algumas vezes o apresentador gosta ou concorda com o que seu entrevistado
está falando e parece haver um diálogo entre eles. Outras
vezes, o apresentador assume uma postura contrária, provocando
o entrevistado, causando a impressão de constrangimento. Ele não
se apaga para conduzir a entrevista, pelo contrário, sua fala,
sua presença, suas contestações são esperadas
e já são características do seu programa.
A câmera tem um papel importante, dependendo da tomada a mesa parece
estar no centro, impedindo o contato do entrevistado com o entrevistador.
Outras vezes, a mesa parece estar muito próxima ao entrevistado,
causando a impressão de sufocamento. A câmera faz muitos
closes da face tanto do apresentador quanto do entrevistado e desloca-se
algumas vezes privilegiando uma parte do corpo, como os olhos, descendo
pelo nariz, boca, braços, mãos e depois permanece em plano
médio. Durante o programa, várias vezes a boca é
focalizada em primeiro plano. Há uma exploração da
câmera muito interessante que ora está de baixo para cima,
depois de cima para baixo, na diagonal ou frontal. Estes movimentos da
câmera também nos provocam, em grande medida nos distraem
e perdemos o que o entrevistado está dizendo. A câmera perturba,
tira a atenção, provoca.
Pensando novamente em Ismail Xavier, sabemos que há alguém
que manipula a câmera e que, portanto, há outros espaços
além daquilo que vemos, que existem e que têm um papel importante
no programa. Mas que não temos nenhuma referência sobre a
equipe e sobre seus aparatos técnicos.
Durante o programa são inseridas algumas entrevistas feitas na
rua com pessoas do povo, porém, não ouvimos a pergunta que
foi feita pelo repórter, só ouvimos as respostas. Estas
inserções, em geral, não tem ligação
com o que está sendo discutido na entrevista. Elas chegam mais
como uma perturbação ou até para tirar o foco de
quem está sendo entrevistado.
Há duas vozes principais, a do entrevistador e a do entrevistado
e, se quisermos podemos pensar numa outra voz que não se soma ás
duas primeiras, mas que tem espaço que é a “voz do
povo”. A boca dos “personagens” é valorizada
com imagens feitas em primeiro plano. A fala é muito importante,
tanto que o Abujamra abre e fecha o programa recitando um texto. Assim,
ele dá voz à alguém que não está ali,
o autor do texto. As pessoas na rua têm a oportunidade de participarem
do programa, o conjunto destas falas, produzem uma voz – a voz do
povo. Dificilmente ouvimos as perguntas feitas pelo repórter que
faz entrevista nas ruas, que passa quase que desapercebido pelos espectadores.
Portanto, há as vozes dos personagens que aparecem no programa;
as vozes dos autores dos textos que são mencionados no início
e no final do programa pelo apresentador; as vozes dos autores das citações
feitas durante a entrevista; a voz do programa que segue um padrão
e tem suas peculiaridades e a voz do espectador que assiste ao programa
contextualizando-o historicamente.
Aproximações
– Eduardo Coutinho e Antonio Abujamra
Este trecho
tem por objetivo tentar algumas aproximações entre Coutinho
e Abujamra e suas produções Santo Forte e Provocações.
A primeira questão que gostaria de apontar é em relação
à maneira como ambos se colocam no momento da entrevista, Coutinho
não provoca a personagem, ele faz uma pergunta e deixa que a personagem
fale, se for necessário faz uma outra questão, mas aparentemente
deixa a personagem a vontade para contar a história que quiser,
sem questionar se é verdadeira ou não, porque segundo depoimentos
dados por Coutinho, ele parte do princípio de que tudo que está
sendo dito é verdadeiro. Também não quer esclarecer,
nem pedir maiores explicações tentando contradizer a fala
das personagens. Dessa maneira, Coutinho dá dignidade àquelas
pessoas e se isenta de tomar uma posição sobre o que falam.
Sua postura parece ser de respeito para com aquelas pessoas que estão
à sua frente, contando trechos da sua vida, no entanto será
que esse “respeito” não poderia se confundir com um
olhar condescendente, afinal posso me considerar numa posição
“superior” ou até mesmo um olhar “crítico”
isto é, observo suas histórias mas tenho condições
de criticá-las? Parece-me que Coutinho não faz um filme
para que sintamos pena dos personagens que ele escolhe, no entanto, em
alguns momentos é isto que sentimos, ele provoca esta reflexão
porque mesmo tentando apagar a invasão que faz na casa daquelas
pessoas, eliminando o espaço ocupado por toda a equipe, o que talvez
nos constrangesse, é ele quem detém os aparatos técnicos,
é ele quem vem de fora, de outro lugar, com uma outra formação
e que permite que ele seja o entrevistador, portanto, há uma relação
hierárquica, de quem entrevista e detém os aparatos, para
quem é entrevistado e mora naquele local. Há uma “distância”
entre o diretor e até mesmo entre os espectadores dos seus filmes
daquelas pessoas que são entrevistadas, que não é,
necessariamente, econômica, mas cultural, que irá permitir
este tipo de relação.
Ao observar as entrevistas feitas por Antônio Abujamra percebemos
que, embora tenha uma postura, que parece provocativa e, que muitas vezes
iremos constatar, provocando seu entrevistado, não o deixando se
expressar da maneira como quer, interrompendo a fala para fazer mais perguntas,
em outras ocasiões veremos um entrevistador diferente. Em três
programas, com entrevistados distintos, Abujamra teve maneiras diferentes
de lidar com a entrevista. Com Oliveiros Ferreira, foi provocativo, impertinente,
fazendo muitas perguntas, e até mesmo tentando buscar contradições
na fala do convidado. Num outro programa, quando entrevistava José
Celso, ator e diretor de teatro e pelo jeito muito amigo do Abujamra,
o programa parecia uma conversa, houve momentos de nostalgia e muitas
lembranças de momentos que ambos passaram juntos foi trazido pela
memória, não havia uma provocação nesta entrevista.
E, numa terceira vez, uma prostituta estava sendo entrevistada. A postura
do Abujamra também era diferente, parecia haver um interesse de
que a moça falasse, mas ele não buscava contradições
em suas falas, não a provocava.
Embora seu comportamento não seja único, a sua figura como
entrevistador nos dá a impressão de que os entrevistados
não se sentem à vontade na sua presença. Talvez porque
fique mais marcada a postura de questionador, de alguém que procura
contradições, que faz perguntas, às vezes, desconcertantes.
Por perguntar, muitas vezes, se aquilo que o entrevistado está
falando é aquilo que ele acredita verdadeiramente, algumas vezes
com um certo inconformismo com a resposta. Porque tem uma postura impertinente
para com o entrevistado. Entretanto, se o entrevistador constrangesse
tanto o entrevistado e o espectador, será que ele iria estar no
ar há tanto tempo? Talvez este seja um ponto de tensão que
faz com que este programa tenha um diferencial dos demais programas de
entrevista. Em geral, este tipo de programa, requer um entrevistador habilidoso,
nem sempre inteligente, mas bem informado e gentil. Neste caso, temos
um entrevistador muito inteligente, culto, bem informado, com opiniões
próprias, que não quer agradar, mas sim provocar, provocar
reflexões, indagações, questionamentos sobre os mais
diferentes temas o que já é um grande diferencial, porque
nos obriga a pensar, coisa que outros programas de entrevista, em geral,
não fazem. As provocações de Abujamra não
servem somente para o entrevistado, ele provoca o espectador, a pensar,
a se questionar, a rever seu modo de vida e a pensar também sobre
a TV e a sua produção.
À respeito da entrevista, nem o Coutinho nem o Abujamra irão
fazer a entrevista no sentido estrito. Não há, por parte
de nenhum deles, uma postura tão demarcada possibilitando uma postura
diferente também para o entrevistado.
Em relação à voz, ao longo do filme há a presença
de vozes diferentes que irão constituir uma outra voz, esta dada
pelo diretor no final do filme. No programa Provocações
a voz que fica é a do apresentador, pois ele é responsável
por trazer outras contribuições, trazer autores para que
seus entrevistados comentem, fazer comentários das respostas dadas,
até diluir um pouco o tema que pode se configurar na entrevista,
desta forma, ele aparenta ter mais tempo de fala, pois, além da
entrevista, é ele quem abre e fecha o programa. Portanto, de maneiras
diferentes, as vozes mais fortes, aquelas que permanecem, parecem ser
a dos entrevistadores, que também são diretores.
Bibliografia
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