Ângela Cogo Fronckowiak*
Lisnéia Beatris Schrammel**
INTRODUÇÃO
A pesquisa Poesia e infância surgiu em 2003 , ancorada nas obras
teóricas de Gaston Bachelard e Georges Jean, buscando investigar
o espaço destinado ao acontecimento poético, à imaginação
criadora e à linguagem da poesia na infância escolar. Naquele
ano, iniciamos contato semanal com crianças de 4 a 6 anos de duas
escolas de Educação Infantil da região do Vale do
Rio Pardo/RS, uma particular e outra municipal. Para esses encontros,
levamos uma seleção de textos musicais, folclóricos
e poéticos denominada Eu janela de mim, que abrangia as sensações
táteis, gustativas, sonoras, olfativas, visuais e culminavam com
a seleção corpo: tudo em mim.
Através desses momentos, ainda assistemáticos, pudemos perceber
a extrema abertura das crianças para os jogos vocabulares e sonoros.
Desafiadas pelo adulto pesquisador, elas brincavam com parlendas, jogos
de adivinhação e demonstravam especial apreço pelo
jogo com as palavras da poesia. Essas brincadeiras as encantavam, principalmente
quando a leitura oralizada dos textos era realizada de maneira intencionada.
E, nesse sentido, já há uma primeira constatação
a fazer, as crianças da escola municipal, que nunca ouviam poesia,
tinham muita curiosidade pelos poemas, mas, ao mesmo tempo, menos resistência,
diríamos, à audição dessa linguagem, cansando-se
muito mais rapidamente que as da escola particular, acostumadas a leitura
cotidiana de histórias e, inclusive, de poesia.
No ano de 2004, então, demos continuidade ao projeto, agora com
o objetivo de tentar responder, a partir de empiria, que aspectos seriam
mais valorizados pelas crianças, ainda não alfabetizadas,
nos textos poéticos.
Nossa hipótese era a de que a rima se apresentava como fator fundamental
para a iniciação à fruição da linguagem
poética pelas crianças que não lêem, mas ainda
não sabíamos até que ponto elas percebiam os jogos
rímicos. Além disso, supúnhamos que a audição
regular de poemas as levava a experimentar a repercussão e a ressonância,
aspectos apontados por Gaston Bachelard como intrínsecos ao devaneio
poético, experiência oportunizada pela leitura/audição
da poesia e que faculta ao leitor encontrar “um não-eu meu
que me permite viver minha confiança de estar no mundo” (BACHELARD,
1988, p. 13).
Nessa nova etapa, realizamos visitas semanais a duas escolas de Educação
Infantil, priorizando a leitura de poemas, cujo tema era Seres extraordinários,
a crianças da mesma faixa etária (4 a 6 anos). Como não
foi possível manter a pesquisa na escola municipal por motivos
alheios à nossa vontade, continuamos realizando os encontros com
as crianças da Escolinha de Arte, escola particular da cidade de
Santa Cruz do Sul e iniciamos um novo contato, com as crianças
da educação infantil do Colégio Gaspar Silveira Martins,
também da rede particular da cidade de Venâncio Aires.
CRITÉRIOS PARA A SELEÇÃO POEMÁTICA
Optamos por selecionar textos poéticos que apresentassem
abordagens diferenciadas sobre a temática escolhida, buscando,
com isso, proporcionar à criança a possibilidade de encontrar
aquele poema que lhe fosse mais significativo. Para a seleção
Seres extraordinários, após intensa coleta de poemas, chegamos
a 31 títulos, envolvendo seres como bruxas, espantalhos, vampiros,
fantasmas, etc. Na escolha, privilegiamos poemas autorais e adequados
à infância a partir dos seguintes critérios: discurso
predominante, extensão, metro, rima, figuras de efeito sonoro,
quais sejam aliteração, assonância, onomatopéia,
paralelismo e anáfora. Nesse evento, divulgaremos apenas alguns
resultados encontrados no que se refere à ressonância poética
e à percepção da rima.
METODOLOGIA
No contato semanal com as crianças nas escolas,
líamos os poemas procurando atender a uma sistemática fundamentada
na experiência vivida no ano de 2003: 1) ler poemas de forma livre,
acompanhando o grupo em outras atividades que estivessem realizando e
ouvir as manifestações orais que as crianças fizessem,
caso as fizessem, após a leitura; 2) repetir a leitura oral dos
poemas quantas vezes fossem solicitadas pelas crianças; 3) ler
bem, a cada novo encontro, os poemas que já haviam sido lidos e
que as crianças pediam repetição; 4) introduzir novos
poemas da seleção a cada encontro, de acordo com o desejo
e a disponibilidade dos pequenos, 5) manter sempre a mesma pessoa lendo
para cada grupo e, finalmente, 6) evitar expor as crianças a um
tempo superior do que uma hora.
Quando as crianças já conheciam toda a seleção
– os 31 poemas - percebemos que deste universo poético alguns
eram mais solicitados que outros, havendo inclusive declarações
explícitas das crianças sobre quais poemas preferiam.
Essa constatação fez com que, a partir da seleção
inicial, fôssemos realizando uma triagem, em nenhum momento explicitada
às crianças, e destacássemos os textos que mais eram
solicitados por elas. Ficamos, então, com um conjunto de 13 poemas
e continuamos os encontros privilegiando a leitura apenas desses.
É interessante perceber que as escolhas das crianças, mesmo
sendo de escolas distintas, praticamente convergiram, o que facilitou
a tarefa de eliminar alguns textos. Outro fator digno de menção
é o fato de já podermos notar na predileção
das crianças uma simpatia por textos de rimas mais evidentes, pois,
cotejando as duas seleções, verificamos que os poemas em
prosa e os de versos brancos (sem rima) foram totalmente negligenciados
por elas. Numa observação preliminar, esse aspecto já
confirma a hipótese de que a rima possui relevância para
a iniciação das crianças não alfabetizadas
na fruição da linguagem poética.
Depois de realizados mais uma série de encontros de leitura semanal,
verificamos que, dentre os 13 poemas que compunham a seleção
final, havia alguns cuja leitura era mais desejada do que outros. Esse
fato nos motivou a realizar, antes de encerrarmos os encontros, uma conversa
individual com as crianças em que perguntávamos, de forma
indireta, quais eram os poemas que elas mais gostavam e aqueles que elas
lembravam. As perguntas foram:
1) Entre todas as poesias que eu leio, tem alguma que você quer
que eu leia agora?
2) Há mais alguma?
3) E você gostaria que eu dissesse alguma outra?
4) Por que você lembra mais dessas poesias?
5) Há alguma coisa que você queira me dizer sobre as poesias?
Nossa intenção foi a de checar se as respostas
dadas pelas crianças na ''entrevista'' tinham relação
com o que estávamos percebendo na prática. Todas as crianças
que viveram o processo durante o ano realizaram a entrevista individual
e sua transcrição confirma que praticamente todas lembraram
de, pelo menos, um poema, quando não o disseram de cor. Para análise
dos dados obtidos com as transcrições dos encontros, utilizamos
o programa SPSS.
RESULTADOS ALCANÇADOS
O primeiro ponto, já referido, é o fato
de que todos os poemas de versos brancos (sem rima) e os em prosa poética
foram preteridos pelas crianças (sem exceção). Observemos,
a seguir, um poema que não causou repercussão nas crianças
e que, por isso, foi eliminado na segunda seleção:
Uma bruxa
1. Uma bruxa nem sempre tem vassoura,
2. acho eu,
3. pode andar de bicicleta
4. a cem por hOra
5. e brecar com as sOlas
6. dos seus tênis, se os tiver.
Em relação a ele convém notar, primeiramente,
que possui extensão curta e metro livre. ''Uma bruxa'' não
possui rimas externas consoantes (aquelas que apresentam identidade sonora
entre consoantes e vogais em toda a sua extensão), apenas uma rima
toante (identidade sonora de vogal tônica, podendo ou não
apresentar outros sons idênticos, mas nunca em toda a extensão
da rima).
As demais marcações no poema demonstram outro aspecto de
sonoridade: a aliteração. Convém explicitar que estamos
entendendo a aliteração no sentido que lhe dá Trevisan
(2001, p.99) e que aponta para o fenômeno como ''a repetição
de uma mesma letra (vogal ou consoante) ou de uma mesma sílaba
(ou som), no início, no meio, ou no fim de vocábulos, frases
ou versos seguidos.'' A assonância, por sua vez, está relacionada
a ''seqüência de vozes e sílabas semelhantes, mas não
idênticas (...) que apresentam conformidade fonética apenas
entre as vogais tônicas'' (TAVARES, 2002, p. 217). No poema, não
há assonância e a aliteração de [s] parece
confirmar a intenção semântica de tematizar a ação
da bruxa, caracterizada pelo movimento da vassoura, da bicicleta, ou até
mesmo de seu tênis, brecando a cem por hora.
Não nos causa estranheza o fato de as crianças não
apreciarem o poema ''A bruxa''. Afinal, seus elementos rímicos
são tênues e a percepção do ritmo e da sonoridade
já exigem um leitor mais experimentado, o que certamente as crianças
não são. Agora vejamos o poema mais solicitado pelas crianças
das duas escolas:
[Era uma vez um vampiro]
Era uma vez um vampiro
tão bem-educado, mas tão bem-educado,
que toda vez que sugava
o sangue de uma pessoa
não esquecia de dizer: “Muito obrigado”.
Na análise do texto, podemos constatar que, em
relação às rimas, o poema “[Era uma vez]”
possui apenas uma rima externa consoante: educado/obrigado. Entretanto,
a pequena rede tecida pela rima é reforçada por outros elementos
muito singulares. Em primeiro lugar a temática hilária:
o vampiro que subverte as regras de comportamento, tão insistentemente
cobradas das crianças, através da reiteração
do sintagma ''tão bem-educado'', exposto no paralelismo do segundo
verso. Em segundo lugar, a alta carga de sonoridade do poema, que contribui
para sua apreensão semântica. Na verdade, o som característico
do vampiro: o [sss] está representado na aliteração
de [z], [s]. Também o som nasal [m] auxilia essa percepção,
conotando a densidade lúgubre e apavorante desse ser.
Além dos aspectos estruturais expostos, é importante ressaltar
o desejo e a necessidade das crianças de envolverem todo seu corpo
com o poema, aspecto que Georges Jean destacou em seu livro Na escola
da poesia . Ao final da leitura de ''[Era uma vez um vampiro]'', por exemplo,
as crianças costumavam imitar o som, uma onomatopéia, e
a expressão corporal do vampiro, levantando as mãos e curvando
o corpo para assustar uns aos outros.
Para elas, há necessidade de brincar o poema e de explorar suas
possibilidades sonoras, mas não apenas isso. Nesse sentido é
interessante lembrar a resposta de um dos meninos da Escolinha de Arte
à última pergunta de nossa ''entrevista''. Ele disse que
com os poemas ''as crianças aprendem a não ter medo de monstro.
Quando eu tinha 3 anos eu tinha muito medo de monstro, eu ainda tenho,
mas já passou. Quando eu vou na luz apagada, eu pego minha lanterna
e lembro dos poemas''. A poesia no corpo e na imaginação
é o valor inquestionável do texto poético na Educação
Infantil, pois, à medida que as crianças conversam e brincam
motivadas pelo poema, ele ultrapassa o jogo de palavras e passa a se tornar
significativo, legítimo, fazendo parte de suas vidas.
Há ainda um aspecto a destacar a partir da leitura do poema ''Feiticeiras'',
a seguir:
Feiticeiras
Feiticeiras
Cozinheiras
Se encontraram.
Estavam mudas
As narigudas?
Do que falaram?
Estavam perfeitas
Trocaram receitas:
Fritada de sapo,
Caldo de serpente.
Nesse texto há marcas muito evidentes dos motivos
pelos quais as crianças o adoravam e decoraram com facilidade.
Além da temática, o poema é curto e apresenta estrofes
com um esquema crescente de metrificação: a primeira com
versos trissílabos, a segunda tetrassílabos e a quarta e
última pentassílabos, ou redondilha menor. Em seguida, apresenta
rimas externas consoantes em todos os versos, com exceção
dos dois últimos. Esse fato, gerou um episódio bastante
significativo para a pesquisa.
Na Escolinha de Arte, depois de ouvirem o poema algumas vezes, as crianças
referiram que os versos ''Fritada de sapo/Caldo de serpente'' não
combinavam (as crianças nessa escola chamavam as rimas de ''palavras
que combinam''). Indagamos qual seria a opção e as crianças
permaneceram em silêncio. Sugerimos, então, se ''Fritada
de gente/Caldo de serpente'' parecia bom e as crianças, rindo muito,
consentiram. Depois, toda a vez que líamos o poema juntos, insistíamos
na sua forma original e elas argumentavam que era ''de outro jeito'',
confirmando os versos ''alterados''. Em uma ocasião um dos meninos
afirmou ''é mais legal fritada de gente porque é mais assustador''.
Já no Colégio Gaspar Silveira Martins, as crianças
também demonstraram contariedade com os versos e chegaram a sugerir
que se fosse ''Fritada de sapo/Caldo de sovaco'' o poema ficaria ''muito
melhor''. Igualmente, elas não esqueceram a segunda versão
e assim a incluíram em seu repertório estético.
Os versos criados e aceites pelos pequenos ilustram o apreço e
a facilidade com que eles se rendem aos jogos sonoros. Esse é o
valor do texto poético na infância, já que a poesia
consiste na própria essência da Educação Infantil:
jogo, movimento e imaginação. A audição de
um poema por uma criança permite que ela crie suas próprias
imagens a partir da palavra viva: vida projetada pelos poetas.
Com isso, chegamos a um ponto delicado e de suma importância: o
poema só chega à criança através da voz adulta,
por isso é preciso que
o profissional que inicia a criança no trabalho com a poesia seja
um professor atento e perspicaz, que reconheça que os jogos com
palavras, além de serem atividades lúdicas, também
são atividades que permitem à criança expressar,
na sua linguagem, as suas faltas, os seus desejos, as delícias
e os dissabores do seu estar no mundo.Esse professor não considera
a poesia uma ''atividade'' difícil para crianças de 0 a
6 anos. Isso porque sabe [...] que a poesia já faz parte da vida
das crianças e está presente nos brincos, nos acalantos,
nas brincadeiras e nas canções do cotidiano infantil. Esse
profissional não esqueceu, em sua memória e em sua imaginação,
que a poesia pulou junto no seu pular corda, rodou junto no seu fazer
a roda, jogou junto no seu jogo de escolher, cantou junto na monotonia
monocórdica das cantigas com que foi ninado.
Por que, professor, não incluir a prática e a vivência
da leitura poética no espaço escolar se as crianças
nos sinalizam, a cada momento, em cada gesto, em cada fala e em cada brincadeira
que joga o som das palavras, estarem abertas e aptas a aprenderem através
do movimento que, com a poesia, anima seus corpos e sua imaginação?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Paulo: Martins Fontes, 1988.
Erhardy, Melanie. Feiticeiras. In: ALBAULT, Corinne et al. Rima pra cá,
rima pra lá. São Paulo: Companhia das letrinhas, 2002.
FRONCKOWIAK, Ângela Cogo; SCHRAMMEL, Lisnéia B. Literatura,
infância e experiência poética na escola: janela de
mim. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 29, n.47, p. 7-20, jul./dez. 2004
__. Ainda e sempre há poesia. Artigo submetido à preciação
da comissão editorial da revista Educação em Revista
em janeiro de 2005. Não publicado.
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. 2. ed. São Paulo: Ática,
1985.
JEAN, Georges. Na escola da poesia. Lisboa: Instituto Piaget, [s.d].
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Melhoramentos., 2000.
MURRAY, Roseana. O circo. Belo Horizonte: Miguilim, 1986.
PAES, José Paulo. É isso ali: poemas adulto-infanto-juvenis.
Rio de Janeiro: Salamandra, 1984.
TAVARES, Hênio Último da Cunha. Teoria Literária.
Belo Horizonte: Itatiaia: 2002.
TREVISAN, Armindo. A poesia: uma iniciação à leitura
poética. 2.ed. Porto Alegre: Secretaria Municipal da Educação,
Secretaria Municipal da Cultura, Uniprom, 2001.