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  CONCEPÇÕES PRESENTES NA PRÁTICA DOCENTE SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Aline de Mello Dias – Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ1
Eliane P. da Silva - UERJ
Estela Scheinvar -UERJ e Universidade Federal Fluminense/UFF
Fernanda Deodato - UERJ
Mariana Cardoso de Melo - UERJ
Naira Milene Silva - UFF
Roberta Machado de Sousa - UERJ

O presente texto é fruto da pesquisa “As demandas produzidas na relação entre o conselho tutelar e a escola”, desenvolvida em parceria entre a Universidade Federal Fluminense e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, visando colocar em análise as práticas do conselho tutelar e da escola sobre a garantia dos direitos da criança e do adolescente. Para tanto, o projeto, iniciado em 2002, tem levantado, em prontuários dos conselhos tutelares de Niterói e de São Gonçalo, os seguintes dados:
1. A demanda, ou seja, a queixa através da qual chegam os casos relacionados com a escola; a queixa pela qual chegam as pessoas (ou instituições) ao conselho tutelar. Cabe esclarecer que algumas queixas são concretas e explicitamente ligadas à escola, ao passo que outras, na forma como apresentadas originalmente pelo solicitante, não se associam à escola, o que acaba por ocorrer durante o seu atendimento. Há ainda situações em que o conselheiro produz tal associação, ao considerar, do seu ponto de vista, que há atravessamentos entre a escola e o caso.
2. O solicitante, que pode ser a própria criança ou adolescente, algum agente da escola, da família, da comunidade de maneira geral, podendo tratar-se, também, de uma denúncia anônima.
3. Os encaminhamentos propostos pelo conselho tutelar para ressarcir os direitos violados e, nessa medida, os atravessamentos institucionais produzidos através do atendimento no conselho tutelar.
A tabulação das informações foi feita, com base nas categorias e nos indicadores do Sistema de Informação para a Infância e a Adolescência/SIPIA. Coube a nós definir, a partir dos dados apresentados nos prontuários, quais os direitos eram violados e quais os agentes violadores. Isto, sem dúvida, é polêmico, pois fala de uma interpretação política dos fatos narrados; fala de uma possível leitura das relações ali apresentadas e, dentre elas, nos interessa analisar as concepções dos docentes sobre a garantia de direitos de seus alunos.
Entendemos que os dados levantados apresentam práticas e, nessa medida, concepções que podem ser lidas analiticamente, indicando o olhar tanto dos conselheiros como dos agentes da escola sobre os direitos da criança e do adolescente. Assim, tornamos os dados de que dispomos analisadores , para discutirmos a subjetividade presente na prática docente sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Discutir desde o que é considerado violação dos direitos, até o âmbito em que estas devem ser abordadas, é uma forma de penetrar nas concepções que atravessam o cotidiano escolar; nas leituras de uma proposta legal. O ECA foi pensado, em sua emergência, como instrumento de luta para transformar condições de vida inaceitáveis de crianças e jovens no Brasil, mas as práticas são formas de atualização das múltiplas leituras a partir das quais ele é executado.
Guattari diz que: “a subjetividade não se situa no campo individual, seu campo é o de todos os processos de produção social e material” (1986, p.32). Assim, pode-se falar da inexistência do individual, à medida que entende-se que o que se produz são agenciamentos coletivos tornados visíveis através das práticas. Desta perspectiva, o projeto de pesquisa que desenvolvemos busca, através dos casos que chegam ao conselho tutelar, ler as concepções de infância, juventude, pobreza, pedagogia, entre tantas outras instituições presentes na escola, com o intuito de colocá-las em análise, levando o debate que travamos aos espaços de gestão da política para a infância e a juventude que pesquisamos.
No presente texto abordaremos os prontuários pesquisados no conselho tutelar de Alcântara, São Gonçalo, RJ, do ano de 2003, dos quais trabalharemos apenas com os dois primeiros dados que tabulamos: a demanda do caso e o solicitante. A demanda do caso, por ser um analisador do que se entende como caso que, embora relacionado com a escola, requeira sair de seus muros na busca de encaminhamento. Entendemos, ainda, que a saída do caso do espaço escolar não seja um fato episódico revelando-se, portanto, como uma produção do próprio espaço pedagógico. A intensidade de casos relativos à escola que chegam ao conselho tutelar indica que o que historicamente foi produzido como questão da área escolar, agora, pelas razões sobre as quais cabe-nos discernir, é entendido como um acontecimento que não mais tem acolhida nesse equipamento social. De sua parte, caracterizar quem é o solicitante nos é fundamental, na medida em que percebemos, por seu intermédio, que a compreensão de que algumas relações da área da educação não mais são contidas no espaço escolar se dá através de diferentes agentes. No entanto, certamente, é a prática pedagógica, que se tornará visível através da prática docente, a que produz essas novas subjetividades, expressas na presença de volumosos casos relativos à escola no conselho tutelar.
Portanto, nos propomos a apresentar alguns elementos genealógicos da produção da escola, à medida que entendemos que a grande conexão que se estabelece entre o conselho tutelar e a escola está dada por esta ter sido produzida como espaço de normalização. A partir desse contexto, definimos duas vertentes de análise dos dados levantados, de acordo com a proveniência dos mesmos: em função das solicitações que chegam da escola ao conselho tutelar e em função das demandas relativas à escola provindas da família.

II A produção da escola como espaço de normalização

A escola emerge no contexto do surgimento da sociedade industrial, contribuindo com a produção de modelos condizentes com a sociedade moderna que, aos poucos, vão se tornando hegemônicos. No sentido de afirmá-los, a escola adota padrões disciplinadores, exercendo uma prática controladora que, fundamentalmente, não é imposta pelo uso da força física, mas pelo exercício da coerção e, em especial, da rotulagem dos indivíduos.
O processo de industrialização traz novas estruturas e é nesse contexto que se dá a preocupação do Estado com a família, com a normalização de seus membros. Estes, quando pobres, são esquadrinhados com maior ênfase, à medida que suas dificuldades materiais oferecem menores possibilidades para que se enquadrem nos padrões estabelecidos pela classe dominante. Suas dificuldades são entendidas como problemas particulares e, a partir dessa leitura, os pobres são vistos como pessoas ameaçadoras. A família pobre, de maneira geral, é culpabilizada por suas condições de vida, sendo responsabilizada por comportamentos considerados “errados”: os pais ou responsáveis pela família tornam-se culpados pelo envolvimento de crianças e jovens no crime, na vagabundagem, na droga, ou seja, na chamada desordem. Não se estabelece uma correlação entre tais práticas e as necessidades para eles e suas famílias sobreviverem.
A culpabilização da família é um dos efeitos da concepção liberal de indivíduo, segundo a qual cada um é responsável por si mesmo, de forma a isentar a responsabilidade do poder público para com seus cidadãos. Dentro dos padrões liberais o sujeito acaba por se tornar o único responsável pela situação em que vive, quando, na verdade, tal culpabilização deveria ser atribuída ao Estado, dadas as precárias condições sociais, políticas e econômicas oferecidas aos seus cidadãos. Como é colocado por Sennett “as ‘capacitações’ de alguém determinam a sua situação” (Sennett, 1988, p.328), portanto, é o indivíduo que tem que estar capacitado para transformar sua situação social, para o que tem que prestar obediência e aceitação a modelos padronizados.
Desta forma, o individuo é praticamente impelido a se adequar às regras de uma sociedade que se apresenta pronta, com suas crenças, práticas religiosas e profissionais, com seus modelos econômicos instituídos, e com uma lógica única através da qual as relações são explicadas. Da mesma maneira, são produzidos mecanismos internos de coerção, que fazem com que os indivíduos aceitem, acatem e temam as regras estabelecidas. Perante a violação das normas e leis são aplicadas práticas coercitivas, de forma que o individuo se subjugue, inibindo a infração ou punindo-o caso as infrinja. A punição é um mecanismo para que este perceba o seu comportamento como um erro, um desvio e não mais o cometa. De acordo com Durkheim:
“... hoje se considera incontestável que a maioria de nossas idéias e tendências não são elaboradas por nós, mas nos vêm de fora, conclui-se que não podem penetrar em nós senão através de uma imposição, eis todo significado de nossa definição”.(Durkheim, 1978, p. 3)

Percebemos, então, que esses padrões são impostos na sociedade como um todo, e não nos indivíduos separadamente. Desse modo, o jeito pelo qual as crianças são educadas, seus hábitos alimentares, fisiológicos, bem como a maneira de agir, de pensar se dá através de doutrinas impostas por um estilo de ver, de sentir, de se comportar, que não são espontâneas. Assim, com o tempo, estas doutrinas tornam-se hábitos que, imperceptivelmente, nos formam em domáveis seres sociais. Esta pressão exercida sobre a criança, a fim de torná-la um adulto dócil, é praticada tanto pelos pais quanto pelos professores, visto que o sistema escolar contribui significativamente com o controle social.
Historicamente, a escola surge como instrumento de moralização e controle das classes populares. Os professores teriam a missão de ensinar não só os conteúdos acadêmicos, mas também modos de pensar e se comportar, interferindo, por intermédio das crianças, nos hábitos de seus pais. Como dizem Julia Varela e Fernando Álvarez-Uría,

“O professor, ao sentir-se superior às massas ignorantes, não admitirá suas formas de vida familiar, higiênica, nem, evidentemente, educativa. Não se produz, em decorrência, uma relação de igualdade, de entendimento e reforço entre ‘família’ e escola, mas a escola põe-se em marcha para suplantar a ação socializadora destas mesteirais classes abordadas em uma perspectiva fundamentalmente negativa. Tudo isto contribui a que os discursos pedagógicos e médicos dirigidos a tais classes adotem essencialmente a forma de proibições enquanto que, pelo contrário, para as classes abastadas tenham um sentido positivo, significativo. Desenvolvem-se, assim, práticas médico-pedagógicas que cumprem funções diferenciadas desde o ponto de vista social.” (Álvarez-Uría e Varela, 1991, pág 27)

É importante salientar que os pais normalmente eram, e ainda são, responsabilizados pelas tentativas de normalização fracassadas da escola, na medida que, quando a escola não consegue controlar os alunos, ou seja, não consegue enquadrá-los nas normas sociais condizentes aos padrões hegemônicos, se recorre a agentes externos ao meio escolar, como o conselho tutelar, a fim de responsabilizar a família.
Por outro lado, Donzelot mostra como a família sempre teve a função de controlar os seus membros e, ao mesmo tempo, foi sendo controlada pelo Estado. No final do século XIX surge toda uma organização jurídica para o controle da família pobre. Esta se pautava na concepção da existência de uma infância em perigo e de uma infância perigosa. A infância em perigo refere-se àquelas crianças cujas famílias não conseguem ter autonomia econômica e cumprir as exigências sanitárias delineadas pelos médicos higienistas. Considerava-se que a falta dessas condições familiares poderia tornar essas crianças delinqüentes, insubmissas à autoridade, causando assim prejuízos ao Estado. A infância perigosa era entendida como jovens que já se encontravam em situação de pobreza. O controle e a disciplinarização dessas crianças passam a ser feitos através da tutela dessas famílias.
A escola, então, irá possibilitar a normalização, sendo que todas as crianças, não importando sua classe social, passam por ela, incorporando regras que acabam por garantir a hegemonia de um projeto político. Desta perspectiva, a escola emerge como viabilizadora de uma ordem fundamental ao funcionamento da sociedade capitalista. Em palavras de Donzelot pode-se dizer que “o que essas medidas visavam”, “eram de natureza indissociavelmente sanitária e política” para “reduzir a capacidade sócio-política dessas camadas, rompendo os vínculos iniciáticos adulto-criança, a liberdade de movimento e de agitação”.(Donzelot, 1980, p.76)
Capaz de punir exemplarmente o indivíduo que não se enquadra em suas regras, a escola se torna um equipamento disciplinar, que contribui com a definição moderna de conceitos como família e criança. Desta forma, a escola durante muito tempo tomou para si a responsabilidade de tutela e governo das crianças, desqualificando a família.
A escola age, então, na formação da criança, construindo a sua opinião, o seu senso crítico, moldando-a de forma autoritária. Tal autoritarismo, expresso na relação entre professor e aluno hoje está sendo, pouco a pouco, desconstruído nos espaços em que se luta por uma escola libertária. No entanto, esta proposta pressupõe uma construção do conhecimento em que os alunos participem de forma ativa e se desenvolvam de forma a se perceberem criticamente, diferentemente da postura de uma escola tradicional. O modelo escolar que ainda hoje prevalece pauta-se na idéia de fornecer um conhecimento pronto, sem que o aluno possa participar ativamente, sem que o aluno possa questionar, colocando a escola como a detentora de um processo civilizador segundo o qual o espaço pedagógico é o da obediência, da disciplina, da hierarquia.
Na visão tradicionalista o professor é auto-suficiente, é ele quem, literalmente, comanda os alunos ditando regras sobre o que é certo ou errado, sem que haja uma construção mútua dos conceitos, o que nos leva a perceber a hierarquização como determinante para o controle social. Este pensamento está enraizado e nos é trazido por Dom Quixote, quando alega que:

“...não podem ser mentirosos livros cuja publicação foi autorizada por reis e que são lidos com prazer por grandes ou pequenos, celebrados por ricos e pobres, letrados e ignorantes, plebeus e cavaleiros”. (Cervantes, 2005, p.75)

Em outras palavras, o que se pode inferir é que a hierarquia representa um poder, que opera no processo de produção de indivíduos subordinados, produzindo status, seja pela condição de nobreza, como na antiga sociedade feudal, seja pela condição burguesa, na atual sociedade capitalista.
A compreensão dos processos constitutivos da relação com a escola é um elemento indispensável à análise que fazemos sobre o tipo de demanda presente no conselho tutelar em relação à escola. Usando tais referências históricas e políticas, passamos, então, a apresentar alguns dos dados por nós levantados e as respectivas discussões que travamos e lançamos ao debate.

III As práticas pedagógicas e os direitos da criança e do adolescente

Da consulta aos prontuários do conselho tutelar de Alcântara registramos as seguintes como demandas mais freqüentes provindas da escola: requisição de certidão de nascimento, mudança de turno, problemas de aprendizagem, violência e comportamento. O conteúdo dos prontuários mostrou-nos que a escola se comunica com o conselho tutelar para pedir encaminhamentos para alunos indisciplinados, para alunos considerados com problema de aprendizagem ou para aqueles que a escola considera que precisam de atendimento especializado (médicos, psicólogos, etc.).

Algumas dessas demandas são produzidas pela própria relação pedagógica e, portanto, fazem parte da rotina escolar, não sendo casos excepcionais. Nessa medida, chamou-nos a atenção que problemas de aprendizagem, de disciplina escolar, de dificuldades de relacionamento dentro da escola cheguem ao conselho tutelar, para que este resolva pontualmente cada um deles. Certamente, a nossa leitura dos fatos, face os prontuários do conselho tutelar, difere tanto daquela que a equipe pedagógica manifesta ao recorrer ao conselho tutelar, como da que os conselheiros compartilham ao encaminhar particularmente cada caso, reconhecendo a demanda como sua. De uma perspectiva reivindicativa, a idéia que vem à tona é que a escola teria que ter condições para enfrentar tais problemáticas ou, se necessário apoio externo, a ela caberia o encaminhamento aos órgãos adequados.

Se a escola sistematicamente vive tensões e não encontra recursos para enfrenta-las, será que não seria atribuição do corpo docente e dos agentes escolares, de maneira geral, levar o caso à sua respectiva estrutura pedagógica para que a rede de educação se equipe devidamente? Um bom exemplo para instrumentalizar esta discussão é a demanda por certidão de nascimento. Chegam ao conselho tutelar inúmeros pedidos de certidão, sabendo-se, de antemão, que não é o conselho que as emite. O que ele faz é derivar o pedido ao devido órgão, onde a família recomeçará, mais uma vez, a fazer o mesmo pedido. Se a certidão de nascimento é uma condição para se matricular na escola, se a escola é obrigatória e se no Rio de Janeiro é comum as pessoas chegarem à escola sem o registro de nascimento, será que a própria área da educação não teria que provocar o enfrentamento desse entrave, que por ora é administrado de forma desgastante e onerosa para uma população já pauperizada? Ir, vir, solicitar, esperar, pagar passagem, deixar as atividades para enfrentar burocracias..... todo um desgaste que se multiplica quando um órgão não se sente responsabilizado por um elemento que é fundamental para se tenha acesso a ele.

A mesma lógica liberal que individualiza, que especializa, que hierarquiza, que fragmenta é a que impede que um fato seja lido de forma imanentemente correlata a outro. Fatos completamente correlacionados que são percebidos de forma dissociada, da mesma forma que se dissocia a disciplina da criança na escola do contexto pedagógico, indicam leituras que desagregam e desmobilizam, buscando no outro as possíveis soluções e despotencializando, assim, o espaço pedagógico.

Atrasos, problemas de relacionamento envolvendo alunos e problemas de aprendizagem são casos que, sistematicamente, chegam ao conselho tutelar, como se este fosse um departamento pedagógico a mais da estrutura educacional. Parece que a escola não tem sido capaz de construir mecanismos de enfrentamento a questões como estas que fazem parte do seu cotidiano e que, agora, também são parte da rotina do conselho. No entanto, talvez possamos buscar algumas ferramentas para analisar esta prática, que tem se tornado freqüente em Alcântara. Se retomamos a história da produção da escola como espaço de disciplinarização e controle, talvez possamos pensar que uma vez que os seus mecanismos já não produzem os efeitos que lhe foram atribuídos, ela mesma não consegue se reconhecer e acaba por buscar outros espaços mais eficientes nessa tarefa. As evidências do sentido da escola estão em todas as suas estruturas. Foucault traz a arquitetura como uma delas quando percebe que trata-se de uma arquitetura facilitadora da vigilância:

“... uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista..., mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado - para tornar visíveis os que nela se encontram;...um operador para a transformação dos indivíduos: agira sobre aquele que abriga, dar domínio sobre seu comportamento..., oferece-los a um conhecimento, modifica-los." (Foucault, 1987, p.144)

A escola e a educação passam a ser minuciosamente planejadas tanto para tornar seus alunos apenas conhecedores dos conteúdos necessários ao seu nível social, como também para que se internalize o chamado fracasso como sendo próprio do indivíduo. Podemos perceber, através dos prontuários abertos por “problema de aprendizagem” que, muitas vezes, o caso é trazido pela escola como se o aluno fosse o único culpado por não aprender, por falta de esforço pessoal ou por sua condição socioeconômica.

“A classe como condição social, com regras próprias, regras essas que podem ser mudadas está perdida de vista. As “capacitações” de alguém determinam a sua situação.” (Sennet, 1988, p. 327-328)

A dificuldade de aprendizagem, em alguns casos, são tratadas como questão psicológica, como podemos ver nos prontuários do conselho tutelar, quando solicitado em anexo acompanhamento psicológico, sem que haja qualquer indicação de que o caso esteja relacionado com as práticas educacionais. Pois, quando o professor se depara com a dificuldade de aprendizagem do aluno, ele tende a legitimar que esse fracasso deriva dos possíveis problemas psicológicos do aluno ou de problemas de “desestrutura familiar”. Mas, não se questiona quanto à sua atuação docente, e a toda a falta de assistência por parte do Estado. Os efeitos de tais práticas são explicados por Costa quando diz que:

“A normalização das condutas e sentimentos operam em outro nível. Ela procede de forma oposta, despolitizando o cotidiano e inscrevendo nas micropreocupações em torno do corpo, do sexo e do intimismo psicológico.” (Costa, 1978. p. 17)

O mesmo ocorre com os problemas de comportamento que a escola encaminha ao conselho. O fato de serem encaminhados principalmente casos isolados pode significar que a escola tem no Conselho tutelar um órgão disciplinar, que teria maior autoridade para encaminhar ou mesmo punir os casos com os que ela não está conseguindo lidar.
Cabe analisar, portanto, que a escola funciona como espaço de exercício de poder e que a disciplinarização privilegia uma educação para o mercado, segregando, pois ao dividir em disciplina e faixa etária os alunos, opera a mesma lógica que fundamenta a divisão de classes sociais e, consequentemente, naturaliza esse conceito. A educação e a escola transmitem os métodos dos discursos hegemônicos, mostrando às classes menos favorecidas que dependem do esforço próprio para conseguir uma posição de destaque, e que a escola é a chave para as soluções dos problemas. Sem dúvida, é uma forma de retirar a responsabilidade de uma política econômica que baseia-se no desemprego, na péssima distribuição monetária e na exclusão.

“Vigilância permanente sobre indivíduos por alguém que exerce sobre eles um poder – mestre-escola, chefe de oficina, médico, psiquiatra, diretor de prisão – e que, enquanto exerce esse poder, tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de construir, sobre aqueles que vigia, a respeito deles, um saber.” (Foucault, 1996, p.88)

O discurso “lugar de criança é na escola” vem quase sempre acoplado à idéia de que devemos ocupar todo o tempo ocioso da criança. Ora, se nos lembrarmos aqui das lições do filósofo-historiador Michel Foucault, veremos que um controle produtivo sobre o uso do tempo aliado ao controle da distribuição do espaço, que ocorre com a perda do trânsito livre, torna-se um dos principais dispositivos usados no processo de disciplinarização dos corpos. No mundo do capital, o tempo deve ser utilizado produtivamente na preparação do indivíduo para sua inserção no mercado formal de trabalho, busca-se extrair um máximo de eficácia produtiva em um mínimo de tempo através do processo de docilização dos corpos.
A importância da disciplina escolar é inquestionável, sendo considerada a base para a construção de uma sociedade também disciplinada. Daí a importância de que ela fosse cuidadosamente implementada na escola, demarcando as proibições, racionalizando as punições de forma que, não apenas os alunos, mas todo o corpo de funcionários escolares estivesse ciente de suas responsabilidades, papéis e das conseqüências de suas ações. Ter conhecimento dos limites era essencial para que estes fossem respeitados.
Educar, portanto, constituía-se numa necessidade premente para o projeto reformador e modernizador da sociedade brasileira. O bom uso dos métodos disciplinares no momento de formação deste homem, durante a infância, dispensaria, no futuro, o uso de recursos mais drásticos como a polícia, as prisões e hospitais. Aprender, entretanto, continuava a ser um privilégio, se antes destinado aos que podiam custear seus estudos, agora, aos mais favorecidos pela inteligência.
Para Foucault, a disciplina não se encontra localizada, mas constitui-se numa tecnologia, num tipo de poder composto por instrumentos, técnicas, procedimentos e alvos:

"Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar 'as disciplinas'" (Foucault, 1987, p.126).

A disciplina possui, portanto, um caráter preventivo, atuando não apenas em momentos específicos, mas de diversas formas e em diferentes espaços. A teia disciplinar estava presente no olhar do professor, nos seus gestos, na lembrança dos feitos memoráveis dos heróis nacionais, no controle do corpo (higiene, educação física), do tempo (do relógio, da pontualidade), do espaço (localização dos colégios, das classes, dos pátios, dos banheiros) e de tantos outros recursos disciplinares pulverizados no ambiente escolar. Esse controle disseminado, característico da disciplina, segundo Foucault:

"implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos" (Foucault, 1987, p.126).

De acordo com Foucault, a disciplina exerce um poder sobre os corpos que permite ampliar significativamente sua produtividade e utilidade. Para este autor "a disciplina fabrica corpos submissos exercitados, corpos 'dóceis'. Segundo ele, "O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico: o exame." (Foucault, 1987). Antes de tudo, porém, disciplina importa numa série de mecanismos simples, práticos e baratos que apresentam diversas vantagens sem onerar o sistema, sendo, por esse motivo, muito lucrativos.

Talvez pudéssemos registrar entre os lucrativos efeitos dos mecanismos de disciplinarização escolares, a sua intervenção nas famílias. Estas passam a ser, ao mesmo tempo que colocadas como aliadas da escola, alvo das normas disciplinares. Através de seus filhos elas também são controladas, sendo-lhes exigida responsabilização pelos seus membros. Não por acaso também vão “pedir socorro” ao conselho tutelar, mesmo em se tratando de situações produzidas dentro do espaço escolar. A leitura da relação de direitos presente na prática docente chega à família como uma ordem e esta, sem elaborar outra concepção sobre os direitos relativos à educação, chega ao conselho tutelar para que lhe ajude a “resolver” os problemas que se apresentam como uma dificuldade particular para que os seus filhos ingressem ou permaneçam na escola.

IV Demanda da família ao conselho tutelar em relação à escola

De acordo com os dados coletados podemos observar que a família recorre ao conselho tutelar para resolver problemas de comportamento de crianças e adolescentes na escola. Entendemos que esta pratica é efeito de uma política educacional que não consegue resolver os problemas inerentes à escola em seu espaço e acaba por recorrer ao conselho tutelar. As mães chegam com as seguintes queixas em relação a seus filhos: “estão sem limites”, “fazem bagunça na sala de aula”, “se recusam a freqüentar a escola” ou “faltam aulas para namorar”, “não respeitam os professores”. Elas recorrem ao conselho tutelar na expectativa de que o conselheiro resolva o “problema de comportamento” de seus filhos.
O conselheiro, por sua vez, recorre sistematicamente à medicalização, encaminhando crianças e jovens para avaliação psicológica ou neurológica. Normalmente, as mães, as escolas e o conselho tutelar não tratam estes casos como motivadores para se pensar a política educacional, pois na nossa sociedade os fatos são lidos como individuais. Assim, se a escola não consegue disciplinar algum aluno, ele mesmo é considerado responsável pelo seu não enquadramento e freqüentemente é classificado como portador de algum distúrbio ou deficiência. Tanto assim, que muitas vezes o conselho manda as crianças ou adolescentes para avaliação psicológica e ainda pede relatório detalhado sobre o aluno à própria escola, sem questionar a prática dela, mas indicando que considera o problema apresentado como uma questão pessoal.
De sua parte, a escola dialoga com fluidez nesta leitura dos fatos, encaminhando o relatório, sem demonstrar-se afetada ou implicada na produção da demanda que chega ao conselho – antes mesmo, entende-se como uma vítima das incapacidades dos alunos. Assim, um problema que seria público é tratado como um problema privado, particular de cada sujeito.
A família chega ao conselho tutelar totalmente conformada, aceitando ser destituída de condições para resolver tais conflitos, assumindo assim, um papel de mera expectadora que precisa recorrer à ajuda de uma instância que se coloca e é reconhecida como superior.

“A fim de assegurar a ordem pública, o Estado se apóia diretamente na família jogando indissociavelmente com o seu medo do descrédito público e com suas ambições privadas. Isto tudo se passa segundo um esquema de colaboração muito simples, o Estado diz às famílias: mantende vossa gente nas regras da obediência às nossas exigências, com o que, podereis fazer deles o uso que vos convier e, se eles transgredirem vossas injunções, nós vos forneceremos o apoio necessário para chamá-los à ordem.” (Donzelot, 1980, p. 51)

No caso do acesso à escola a família denota o seu desespero particular por conseguir uma vaga para seus filhos, mesmo que tenha que cair nas malhas do comércio da educação, sem recursos para tanto. No conselho tutelar de Alcântara é enorme a quantidade de casos de inadimplência na escola particular. Isto indica que muitas famílias não têm escola pública ou não confiam nela e que recorrem à rede particular, sem conseguir manter o contrato comercial com o estabelecimento. Nesses casos a família vai ao conselho para liberar a documentação escolar e poder levar o aluno para a rede pública de ensino, mas o faz a partir de uma lógica individualizada, sentindo-se culpada pela falta de dinheiro. Não é discutida por ela ou pelo conselho a falta de escolas públicas no município, o que expressa a falta deste tipo de discussão em todas as instâncias nas quais a família circula. A falta de pagamento por um serviço essencial como o é a escola acaba sendo vista como falta de responsabilidade da pessoa que coloca o filho numa escola particular sem condições para efetuar o pagamento.
Entretanto, não se trata de falta de responsabilidade, mas de falta de mobilização política que, segundo Richard Sennett, acontece em decorrência de uma crescente intimização das relações sociais, que o autor denomina Ideologia da Intimidade. Quando Sennett critica a intimidade afirmando que ela forma “eus brandos para um mundo áspero” podemos pensar na falta de mobilização quando as pessoas têm os seus direitos lesados, seja pela falta de acesso a uma escola que seja perto de casa, pela falta de vagas, de um serviço de qualidade ou de outros tantos problemas, que deveriam incitá-las a mobilizar-se coletivamente por uma solução. Mas, ao invés disso, o que se vê são soluções individuais que não resolvem a questão.
Porém, no município de São Gonçalo podemos perceber através dos indicadores sociais do IBGE que o número de escolas públicas existente é insuficiente para atender a toda a população e, diante de tal situação social, não é pensado que estas famílias, muitas vezes, se vêem obrigadas a colocar seus filhos em escolas particulares. O Conselho Tutelar deveria então assumir a função de enxergar as deficiências de um lugar, como a falta de escolas, para lutar pela melhoria das condições educacionais, embora ele acabe, na maioria das vezes, não percebendo a demanda da região por conta do tratamento individualizado que dá aos casos.
Acreditamos que, a retenção de documentos por inadimplência por parte dos estabelecimentos escolares indica um olhar para a educação como um comércio, no qual a negociação acontece com base no capital. Essa concepção é fruto da política capitalista, segundo a qual o principal objetivo do individuo é o lucro e, para tanto, o consumo. Na fase neoliberal deste sistema, como diz Gentili, ele

“...ataca a escola pública a partir de uma série de estratégias privatizantes, mediante a aplicação de uma política de descentralização autoritária e, ao mesmo tempo, mediante uma política de reforma cultural que pretende apagar do horizonte ideológico de nossas sociedades a possibilidade mesma de uma educação democrática, pública e de qualidade para as maiorias. Uma política de reforma cultural que, em suma, pretende negar e dissolver a existência mesma do direito à educação. Poderíamos inclusive ir mais além, aventando a hipótese de que esta ruptura do sentido atribuído ao direito à educação constitui precondição que garante (ou, ao menos possibilita) o êxito das políticas de cunho claramente antidemocrático e dualizante. Na medida em que o neoliberalismo realiza com êxito sua missão cultural, pode também realizar com êxito a implementação de suas propostas políticas. Em outras palavras, o neoliberalismo precisa – em primeiro lugar, ainda que não unicamente – despolitizar a educação, dando-lhe um novo significado como mercadoria para garantir, assim, o triunfo de suas estratégias mercantilizantes e o necessário consenso em torno delas.” (Gentilli, 1995, pág.244)

Á medida que a família é colocada como responsável por garantir a escolarização de seus filhos e faltam equipamentos públicos, se recorre ao comércio da educação, tornando-a um serviço acessível aos que podem pagar por ela. Logo, esta concepção da escola como comércio acaba por reforçar a idéia de que a família deve ser capaz de suprir a necessidade de seus membros, impedindo uma postura reivindicativa por políticas públicas em favor da garantia dos direitos.

Bibliografia

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Rio de Janeiro, Revan Ed., 2004. Tradução e adaptação de Ferreira Gullar.

COSTA, Jurandir Freire. Ordem medica e norma familiar. Rio de Janeiro, Graal, 1978

DONZELOT, J. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1980. (Capítulo 3, pp 76).

DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. Em: Pereira, L. e Foracchi, M. Educação e Sociedade. São Paulo, Editora Nacional, 1987.

GENTILLI, P. Pedagogia da exclusão. Critica ao neoliberalismo em educação, Petrópolis, RJ, Vozes, 1995.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Ed. Vozes, 2000

SENNETT, R. O Declínio do Homem Publico: As Tiranias da Intimidade, Rio de Janeiro, Companhía das Letras, 1988.

VARELA, J. E URIA A., F. Arqueologia da Escola. Madrid, La Piqueta, 1991.

 
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