DESENVOLVIMENTO
CONCEITUAL: ENTRE OS CONHECIMENTOS PRÉVIOS E O SABER SISTEMATIZADO
Marta
Sueli de Faria Sforni - UEM
Fabiane
Bolonhezi de Morais - UEM
Introdução
Os cursos de formação de professores, normalmente,
estão voltados para a preparação dos futuros profissionais
para atuar no ensino regular com crianças e adolescentes. Entretanto,
há uma grande clientela que está fora desse perfil esperado
pelos professores e que exige um trabalho diferenciado por parte do
educador. Segundo dados estatísticos apresentados por Ribeiro
at all. (1999) as taxas de analfabetismo entre pessoas de 15 anos ou
mais têm diminuído. Em 1920 eram de 65%, em 1940 eram de
56%, em 1960 eram de 40%, em 1980 eram de 26%, já em 2000 eram
de 14% (ver quadro abaixo).
O
quadro apresentado apesar de demonstrar os avanços da sociedade
brasileira no combate ao analfabetismo, é questionável,
pois pauta-se em critérios bastante flexíveis para qualificar
uma pessoa alfabetizada, basta que consiga ler e escrever o próprio
nome e compreender frases simples. Porém, os critérios
utilizados na definição do sujeito alfabetizado vêm
sofrendo revisões, tendo surgido, inclusive, o conceito de analfabetismo
funcional. É considerada alfabetizada funcional a pessoa capaz
de utilizar a leitura e a escrita de seu contexto social na resolução
de situações de cotidianas. Posteriormente, foi criado
o conceito de letramento para identificar essa qualidade de apropriação
da linguagem escrita. O conceito que distingue analfabetismo e analfabetismo
funcional revela uma diferença entre os sujeitos que apenas decodificam
a linguagem escrita – alfabetizado, daqueles que realmente conseguem
fazer uso dessa linguagem com competência em vários contextos
– alfabetizado funcional.
Diante
do estabelecimento desse novo conceito, os dados estatísticos
apresentados acima mudam consideravelmente. Ou seja, muitos adultos
que eram considerados alfabetizados segundo o critério anterior,
foram considerados “analfabetos funcionais” por não
conseguirem fazer uso da leitura e escrita em outras situações
além de grafar o próprio nome. Os dados apresentados por
Ribeiro at all (1999) demonstram que o percentual de analfabetos funcionais
no Brasil, entre 15 anos ou mais, apesar de estar diminuindo ano a ano,
ainda é preocupante. As taxas de analfabetismo funcional entre
pessoas de 15 anos ou mais em 1992 eram de 37%, em 1997 eram de 32%,
já em 1999 eram de 29% (ver quadro abaixo).
Esses
dados indicam a necessidade de se conhecer melhor essa clientela para
que o professor consiga realmente contribuir para a aprendizagem desses
alunos. Consideramos que conhecer como o adulto pouco escolarizado organiza
seu pensamento permeado por uma grande bagagem de conhecimentos prévios,
permite reconhecer formas de intervenção mais
eficientes no processo de aprendizagem de conteúdos escolares.
Os
resultados alcançados neste trabalho apontam para a importância
de conhecer a especificidade desses alunos, a importância do conhecimento
científico como possibilidade de superação ou generalização
de saberes cotidianos, bem como o movimento do pensamento dos alunos
entre conhecimentos prévios e conhecimentos escolares. Movimento
que pode ser tomado como facilitador do processo de escolarização
ou como obstáculo à aquisição do conhecimento
científico.
Com
a intenção de analisar o processo de aprendizagem na alfabetização
de adultos, procurando compreender os modos de interação
dessa clientela com o conhecimento escolarizado, a presente pesquisa
procurou verificar quais as operações (matemáticas,
de raciocínio lógico) que os alfabetizandos conseguem
desenvolver sem ajuda e quais são os processos utilizados. Mediante
este trabalho foi possível identificar formas de interação
entre conceitos cotidianos e ientíficos presentes na realização
de atividades escolares.
A pesquisa foi realizada mediante investigação
teórica e de campo. Realizamos levantamento bibliográfico
e estudos sobre a educação de adultos e sobre o processo
de aprendizagem conceitual de acordo com a abordagem histórico-cultural.
Realizamos algumas observações e intervenções
de caráter informal no Programa de Educação de
Jovens e Adultos da Universidade Estadual de Maringá.
O PROEJA
O
Programa de Educação de Jovens e Adultos da Universidade
Estadual de Maringá (PROEJA) foi criado em 1988 por um grupo
de professores do Departamento de Teoria e Prática da Educação
dessa universidade. Tinha inicialmente a intenção de atender
funcionários analfabetos ou com pouca escolaridade que compunham
os quadros funcionais da própria universidade.
A necessidade de instruir os funcionários
somou-se a importância de criar um espaço para a realização
de estágio para alunos do curso de Pedagogia e demais Licenciaturas
da Instituição.
Os
estagiários recebem uma bolsa e são orientados por professores
de seus cursos; diariamente realizam suas atividades com os adultos
no Campus da Universidade e no Hospital Universitário. Atualmente,
o programa conta com um número significativo de alunos que não
são funcionários da universidade, pessoas da comunidade que procuram o programa
para iniciar ou dar continuidade aos seus estudos. Ou seja, a clientela
não se restringe a servidores da Universidade Estadual de Maringá.
Em 2003 foram formadas turmas de alfabetização na Cooperativa
de Catadores de Lixo e na Usina de Reciclagem de Lixo de Maringá,
a pedido dessas organizações.
Os estudos estão organizados em três fases: na Fase
I são abordados conteúdos de alfabetização
à 4ª série do Ensino Fundamental; a Fase II compreende
as quatro últimas séries do Ensino Fundamental (5ª
à 8ª série) e a Fase III corresponde ao Ensino Médio.
O aluno iniciante é avaliado para verificar em que Fase deve ingressar
e ao final é novamente avaliado
para receber a certificação. Os dois momentos de avaliação
são realizados pelo CEBEJA (Centro
Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos)
em parceria com o PROEJA. A universidade tem autonomia didático-metodológica
para realização dos trabalhos em sala de aula.
Os conteúdos foram estabelecidos no projeto do programa
e são pautados nos conteúdos estabelecidos pelo CEBEJA,
que, por sua vez, seguem diretrizes nacionais para a educação
de jovens e adultos, elaboradas pelo MEC (Ministério da Educação
e Cultura).
A turma observada durante este trabalho é formada por
alunos que se encontram na Fase I. As aulas são ministradas no
próprio campus da universidade, são realizadas diariamente
e têm a duração de 2 horas. A estagiária
é acadêmica do Curso de Pedagogia. A turma é formada
pro 10 alunos com idades que variam de 20
a 70 anos, aproximadamente.
Durante
a realização dos estudos sobre o processo de ensino e
aprendizagem em contexto escolar, identificamos a importância
de se considerar que a efetivação de um bom ensino implica
em conhecer três aspectos envolvidos no processo: o conteúdo
a ser ensinado, o aluno e o processo de aprendizagem. No caso da educação
de adultos os dois últimos itens – o aluno e o processo
de aprendizagem – merecem uma atenção especial,
pois, nesses dois aspectos revela-se a especificidade dessa situação
de ensino. Por isso, tais questões serão
destacadas ao longo do texto. Há aspectos gerais do trabalho
escolar que devem ser considerados em qualquer relação
de ensino e aprendizagem, e aspectos específicos, particulares
àquela clientela que se vai trabalhar. Trataremos as questões
acima permeando aspectos gerais e particulares; gerais pautadas no referencial
teórico adotado – a abordagem histórico-cultural
e a teoria da atividade de Leontiev – e particulares decorrentes
da análise das observações realizadas em sala de
aula no Programa de Educação de Jovens e Adultos da UEM.
O aluno
Quem
é o aluno que resolve iniciar ou retomar seus estudos já
na vida adulta? O que conhece e o que desconhece? Quais são as
suas expectativas em relação à escola, à
vida, ao trabalho? Segundo Negrão (2002, p. 13):
O adulto analfabeto ou em processo de alfabetização
se caracteriza como trabalhador braçal sem acesso à escolarização
regular, sem acesso as bens de consumo essenciais ao desenvolvimento
de um vida integrada ao ritmo e às exigências cotidianas
dos centros urbanos.
Em decorrência da exclusão em que vivem não
podem exercer plenamente a cidadania, “uma
vez que ser cidadão significa ser indivíduo no gozo dos
direitos civis e políticos de um estado, e que cidadania tem
a ver com o uso dos direitos e o direito de ter deveres de cidadão”
(NEGRÃO, 2002, p. 13).
A ausência da escolarização na fase inicial
de suas vidas parece apenas colocá-los em uma situação
de não-conhecimento, de carência, de falta. Muitas vezes,
a escola os trata assim, como um recipiente vazio que precisa ser enchido
mesmo que tardiamente. Certamente, a condição de excluídos
da escola e dos meios de acesso ao saber sistematizado lhes trouxe prejuízos
ao desenvolvimento do psiquismo. Porém, é necessário
perceber que esses alunos não vivem em condição
de ausência de saber, eles detêm um grande repertório
de saberes que precisam ser conhecidos pelo educador para que este faça
bom uso deles no processo de apropriação de novos conhecimentos.
Ou seja, é preciso compreender o que as condições
de “não-crianças”, de excluídos e pertencentes
a determinados grupos culturais influenciam no processo de aprendizagem
de conteúdos escolares (Oliveira, 1999b).
A
escola é considerada como o primeiro espaço, fora do ambiente
familiar, de preparação dos sujeitos para o ingresso na
vida social. A entrada na escola constitui-se em um “rito de passagem”
para a inserção efetiva do sujeito na vida em
sociedade. A criança passa a interagir com outras
pessoas não vinculadas ao seu pequeno círculo familiar
e a receber os conhecimentos necessários ao pleno exercício
da cidadania, bem como para se inserir no mundo do trabalho. A escolarização
é concebida, portanto, como uma pré-condição
para o ingresso na vida adulta.
Algumas
pessoas, porém, contrariam essa “lógica natural”
dos fatos e ingressam na vida adulta, sem passar por aquela que supostamente
seria a preparação para ela – a escola. Somente
depois ou enquanto trabalham, educam os filhos, interagem com uma sociedade
letrada, informatizada, é que vão, ou retornam, à
escolar para receber os primeiros elementos formais da linguagem escrita,
do cálculo e das ciências em geral.
Esses
sujeitos, diferentemente da criança, já interagiram por
muito tempo com a escrita, com a matemática e com demais aspectos
do conhecimento científico presentes no cotidiano. Tal situação
implica em considerar que, na condição de alunos, esses
sujeitos apresentam especificidades que devem ser levadas em consideração
no processo de ensino e aprendizagem. Se, por um lado, o conhecimento
do qual ele precisa se apropriar é o mesmo que a criança
deve se apropriar nas séries iniciais, por outro, é fundamental
reconhecer que a relação que o adulto estabelece com o
conhecimento não é igual ao verificado na criança.
Observamos,
porém, que no ensino de adultos pouco escolarizados há
uma tendência em infantilizá-los. Às vezes as mesmas
atividades propostas em livros didáticos destinados às
crianças são realizadas nas salas de aulas de adultos.
Pouca atenção é dada a cultura não-escolar que trazem consigo,
onde implicitamente estão presentes partes de conhecimentos matemáticos,
lingüísticos, científicos, geográficos etc,
que foram apropriados sem sistematização e que acabam
tendo uma característica própria. Esses alunos, portanto,
apresentam enorme variedade de modos de vida, crenças, teorias
sobre o mundo, uso diferenciado de vários artefatos culturais
e criações próprias dos diferentes grupos humanos
ao qual pertencem.
Outro
aspecto comum na educação de adultos é a adoção
de uma atitude paternalista em relação a eles. Alguns
educadores ficam sensibilizados pelas condições adversas
de vida a que seus alunos foram submetidos ao longo da vida. Assim,
procuram tornar mais leve a vida dos mesmos, naquilo que lhes é
do alcance como educador – “não exigem muito dos
alunos”: facilitam os trabalhos propostos, permanecem presos ao
cotidiano, não interferem nas respostas dos alunos. Tal atitude,
apesar de bem intencionada, não colabora para a promoção
desses alunos, pois os mantêm a margem do conhecimento sistematizado.
É importante observar que o mais relevante, nessa clientela,
não é a sua condição de excluídos,
mas o grande desejo de aprender que os move rumo as salas de aula. Dar-lhes
acesso ao conhecimento que lhes foi negado pelas condições
políticas, econômicas e sociais de uma sociedade omissa
em relação a promoção do desenvolvimento
humano de todos é o grande desafio a ser assumido pelos educadores.
O processo
de aprendizagem
Para compreendermos
algumas especificidades do pensamento do adulto pouco escolarizado frente
ao conhecimento escolar é preciso, antes, entendermos como ocorre
a aprendizagem em outras fases da vida, bem como o papel específico
que a educação escolar desempenha no desenvolvimento dos
sujeitos, para então, começarmos a compreender o que a
ausência da escolarização representou na constituição
do pensamento de quem foi excluído desse processo. Sabemos que
a criança começa sua vida em meio a objetos e fenômenos
criados pelas gerações que a precederam e vai se apropriando
deles conforme se relaciona socialmente e participa das atividades e
práticas culturais.
As atividades que a criança realiza são decorrentes
do meio onde ela vive, ou seja, a interação com adultos que compartilha com elas seus modos
de viver, de fazer as coisas, de dizer e de pensar, entrelaçam-se
com as suas reações naturais – herdadas biologicamente.
Referindo-se a esse processo afirma Leontiev (1988) que cada indivíduo
aprende a ser homem.
É na sua relação com o outro que a criança
vai se apropriando das significações socialmente construídas.
Desse modo, é o grupo social que, por meio da linguagem e das
significações, possibilita o acesso à formas culturais
de perceber e estruturar a realidade. O processo de desenvolvimento
vai do social para o individual, ou seja, os conteúdos e formas
do pensar e agir são resultado da apropriação de
formas culturais de ação e de pensamento.
Nas interações sociais é que devem ser buscadas
as origens e as explicações do funcionamento psicológico
do homem.
Segundo Vygotsky não se pode estudar o comportamento humano
no indivíduo isolado, mas nos processos de interação
entre indivíduos, “a aprendizagem e o desenvolvimento não
se encontram pela primeira vez na idade escolar, mas estão de
fato interligadas desde o primeiro dia de vida da criança”
(VYGOTSKY, 2001, p.477).
Desse modo, considera-se que toda função psicológica
é desenvolvida em dois planos: primeiro, no da relação
entre indivíduos e, segundo, no próprio indivíduo:
“... é como se processos como o
raciocínio e a compreensão de mundo, a interpretação
da casualidade física e o domínio das formas lógicas
de pensamento e da lógica abstrata transcorressem por si mesmos,
sem qualquer interferência por parte do ensino escolar”(VYGOTSKY,
2001, p.466).
Sendo assim, podemos observar que é a partir das interações
sociais, ou seja, do meio onde se vive, que o indivíduo desenvolve
sua forma cultural de atividade, estrutura sua relação
e seu próprio pensamento, antes mesmo de ingressar no meio escolar.
Desde os primeiros dias de vida da criança, tem início
o processo interligado de aprendizagem e desenvolvimento.
Tudo o que a criança aprende com os outros indivíduos
vai sendo elaborado por ela, vai se incorporando a ela, transformando
seus modos de agir e pensar. Ao chegar à escola, mesmo dominando
empiricamente vários conceitos, há a reelaboração
dos mesmos, a partir de uma nova relação cognitiva com
o mundo e com o pensamento, que foi desenvolvido em relações
cotidianas. A escola possibilita o contato com o sistema organizado
de conhecimento e, fornece instrumentos para elaborar e desenvolver
esses conhecimentos. Sobre essa relação entre conceitos
cotidianos e científicos destaca Vygotsky (2001 p. 525):
“A criança já conhece uma
determinada coisa, já tem conceito, mas ainda tem dificuldade
de dizer o que representa esse conceito na sua totalidade, no âmbito
geral. O momento de surgimento do conceito científico começa
exatamente a partir da definição verbal, de operações
vinculadas a essa definição”.
Desse
modo, vemos que para Vygotsky, reconhecer aquilo que o aluno já
sabe é importante para que se estabeleça um vinculo entre
os sentidos que os alunos têm sobre o fenômeno ou objeto
estudado e o seu significado científico.
As
particularidades do conhecimento do adulto pouco escolarizado, citadas
anteriormente, acarretam diferentes níveis de interação
com o conhecimento escolar e, por decorrência, diferentes níveis
de apropriação de novos saberes.
Ao estudar o processo de formação de conceitos,
Vygotsky levanta um aspecto de grande significado para a educação
escolar: a distinção entre processos de desenvolvimento
de conceitos espontâneos e os processos de desenvolvimento de
conceitos científicos. Ambos diferenciam-se por estabelecerem
relações distintas com o objetivo e com a experiência
da criança; e por serem embasados em diferentes processos intelectuais.
Segundo Vygotsky “...nos
conceitos científicos e espontâneos existe outra relação
com o objeto e outro ato de sua
apreensão pelo pensamento” (VYGOTSKY, 2001, p.268).
O autor complementa essa distinção explicitando que a
formação de conceitos cotidianos implica em uma relação
direta com o fenômeno ou objeto, já a assimilação
do sistema de conhecimentos científicos envolve outra modalidade
de pensamento:
...essa formação de conceitos
requer atos de pensamento inteiramente diversos, vinculados ao livre
movimento no sistema de conceitos, à generalização
de generalizações antes constituídas, a uma operação
mais consciente e mais arbitrária com conceitos anteriores (VYGOTSKY,
2001, p.269).
Considerando que o adulto detem significativa bagagem de conceitos
cotidianos formados ao longo de muitos anos de experiências, a
compreensão do aspecto acima citado, apresentado pela abordagem
histórico-cultural, torna-se ainda mais relevante. Tendo em vista
que o estabelecimento da relação entre conceito espontâneo
e científico é um aspecto fundamental para a organização
do ensino nos perguntamos: como se processa essa relação
quando os alunos não são mais crianças, mas adultos
com grande repertório cultural adquirido em contextos não-formais
de aprendizagem?
O
pensamento do aluno adulto: entre os conhecimentos prévios e
a escolarização
Pensar sobre como esse alunos pensam e aprendem, remete-nos ao
fato de o adulto carregar consigo toda uma história de conhecimentos,
experiências, conceitos sobre o mundo. Em situação
de aprendizagem isso acarreta diferentes habilidades e dificuldades.
Verifica-se, por um lado, uma maior capacidade de refletir sobre o conhecimento
e seus processos e, por outro, maior dificuldade em desestabilizar conhecimentos
cotidianos já consolidados pela experiência.
No processo de aprendizagem de jovens e adultos o que se torna
mais relevante é a questão de especificidade cultural.
Pois, esta educação não é dirigida a qualquer
jovem ou adulto, mas sim a um grupo delimitado de pessoas relativamente
homogêneo inseridos em grupos culturais que permaneceram à
margem do acesso ao conhecimento escolar em uma sociedade escolarizada.
Os alunos pouco escolarizados defrontam-se ao longo de suas vidas,
em seu cotidiano, com situações em que necessitam de vários
conhecimentos para a sua solução. Dessas necessidades
cotidianas presentes externamente nas relações sociais,
surge a necessidade interna de construírem um certo saber capaz
de auxiliá-los no enfrentamento dessas situações.
Por exemplo, as situações cotidianas demandam,
freqüentemente, que mecanismos de raciocínio lógico-matemático
sejam utilizados para a solução de problemas práticos
do dia a dia, o que alguns realizam de maneira correta e rápida,
de forma mental. É assim que adultos com pouca ou nenhuma escolarização,
não se deixam enganar em situações de compra e
venda.
Observamos no Programa de Jovens e Adultos uma situação
em que ficam evidenciadas as possíveis formas alternativas que
os adultos utilizam para resolver problemas cotidianos sem contar com
o conhecimento formal para instrumentalizá-lo. Uma alfabetizanda,
com aproximadamente 70 anos, que havia sido costureira praticamente
durante toda a sua vida, em uma aula de matemática revela extrema
dificuldade em fazer a mais simples das operações, porém,
como costureira, lidava constantemente com cálculos e medidas.
Questionada sobre como realiza essas operações revela
que sempre fez contas matemáticas utilizando-se da fita métrica.
A utilização da fita métrica é o que a alfabetizanda
traz consigo da sua história de conhecimentos e experiências.
Se considerarmos que saber soma, subtração, divisão
e multiplicação é saber realizar formalmente essas
operações podemos afirmar que essa senhora não
tem nenhum domínio do conhecimento matemático. Porém,
se considerarmos que somar, subtrair, dividir e multiplicar são
formas de controlar as quantidades podemos considerar que ela tem conhecimento
matemático ao utilizá-lo como uma ação adequada
à atividade que realiza. Isto é, seu controle de quantidades
atende a uma “demanda situacional”,
conforme afirma Oliveira (1999). É preciso que a educação
escolar permita a essa aluna “descontextualizar” esse conhecimento, transformar esse
saber concreto em conhecimento abstrato, para que ele possa ser generalizado
para outros contextos (OLIVEIRA, 1999a; SFORNI, 2004). Porém,
não se faz essa passagem sem que pontos de contato entre essa
cultura não-escolar e a cultura
escolar sejam estabelecidos nas interações em sala
de aula.
“O
raciocínio científico difere e contrasta com o raciocínio
cotidiano, sendo que muitas vezes a melhor solução para
um problema escolar acaba mostrando-se pouco eficiente diante de um
problema cotidiano aparentemente similar, tornando muito difícil
a transferência do conhecimento de um âmbito para outro.
Justamente essa transferência ou generalização dos
conhecimentos adquiridos para um novo contexto ou domínio, tem
se apresentado como um problema de aprendizagem de difícil superação.”
(TOLEDO, 2003, p.4)
Outro
fator importante a ser considerado na educação de adultos
é a linguagem. Observamos que os alfabetizandos quando desejam
transmitir alguma mensagem utilizam-se freqüentemente de gestos,
devido à falta de vocabulário necessário para verbalizar
seu pensamento. Tal fato nos leva a pensar que a linguagem adquirida
em seu contexto pode ser considerada insuficiente ou inadequada para
utilização em espaço escolar. Observamos que essa
situação é bastante comum quando a estagiária
trabalha com problemas. Após escrever um problema no quadro:
“comprei 30 laranjas e ganhei mais 45. Com quantas laranjas fiquei?”,
a estagiária pergunta aos alunos como resolver o problema. Eles
“chutam” formas de operação: “é
de mais?!” “é de menos?!”... A estagiária
pede que leiam novamente o problema, mas, mesmo após a leitura,
os alunos continuam sem a certeza quanto à forma de resolve-lo.
Eles parecem presos aos numerais 30 e 45 e não a situação
presente no problema. Então, a estagiária “dramatiza”
a situação, utilizando-se de muitos gestos e de alguns
objetos disponíveis na sala para representar as frutas. Somente
depois dessas ações da estagiária os alunos perceberam
que seria aumentada a quantidade de frutas.
Nos
parece que se, fora da escola, vivenciarem uma situação
semelhante à descrita no problema, nenhum dos alunos se enganaria
achando que teria menor quantidade de laranjas após terem ganho
uma determinada quantia. Porém, a linguagem escrita, nos moldes
escolares, parece dificultar a transferência da situação
exposta para algo já conhecido.
A
distância entre o problema proposto pela estagiária e aqueles
com os quais os alunos se defrontam em situações cotidianas,
não é grande. O que distancia um problema do outro é
a linguagem escolar, que parece tratar de outros fenômenos que
não aqueles vividos pelos sujeitos. Diferentemente da criança,
o adulto tem a linguagem mais consolidada, apresenta menor flexibilidade
para incorporar novos termos ao vocabulário. Observamos que mesmo
após a professora utilizar por várias vezes o termo soma,
muitos alunos continuam dizendo que a conta é de “cruzinha”,
referindo-se ao símbolo (+) utilizado.
Situação
semelhante pode ser observada quando a estagiária trabalhou com
o ábaco para ensinar o valor posicional dos numerais. Os alunos
tiveram bastante dificuldade em compreender o que ela queria explicar
com as unidades, dezenas e centenas. Porém nenhum deles apresentou
dificuldade com o valor posicional ao fazer as operações.
O conhecimento social já adquirido ao longo da vida faz com que
eles saibam que, por exemplo, 13 + 9 não pode resultar em 112,
como às vezes ocorre nas primeiras somas feitas pela criança
no formato apresentado pela escola, de se somar unidade com unidade,
dezena com dezena, e assim sucessivamente.
Mesmo
tendo a estagiária apresentado operações para que
eles considerassem a importância do valor posicional, como facilitador
para a realização das mesmas, os alunos não levam
em consideração essa forma de realizar a soma ou subtração.
Os alunos fazem uso de um pensamento matemático que considera
a quantidade total envolvida na operação. Como as quantidades
são pequenas, eles conseguem permanecer somando do mesmo modo
como sempre fizeram, isto é, levando em consideração
o valor total, sem precisar das explicações realizadas
mediante o ábaco, que parecem não ter nenhum sentido para
eles. Se a estagiária apresentasse somas e subtrações
com quantidades mais elevadas, talvez a consideração do
valor posicional teria se tornado uma necessidade para os alunos. Mesmo
as pessoas escolarizadas utilizam outro percurso de pensamento para
resolver problemas com pequenas quantidades que não aquele formal
explicado pela escola.
Todavia,
o conhecimento do valor posicional, inútil na resolução
das operações apresentadas pela estagiária, deixa
de ser inútil quando se trata de operações com
maiores quantidades, quando não é possível contar
com ajuda de recursos externos (dedos, palitos...) ou com a imagem mental
da quantidade resultante. A ausência desse conhecimento conduz
a limitação da possibilidade de operar com grandes quantidades,
limitando o pensamento matemático às situações
cotidianas.
É
importante reconhecer que os alunos já trazem uma bagagem de
conhecimentos para a escola, mas é igualmente necessário
reconhecer as potencialidades desse saber para o desenvolvimento de
uma nova qualidade de pensamento. Por exemplo, dizer que os alunos já
lidam com situações que envolvem o conhecimento matemático
não significa que eles saibam matemática. Eles demonstram
ter noções matemáticas e não exatamente
domínio de conceitos matemáticos. Percebemos essa diferença
a partir das fala e desempenho de um dos alunos. Esse aluno é
engraxate, portanto lida cotidianamente com operações
envolvendo o sistema monetário e quando questionado sobre a forma
que calcula o valor do troco a ser dado aos clientes, afirmou: “Ninguém me passa para trás, se me dão cinco reais
devolvo três e cinqüenta, se me dão dez devolvo oito
e cinqüenta” (Nil). Porém, Nil apresenta muitas
dificuldades para resolver outros problemas matemáticos que envolvem
a realização de operações semelhantes. Ou
seja, o conhecimento adquirido no cotidiano não pode ser ampliado
para novas situações, não possibilitou a generalização
para outros contextos. Sendo, portanto, tal conhecimento suficiente
apenas para realizar, com competência, uma tarefa particular.
Esse
aluno demonstra utilizar esquemas práticos para resolver problemas
matemáticos do cotidiano, isso não quer dizer que tenha
o domínio consciente das ações que envolvem o controle
de quantidades. Leva-lo à compreensão das operações
aritméticas por ele já automatizadas, permitiria propiciar
uma nova qualidade de pensamento sobre suas próprias ações,
bem como a extensão da situação particular para
os demais problemas envolvendo o controle de quantidades.
Outra
característica que pudemos observar no grupo de alunos foi a
facilidade com que realizam tarefas sem se questionarem da finalidade
das mesmas. Copiam sem que estejam compreendendo o que copiam, fazem
as operações mecanicamente sem se questionarem, aceitam
uma rotina de tarefas sem se rebelarem, o que nos remete ao fato destes
terem sido trabalhadores precoces, ou seja, desde a infância sempre
obedeceram a ordens sem qualquer questionamento.
Se
por um lado, os alunos parecem acatar a idéia de inferioridade,
e de submissão ao outro, seja ele o patrão, o professor,
a tarefa escolar, por outro parecem nutrir a idéia de que a educação
pode tirá-los dessa condição. As pequenas conquistas
de dar o troco correto, de ler uma receita culinária sem ajuda,
de ler trechos bíblicos parece ir elevando a auto-estima desses
alunos, que contam orgulhosamente à estagiária suas novas
competências. Junto desse orgulho, evidencia-se uma revolta contra
a sociedade que muitas vezes lhes foi cruel. O relato da aluna Ode.
(65 anos) à estagiária, ilustra esse sentimento: “Hoje fui atrás do título de eleitor
e consegui ler sozinha o cartaz de que o idoso não precisa ficar
na fila. Se antes eu soubesse ler não seria enganada”.
Conclusões
Oliveira referindo-se a educação de pessoas jovens
e adultas afirma que:
...todo
ser humano é capaz de abstrair, categorizar, fazer inferências,
utilizar formas de representação verbal etc. Esses processos
básicos, disponíveis a todos, seriam mobilizados em diferentes
combinações, dependendo das demandas situacionais enfrentadas
por membros de diferentes culturas (OLIVEIRA, 1999, p.8-9).
A autora considera importante buscar a compreensão dos
mecanismos psicológicos que fundamentam o desempenho desses sujeitos
em diferentes tarefas para que se possa organizar práticas pedagógicas
mais adequadas a esses grupos. Conhecer os diferentes métodos,
estratégias e instrumentos que essa clientela utiliza na sua
inserção social é fundamental, não para
manter essas modalidades como forma de “respeito cultural”,
mas para que o educador tenha claro que há múltiplas trajetórias
de apropriação do mundo objetivo, e que, cabe a instituição
escolar compreender esses processos ao tentar transmitir o conhecimento
escolar, Oliveira afirma que a cultura não-escolar “compreende
modalidades de funcionamento intelectual que vão interagir com
os modos de funcionamento predominantes na escola” (1999a,
p.111). Por isso, a reflexão sobre essas modalidades de pensamento
deve ser parte integrante da preparação do educador de
adultos para o desenvolvimento de seu trabalho (OLIVEIRA, 1999). Conhecimentos
dessa natureza aumentam a possibilidade do professor reconhecer as dificuldades
do aluno e de organizar o ensino de modo a incidir sobre a zona de desenvolvimento
próximo promovendo, assim, transformações no desenvolvimento
cognitivo dessas pessoas (VYGOTSKY, 1999).
Podemos
concluir que pensar a educação de adultos envolve um movimento
entre aspectos gerais e particulares do ensino. É preciso ter
como referência o papel da educação sobre o desenvolvimento
o que é comum a todos os níveis de escolaridade, sem perder,
entretanto, a noção das particularidades do grupo a que
se destina esse ensino. De modo geral para qualquer nível de
ensino devemos perseguir a finalidade da educação escolar
de propiciar condições para a apropriação
de tipos específicos de conhecimento visando a aprendizagem e
o desenvolvimento do ser humano. Neste sentido, é necessário
que o novo conhecimento seja significativo para o sujeito que aprende,
ou seja, a organização do ensino implica no conhecimento,
tanto do conteúdo a ser ensinado, quanto do sujeito que irá
interagir com esse conhecimento.
Como já afirmamos, no ensino de adultos pouco escolarizados
a preocupação com o conhecimento das particularidades
do processo de aprendizagem dos sujeitos envolvidos deve ser ainda maior.
Cada adulto apresenta um vasto repertório cultural, compondo
em sala de aula um conjunto que apresenta enorme variedade de modos
de vida, concepções sobre o mundo, crenças, uso
variado de artefatos culturais e criações próprias
do grupo ao qual pertencem.
Ao
analisarmos a relação entre conceitos espontâneos
e científicos nas interações em sala de aula, percebemos
que a forte presença de conceitos espontâneos nessa clientela
tanto pode dificultar quanto facilitar o acesso aos conceitos científicos.
Dificulta quando o professor considera que os alunos nada sabem sobre
o saber escolar, quando acredita que os conceitos científicos
serão automaticamente colocados no lugar dos saberes anteriores,
quando não estabelece relações entre os novos conhecimentos
e os conhecimentos prévios dos alunos, quando insiste em uma
linguagem que não se aproxima das questões cotidianas,
quando apresenta atividades sem sentido aos alunos. Facilita quando
o professor leva em consideração os saberes dos alunos
e organiza ações não para mantê-los em seu
empirismo, mas para auxilia-los a tomar consciência do pensamento
envolvido em suas ações e, buscar a generalização
do conteúdo em pauta, quando procura compreender a lógica
e os limites desses conhecimentos visando mediar novos saberes.
A problemática em torno da aprendizagem de adultos abre
discussões acerca da relação entre pensamento e
linguagem, processos de abstração e generalização
e a relação entre alienação e conhecimento
científico. Buscou-se por meio desse estudo, contribuir parcialmente
para o aprofundamento dessas discussões e assim, indiretamente,
apontar caminhos que contribuam para o processo da aprendizagem de adultos
em fase inicial de escolarização, sinalizando para a mediação
necessária a apropriação do conhecimento, e, conseqüentemente,
o desenvolvimento intelectivo dessas pessoas.
O
estudo que realizamos aponta para a necessidade de se pensar a educação
como um fenômeno social. Ou seja, a atividade de conhecer extrapola
a simples relação sujeito e objeto e traz as demais relações
humanas e o contexto onde ocorrem as aprendizagens como elementos importantes
para a compreensão das diferentes relações dos
sujeitos com o saber.
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