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  A LEITURA CIENTÍFICA COMO LEITURA DO MUNDO

Joyce Mary Adam de Paula e Silva - Departamento de Educação/Instituto de Biociências

Unesp/Rio Claro

Tomando a idéia de Galileu, de que se o experimento parte de uma pergunta formulada à natureza e de que as respostas da ciência permanecerão sempre réplicas a questões formuladas por homens, não há portanto respostas sem questões e resultados independentes de um ser formulador de questões (Arendt,1988). O presente trabalho, portanto, propõe-se a apresentar uma reflexão sobre as formas de leitura de que podem se revestir textos trabalhados em conteúdos voltados para a ciência no ensino fundamental, promovendo uma atitude questionadora e criativa por parte dos alunos.

Um dos pressupostos do presente trabalho é o de que a forma de leitura dos textos científicos, por parte de alunos e professores, tem como variável fundamental a cultura, a condição de vida e os referenciais a que estão expostos em seu cotidiano. Além disso, a possibilidade de superação da visão de senso comum para uma perspectiva científica da realidade vivenciada, depende da possibilidade desse diálogo entre o saber sistematizado e o referencial cultural e de vida .

O referencial da cultura aqui apresentado, não a descontextualiza de seus determinantes econômicos, políticos e históricos, mas ao contrário busca justamente refletir sobre a importância de entender a cultura no contexto desses determinantes.

Boaventura de Souza Santos ( 2003) apresenta uma reflexão no sentido de que é necessário fazer uma outra leitura do cultural, que não se fixe nas distinções entre cultura, economia e política, mas que entenda que o cultural, ao ser refuncionalizado como mercadoria, rearticula sua dimensão política. Defende que o espaço da cultura incorpora valores de mercado, mas também alternativas sociais, configurando-se em uma relação dialética. A possibilidade da produção dessas alternativas encontra-se na forma de leitura do cultural, dando uma perspectiva política a ela.

Citando Hall, Macedo (2004), afirma que é nesse espaço de alternativas que a temática da diferença cultural presente nas escolas precisa ser pensada. Não há como pensar os sistemas de representação sem a diferença, que produz sentidos culturais e forma identidade e subjetividade.

Assim, a forma de trabalhar os textos de ciências, devem levar em conta não somente os aspectos do método científico universal, mas contextualizá-los em uma linguagem que permita ao aluno um questionamento que esteja à altura de sua reflexão.

Como afirma Krasilchik (2000), falando da perspectiva construtivista da aprendizagem, as pré-concepções dos alunos sobre os fenômenos e sua atuação nas aulas práticas são férteis fontes de investigação para os pesquisadores como elucidação do que pensam e como é possível fazê-los progredir no raciocínio e análise dos fenômenos. Retomando nossa afirmação inicial a partir de Galileo de que o experimento parte de uma pergunta formulada à natureza e de que as respostas da ciência permanecerão sempre réplicas a questões formuladas por homens, e que não há portanto respostas sem questões e resultados independentes de um ser formulador de questões, trabalhar com os alunos levando-os a formular questões sobre os fenômenos da natureza contextualizados em uma realidade concreta, é prepará-los para uma reflexão científica crítica.

A reflexão científica contextualizada a partir da cultura do aluno, permite que esta se dê incorporando a realidade de forma que as questões formuladas sejam fundamentadas nas reais questões enfrentadas pelo aluno e promovam uma re-significação do conhecimento a partir de tal contextualização.

Nesse sentido, a preparação para o questionamento dos fenômenos naturais requer também do professor uma atitude que incentive os alunos a essa postura. Sagan (2003) afirma que no coração da ciência existe um equilíbrio essencial entre duas atitudes aparentemente contraditórias que seriam de um lado uma abertura para novas idéias, por mais bizarras ou contrárias à intuição e de outro lado o exame cético mais implacável de todas as idéias, antigas e novas.

Para ilustrar essas atitudes, Sagan cita uma afirmação que a princípio parece absurda que é: enquanto caminho, o tempo, medido pelo meu relógio de pulso ou pelo meu processo de envelhecimento- atrasa. E também encolho na direção do movimento. E também me torno mais pesado (pág. 297). Essa afirmação que parece absurda, é na verdade, uma declaração da relatividade especial. O que o autor pretende com este exemplo é mostrar que se somos apenas céticos, nunca aprendemos nada, por ter uma atitude de ceticismo logo de início. Por outro lado, afirma que a ciência requer o ceticismo mais rigoroso e intransigente, pois se somos crédulos não desenvolveremos a atitudes de investigar as idéias válidas separando-as das que são meras especulações.

A afirmação que encontramos nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Ciências para 5ª. a 8ª. Séries corrobora com a idéia de que antes de qualquer coisa, a atitude investigativa no ensino de ciências é a questão mais importante, antes mesmo da experimentação em si.

Transcorridos quase 30 anos, o ensino de Ciências atualmente ainda é trabalhado em muitas salas de aula não levando em conta sequer o progresso relativo que essa proposta representou. Durante a década de 80, no entanto, pesquisas sobre o ensino de Ciências Naturais revelaram o que muitos professores já tinham percebido: que a experimentação, sem uma atitude investigativa mais ampla, não garante a aprendizagem dos conhecimentos científicos ( pág 20. )

Ampliando ainda mais esse raciocínio, podemos concluir que a atitude investigativa mais ampla inclui a contextualização do conhecimento na realidade concreta do aluno, dando uma materialidade maior ao conhecimento.

Essa mesma atitude investigativa deve ser adotada na leitura dos textos a que os alunos são expostos no processo de aprendizagem, sejam eles livros didáticos ou textos científicos vários. Tais textos podem ser apresentados como verdades absolutas ou podem se revestir de um questionamento que contextualize o conceito na realidade concreta. Nesse sentido, a interdisciplinariedade no tratamento do conhecimento é um instrumento importante. Tratar o conhecimento de forma integrada é fazer os vínculos do conhecimento científico e tecnológico com as questões sociais, políticas, econômicas e históricas.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Ciências , enfatizam a importância de estimular os alunos ao conhecimento científico, por meio de métodos mais atrativos como jogos, experimentação, etc., o que sem dúvida é muito importante. No entanto, aliado a isso levar o aluno a fazer as perguntas corretas é que é o grande desafio. Estamos chamando de perguntas corretas às perguntas que levem o aluno a aproximar o senso comum de seu cotidiano ao conhecimento científico e que o ajudem a repensar esse cotidiano sob uma ótica mais reflexiva.

Como está colocado nos Parâmetros Curriculares Nacionais:

Torna-se, de fato, difícil para os estudantes apreenderem o conhecimento científico que, muitas vezes, discorda das observações cotidianas e do senso comum. Por exemplo, o conceito de adaptação dos seres vivos é uma relação entre populações de espécies vivas e seu ambiente, como resultado de seleção natural - exprime uma idéia diferente do uso cotidiano do termo ao se dizer que um vaso de planta está bem adaptado numa janela. A observação do caminho diário do Sol em relação ao horizonte faz pensar que nossa fonte de luz gira ao redor do lugar onde vivemos, uma idéia diferente do que propõe a Ciência.

Situar o aluno neste confronto é necessário, mas não costuma ser simples romper com conhecimentos intuitivos (pág. 26)

O rompimento dos conhecimentos intuitivos requer uma atitude investigativa por parte do aluno, que na maior parte das vezes é natural. A criança apresenta uma curiosidade que em geral está presente em suas atitudes cotidianas, mesmo que sejam por meio de raciocínios mágicos e intuitivos. Sagan (2003) exemplifica esse fato ao dizer que :

De vez em quando, tenho a sorte de lecionar num jardim-de-infância ou numa classe do primeiro ano primário. Muitas dessas crianças são cientistas natos – embora tenham mais desenvolvido o lado da admiração do que do ceticismo. São curiosas, intelectualmente vigorosas. Perguntas provocadoras e perspicazes saem delas aos borbotões. Demonstram enorme entusiasmo. Sempre recebo uma série de perguntas encadeadas. Elas nunca ouviram falar da noção de “perguntas imbecis”.

Trata-se então, de desenvolver e canalizar a curiosidade natural das crianças no sentido de torná-la mais estruturada e organizada tomando como válidas todas as questões trazidas por elas promovendo uma reflexão orientada pelo professor sobre a plausibilidade das muitas respostas que poderiam ser dadas a essas perguntas.O exame das diferentes possibilidades de respostas permite que as hipóteses levantadas possam ser examinadas sem preconceitos, dando abertura para as leituras diversas que cada situação pode suscitar.

É necessário discutir com os alunos as diferenças entre dogma, crenças e o conhecimento científico, isto é diferenciar as questões culturais, religiosas e relacionadas ao raciocínio mágico do método científico. Essa forma de leitura do conhecimento permite que o aluno compreenda que a natureza e a realidade sob diferentes óticas.

Para trabalhar o conhecimento nessa perspectiva, a formação do professor é de fundamental importância, pois sem que este tenha uma atitude investigadora e o certo grau de ceticismo de que falamos, não é possível desenvolver um trabalho que promova uma leitura crítica do conhecimento científico historicamente acumulado.Isto é, é necessário que o professor também seja capaz de uma leitura que tenha uma certa dose de ceticismo e uma certa dose de credulidade.

A formação do professor, em geral, por diferentes fatores dentre eles a proliferação de cursos de formação de caráter meramente teórico e de baixa qualidade, também não têm propiciado uma atitude crítica e criativa em relação ao ensino das ciências. Um outro fator importante é a distância entre Instituições que pesquisam o ensino de ciências e os professores que atuam nas escolas dificultando uma reflexão sobre práticas diferenciadas em sala de aula. Os programas de educação continuada oferecido aos professores, por sua vez, não têm dado resultados significativos, seja pela ausência de um acompanhamento mais próximo com avaliações sistemáticas das propostas a serem desenvolvidas na escola.

Assim, sem uma política mais ampla, que proponha e implemente ações que visem o cotidiano da sala de aula, tanto em termos de melhoria da formação dos professores, quanto em termos de uma escola que permita ao professor e ao aluno desenvolverem uma atitude investigadora as leituras da ciência estarão condicionadas à limitação da compreensão principalmente dos que a ensinam.

Não basta os parâmetros curriculares “dizerem” como deve ser feito, é preciso que os professores desenvolvam novas atitudes, assim como os estudos que as instituições de pesquisa em ensino de ciências precisam chegar nesse cotidiano da escola

Bibliografia

Arendt,H. Entre o Passado e o Futuro. S.P. Editora Perspectiva, 1988.

Krasilchik, M.. Reformas e realidade: o caso do ensino das ciências. São Paulo Perspectiva, Mar 2000, vol.14, no.1, p.85-93.

Macedo, E. A Imagem da Ciência Folheando um livro didático. Educação e Sociedade., Campinas, vol. 25, n. 86, p. 103-129, abril 2004

multicultural. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.

Sagan,K. O Mundo Assombrado pelos Demônios. S.P. Cia das Letras, 2003.

Santos, B.S. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo

Brasil. Secretaria de Educação Fundamental.Parâmetros curriculares nacionais : Ciências Naturais /Secretaria de Educação Fundamental. Brasília : MEC /SEF, 1998.

 
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