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A
ESCOLA COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO DOCENTE EM SERVIÇO:
O SUPERVISOR PEDAGÓGICO E SUA AÇÃO NUM ESPAÇO-TEMPO
DE COLETIVIDADE
Márcia
Maria e Silva - Fundação Municipal de Educação
de Niterói (FME)
Anda, quero
te dizer nenhum segredo
Falo nesse chão da nossa casa
Vem que tá na hora de arrumar
(Beto Guedes/Ronaldo Bastos)
Este trabalho
é um relato de experiências sobre o cotidiano de uma escola
da rede municipal de Niterói. Destaco desse universo a ação
do supervisor educacional em parceria com os demais componentes da chamada
equipe técnico-pedagógica: diretor e orientador educacional.
Para que o caminho de reflexão a ser apresentado aqui faça
sentido é importante destacar que procuro fazer com que minhas
intervenções na escola sejam um movimento de pesquisa, da
mesma forma faço da escolha por pesquisar educação
uma permanente relação com as práticas na escola.
Essa opção se justifica no compromisso de redimensionar
práticas educacionais que ainda se mostram presas a uma racionalidade
que deve ser ultrapassada por não mais corresponder às demandas
da contemporaneidade:
Nas teorias pós-críticas dos estudos culturais, feministas,
ecológicos, étnicos, pós colonialistas, pós-marxistas
— que formulam e expressam os problemas sociais contemporâneos
—, os/as educadores/as buscaram uma fonte problematizadora para
trabalhar, com seus/suas alunos/as, a insatisfação com um
mundo moderno que todos/as ajudamos a produzir. Aí, encontraram
novas formas de expressão pedagógica e política,
ensinando por meio da pesquisa-que-procura. Justamente, porque tal ensino-pesquisa
realiza um diagnóstico deste mundo, deste tempo de agora. De um
presente, que nos tocou viver e encarar, que nos amedronta a todos, mas
que, em última instância, é tudo o que temos para
produzir. (2002: p.61)
Apoiada
em teorias que fortalecem uma perspectiva de pesquisa que assume a dúvida
como método, que rejeita a neutralidade como condição
para se chegar a verdade, que rejeita a própria noção
de verdade absoluta, questionando uma objetividade que não se assume
submetida a critérios de aceitação do observador:
(...) quando o observador não se pergunta pela origem de suas habilidades
cognitivas e as aceita como propriedades constitutivas suas, ele atua
como se aquilo que ele distingue preexistisse à sua distinçao,
na suposição implícita de poder fazer referência
a essa existência para validar seu explicar. A este caminho explicativo
dou o nome de caminho explicativo da objetividade-sem-parênteses.
(...) afirmamos que somos objetivos porque dizemos que o que falamos é
válido independente de nós. Ao mesmo tempo, neste caminho
explicativo toda verdade objetiva é universal, ou seja, válida
para qualquer obsevador, porque é independente do que ele faz.
( Maturana ,2002: 45,47)
Na busca
de um outro caminho de observação, o da objetividade-entre-parênteses,
venho procurando compreender as diferentes “coerências”
identificadas na escola não como erros, mas como diferentes modos
de compreender a realidade a partir de distintos caminhos de construção
da vida. Sendo assim, a ação do educador exige pesquisa,
atenção, reflexão. Avançar do lugar que pressupunha
uma intervenção coercitiva, justificada na obediência
para um lugar fundado na cooperação, na compreensão
do outro como legítimo outro na convivência (Maturana,2002)
é a expressão de um compromisso assumido.
Este relato é um prática reflexiva que corresponde a esse
compromisso. Expor fragmentos de interações vivenciadas
na escola em que atuo como supervisora, bem como propor uma reflexão
sobre essas interações no sentido de percebê-las como
um processo em que as experiências vão se revelando como
possibilidades de mudanças, ao mesmo tempo que vão denunciando
uma configuração de escola que ainda se mantém sob
os parâmetros da modernidade, em alguns casos, sem se questionar
quanto a outras possibilidades.
Considero que nosso papel enquanto educador é construir uma acuidade
auditiva cada vez mais apurada que permita identificar brechas no discurso
da escola, de modo que possamos introduzir discussões, estratégias
de ação que provoquem o redirecionamento do seu fluxo, ainda
que isso não determine a radicalidade na mudança; ao contrário
ainda que exija uma paciência histórica que nos faz dar um
passo a cada dia ou como é comum ouvir entre professores, ainda
que seja a passo de formiguinha.
Para uma ação que se propõe atenta, engajada há
que se assumir a responsabilidade com a formação em serviço.
O pedagogo não chega pronto à escola. Nenhum dos atores
que compõem o coletivo da escola está pronto. Vamos nos
fazendo nas relações que construímos, num movimento
constante de praticar a teoria bem como de teorizar a prática que
vai se mostrando nova a cada encontro com a escola. Nossa caminho é
de estranhar o que se mostra no cotidiano como óbvio. Não
é simples o processo. É complexo.
Na tentativa de captar o fluxo da escola com um olhar pesquisador, assumo
não poder ser esse relato uma resposta acabada, pronta e aplicável
a todas as situações semelhantes vividas em outros espaços
escolares. Trata-se de uma experiência compartilhada. Pode provocar
instigações que enriquecem o movimento de mudança
dos que se identificarem com as questões aqui tratadas. Posso afirmar
que esse compartilhamento é uma oportunidade de redimensionar o
trabalho, de rever questões, de perceber novas possibilidades,
de olhar de outras perspectivas os mesmos fatos. Isso tem sido um caminho
de aperfeiçoamento do meu ser professora, educadora, humana. Expor-me
ao diálogo com outras pessoas, de municípios e estados diferentes,
muito favorece esse crescimento.
O contexto em que essas questões se apresentam é da rede
municipal de educação de Niterói, onde desde 1999,
o sistema de ciclos está em processo de implementação.
Desde de fevereiro deste ano, após ser convocada para assumir a
função de supervisora educacional, exonerei-me da função
de professora de língua portuguesa que já há seis
anos assumia na mesma rede. Acrescento que venho atuando na rede pública
estadual do Rio de Janeiro, em diferentes municípios, há
pelo menos quinze anos. Escolho ser educadora reflexiva de minha própria
prática.
Esta apresentação ajuda a identificar que meu processo de
construção de conhecimento sobre escola, sobre educação
é do lugar de professora e também de coordenadora de área,
vinculada à Fundação Municipal de Educação
de Niterói. Considero importante que o lugar de onde falo seja
definido de modo que sirva de suporte para a compreensão do caminho
de construção dos argumentos que serão aqui apresentados.
Minha experiência é maior como professora-coordenadora do
que como supervisora educacional. Este novo exercício muito me
instiga por conseguir identificar nele uma grande possibilidade de fortalecimento
do trabalho pedagógico da escola. Ao dizer assim, refiro-me às
interações potencializadoras do trabalho dos envolvidos
no cotidiano escolar, em especial, professores, alunos e equipe técnico-pedagógica.
Acredito que a escola possa cumprir seu papel de formadora não
somente dos alunos, considerado público-alvo de toda a ação
pedagógica, mas também dos professores, que embora não
reconhecido na escola a partir dessa perspectiva, pode e deve, do meu
ponto de vista, ser ao mesmo tempo gerador e também alvo de nossas
ações formadoras? Nesse sentido a escola pode ser compreendida
como um espaço de formação onde interagem diferentes
culturas e diferentes gerações:
A educação deve contribuir para a autoformação
da pessoa (ensinar a assumir a condição humana, ensinar
a viver) e ensinar como se tornar cidadão. Um cidadão é
definido, em uma democracia, por sua solidariedade e responsabilidade
em relação a sua pátria. O que supõe nele
o enraizamento de sua identidade nacional.(Morin,2000: p.65)
Não
é incomum esperarmos que o professor chegue à escola com
conhecimentos prévios suficientes para exercer com domínio
a sua função. É bom lembrar aqui que sua função
teoricamente compreende conhecimentos específicos, conhecimentos
da realidade da escola pública, em especial da escola pública
de Niterói, sua função compreende ainda a necessidade
de conhecimentos de práticas compatíveis à realidade
na qual passa a interagir.
Sabemos que, embora essa possa ser uma expectativa, na prática,
existem mais dúvidas do que certezas. Sabemos, na prática,
que determinadas certezas tendem a cristalizar ações e gerar
dificuldades não só de relacionamento entre as partes envolvidas
mas também um risco para as possibilidades de aprendizagem emancipatória.
Por que não pensarmos na escola como um espaço de cooperação
em que as potencialidades individuais sejam compartilhadas ?
Por que não buscar construir um espaço de convivência
onde se possa assumir, sem medo, um não saber que abra possibilidades
de novos conhecimentos. Por mais que acumulemos experiências em
diferentes espaços, o novo é sempre um desafio. Em cada
escola, há um outro público. Cada escola é um local
diferente, onde circulam histórias diferentes, que geram diferentes
fluxos. A própria escola torna-se um outro lugar a partir de diferentes
tempos-espaços vividos por diferentes pessoas que por ela passam
ou que nela permanecem.
A partir disso, os encontros na escola entre professores não devem
pressupor uma prontidão. A equipe técnico-pedagógica
pode gerar situações em que os professores e ela mesma aprendam
a inventar uma outra escola. É essa compreensão que me mobiliza
mais esta experiência compartilhada.
A pesquisa-ensino pós-crítica é uma pesquisa de invenção,
não de comprovação do que já foi sistematizado
(...) Ela implode o sistema consensual das formas em que professores/as
e alunos/as habitualmente compreendem, falam e escutam as linguagens pedagógicas
e curriculares(...) Como sua principal tarefa política, a pesquisa-ensino
procura transformar o funcionamento da linguagem da Educação,
na direção de modificar as suas condições
de enunciação, fornecendo-lhe planos infinitos de possíveis.
Embora isso
não tenha sido explicitado até agora, quero dizer que considero
a função de professor uma função de pedagogo,
da mesma forma que considero a função do pedagogo uma ação
docente. Não no sentido de que seus papéis sejam substituíveis
entre si na escola, mas por ser o pedagogo um educador também responsável
pela formação docente em serviço, uma vez que cabe
a ele articular reflexões-ações em espaço
de coletividade que geram uma reformulação no ser-educador.
Sua ação de ensino-aprendizagem por diferentes meios deve
irradiar para a comunidade escolar, indo para além dos professores
e tocando todos os profissionais de educação que atuam na
escola, e também os pais.
Neste trabalho não abordaremos a relação adminstrativo-pedagógica
estabelecida com os profissionais de apoio da escola. É um trabalho
necessário, mas não a proposta para o momento. Trataremos
especificamente da relação entre equipe técnico-pedagógica
com professores e alunos.
Chegando à escola Sebastiana Gonçalves Pinho em fevereiro,
agora como supervisora educacional, em fevereiro, olhei-a com a dúvida.
Como ser supervisora em uma escola que não conheço ainda?
O que a escola esperava de mim? Entendia que deveria me pôr à
disposição do grupo numa perspectiva de aprendizagem.
Antes de assumir a escola, conversei bastante com a diretora. Notei que
via grande importância na ação da supervisora para
o aperfeiçoamento do trabalho pedagógico. Fiquei satisfeita
porque, como ela sinalizou, estava mais disposta a encaminhar os trabalhos
numa linha pedagógica que não superpusesse a sua função
burocrática à pedagógica, forçando um aniquilamento
da última, que deve ser burocrática na medida do enriquecimento
das relações na escola e não de seu esvaziamento
como não é difícil reconhecer na origem da história
da supervisão. Há o risco de que a ação supervisora
se restrinja aos papéis burocráticos e se distancie do compromisso
de buscar suporte para as práticas docentes, bem como do compromisso
de considerar o perfil dos alunos para, no coletivo, configurar essas
práticas.
A orientadora educacional vinha acumulando, junto com a diretora, as funções
do supervisor. Ambas são professoras, a meu ver, engajadas no processo
de aprendizagem da criança, no que compreende à ação,
não só administrativa ou disciplinar, mas também
no que diz respeito às práticas pedagógicas, à
condução do trabalho do professor em sala de aula e fora
dela.
Quero dizer que nós nos encontramos como três pedagogas voltadas
para interesses semelhantes, embora formadas em épocas diferentes,
com percursos de formação também relativamente distintos
e com uma visível disponibilidade de , na medida possível
para o momento, abrir as portas para o diálogo capaz de flexibilizar
as barreiras que se impõem nas habilitações específicas
de cada função. Isso nos faz vivenciar, na prática,
um movimento de ruptura, de um processo de formação de pedagogos
especialistas:
Maria Felisberta Baptista da Trindade, no artigo em que recupera a história
da reformulação do currículo do curso de graduação
em Pedagogia na Universidade Federal Fluminense em 1992, diz que, nesse
processo, “alguns defendiam que as habilitações dos
especialistas em educação deveriam ser proporcionadas em
nível de pós-graduação latu-sensu. A partir
dos estudos e discussões realizados pelos professores do curso
nesse período,
supera-se o modelo anterior de currículo ao qual, após um
período de disciplinas consideradas básicas, se sobrepunha
o período profissionalizante. Instala-se assim um currículo
em rede. Já não há um primeiro momento onde se trata
da teoria para, em seguida, se tratar da prática. Agora desde o
primeiro período, os alunos têm a pesquisa como eixo articulador
dos diversos componentes curriculares. (1999: p.91)
Entendo
que sejamos fruto dessa tensão. A formação inicial
da orientadora educacional precede a reformulação mencionada,
uma vez que ela foi aluna da UFF antes de 1992. Eu ingressei nesse curso
em Angra dos Reis, na época que lecionava lá pelo Estado
do Rio de Janeiro e pela rede particular. A UFF vivia esse período
de transição. Em caráter experimental o novo currículo
era implementado no município de Angra dos Reis. Embora morasse
no município do Rio de Janeiro, prestei vestibular em Angra dos
Reis, passando a fazer parte da primeira turma de Pedagogia nesse novo
currículo. A diretora, por sua vez, tem sua formação
pedagógica em outro espaço e também em outro época.
Isso demonstra a disponibilidade de que falo. Apesar de formações
diferentes, de concepções também diferentes, a urgência
do acontecimento das aprendizagens na escola forçam a flexibilidade.
Aqui todos trabalham por todos, diz a diretora, no compromisso de mais
um pouco me fazer compreender o fluxo já instaurado na escola e,
de certa forma alertando para a necessidade de uma ação
conjunta, quero chamar de participativa.
Encontro uma escola que compõe uma equipe técnico-pedagógica
disposta a pensar-se como pedagoga sem grandes excessos quanto às
delimitações de suas especificidades. Acredito que isso
favoreça o trabalho em equipe porque abre o diálogo. Isso,
por outro lado, não significa que cada um faz o que quer, como
quer do seu lugar generalista. Sabemos das diferenças na atuação
de cada uma. Compreendemos a grande importância da direção
para a viabilização dos trabalhos. Sabemos o que cabe a
cada uma, sabemos também que o que cabe a cada uma precisa ser
pensado em equipe, deixando virem à tona tanto as divergências
nas concepções como as possibilidades a partir e apesar
das diferenças.
O fato de termos nos encontrado cada uma nesse estágio de compreensão
de nossas ações muito vem favorecendo o fluxo cotidiano.
Isso por si é um dado significativo quando convivemos numa rede
de ensino cujo trabalho em equipe, em algumas circunstâncias, tende
a custar a acontecer, seja por falta de afinidade pessoal, seja por diferenças
de princípios no que diz respeito ao seu papel na escola, seja
por divergências justificadas nas relações de poder
que muito mobilizam as interações na escola. Esses problemas
são também responsáveis para a configuração
de um círculo vicioso nas práticas escolares que no lugar
de impulsionarem o crescimento e a formação em serviço
de todos, tendem a aniquilar o processo de expansão de muitos,
forçando um fluxo na contramão do que acredito ser o papel
da escola.
Fui identificando e selecionando com a direção e a orientação
educacional algumas questões para intervenção. Os
professores sinalizavam para o problema da escrita das crianças,
cheia de erros ortográficos. Alguns grupos conseguiam construir
textos considerados criativos, apresentando um certo domínio na
construção de parágrafos narrativos, por exemplo,
mas que mantinham erros ortográficos que não deveriam existir
na etapa de escolarização em que estão. Em função
disso propusemos uma abordagem sobre o tema a partir de um referencial
teórico já conhecido por mim dadas as minhas pesquisas anteriores
como professora de língua portuguesa. Pude perceber que Artur Gomes
de Moraes, estudioso do ensino de ortografia, já havia sido lido
por mais uma professora. Isso muito ajudou a aceitação da
proposta. O carisma e a disponibilidade revelados na professora de sala
de recursos penso ter sido também um dado a favor da experiência
que agora relato.
Considerando o fato de a professora de sala de recursos ter também
formação em fonoaudiologia e de já ter havido uma
sugestão da orientadora educacional, antes de eu chegar à
escola, de que ela fizesse uma abordagem sobre o tema com os professores,
nos organizamos para que uma formação continuada (tempo-espaço
na escola de estudo com dispensa de alunos) tivesse como tema A criança
e a ortografia: Uma abordagem interdisciplinar. A professora fez uma abordagem
sobre os problemas de aprendizagem da ortografia; e eu, sobre a norma
ortográfica e as possibilidades de sistematização
do ensino da ortografia na escola — o que sabemos já ter
sido defendido pedagogicamente como espontâneo, orientação
com a qual não concordamos.
Desse estudo realizado com os professores, o material produzido por nós
duas foi solicitado por eles. Assim o fizemos. Preparamos uma encadernação
espiral e distribuímos aos professores. É importante dizer
que tivemos da diretora autorização para a reprodução,
na escola, das cópias do material para os professores, ficando
a encargo de cada um apenas o custo da encadernação. Nessas
pequenas ações identificamos o quanto o diretor é
responsável pela viabilização do trabalho pedagógico.
Em outras organizações escolares, poderia ser abortado o
desejo dos professores em obter o material com a justificativa de que
a escola não poderia arcar com o custo da reprodução
do material, o que é bastante comum encontrarmos. Dentro disso,
vai não somente uma lógica de contenção de
gastos, mas também a desconexão entre o fazer pedagógico
e administrativo, numa demonstração de falta de compreensão
da importância em se dar atenção à demanda
imediata na constituição de um processo pedagógico
de coletividade.
Outro aspecto também importante ainda a ser destacado sobre a formação
continuada mencionada é, não mais da ordem da ação
administrativa como facilitadora da pedagógica, o que diz respeito
ao processo de desfragmentação dos fazeres na escola com
o intuito de constituir um fluxo conseqüente de ações.
Trata-se de ressaltar a importância em se perceber essa ação
de formação inserida num contexto maior de propostas que
comporão o projeto político-pedagógico da escola.
Cabe à equipe técnico-pedagógica articular as informações,
eventos, formações e outras ações da escola
com o intuito de dar organização e visibilidade ao projeto
já instituído, mas nem sempre revelado. A partir da visibilidade
desse fluxo e das reflexões provenientes da compreensão
desse fluxo, é importante seguir nas intervenções,
sutis e declaradas com o objetivo de que percebam não só
as possibilidades de mudança, mas também os caminhos a serem
trilhados para que o instituinte se apresente.
Nesse sentido, o vir a ser a partir dessa formação continuada
não deve ser deixado de lado. Há que se acompanhar os usos
ou esquecimentos da reflexão instaurada de modo que as nossas intervenções
desencadeiem práticas diferenciadas, procurando responder à
demanda inicial: evitar e resolver os problemas de ortografia apresentados
no texto da criança bem como estimular um trabalho pela autoria,
contribuindo para a formação da competência lingüística
da criança que favorecerá outros objetivos comprometidos
com uma formação humanizada.
Outros estudos estão sendo feitos na escola a partir de temas que
se mostram do interesse do grupo. Identifiquei uma grande quantidade de
jogos guardados nos armários da escola, esperando alguma iniciativa
para serem usados com conseqüência, dentro de um projeto pensado
pedagogicamente. Decidi que para a minha organização e também
do material era necessário catalogá-lo.
Depois disso, apresentei-os aos professores, confirmei haver de fato dúvidas
quanto às possibilidades de trabalhos com jogos na escola. A dúvida
também era minha. Solicitei da Fundação, órgão
destinado também ao suporte pedagógico das escolas, uma
abordagem sobre esse tema.
Aconteceu um encontro e está previsto outro para desdobramento
do estudo do material dourado para o ensino da matemática em todos
os anos de escolaridade desde a educação infantil. Tivemos
mais um momento em que pudemos tratar das possibilidades e impossibilidades
do jogo na sala de aula. Os professores aos poucos vão ampliando
seus recursos para o ensino-aprendizagem em sala de aula.
A professora da sala de recursos ( espaço destinado a promover
a aprendizagem de alunos portadores de necessidades educacionais especiais)
atende, entre tantos, um aluno chamado Felipe. Parte de uma família
de vários irmãos, alguns dos quais com necessidades semelhantes
também atendidos pela escola, Felipe apresenta uma dificuldade
importante. Aos onze anos vem avançando das garatujas para as formas
mais definidas do corpo. Começa a ensaiar o desenho das letras
do seu nome, embora espalhadas pela folha de papel, sem ainda apresentar
uma linearidade esperada. Em meio às reflexões próprias
de uma reunião de planejamento, identificando as grandes dificuldades
que esse aluno tem em participar das atividades da turma regular, a professora
de sala de recursos, num salto de voz e esperança, diz com ênfase,
em meio a algumas falas desanimadas: Eu tenho certeza que a gente pode
alfabetizar o Felipe. Eu sinto isso.
Essa fala convicta, cheia de esperança, mistura de desejo e conhecimento
se mostra como a síntese de uma questão séria a ser
discutida e articulada pela equipe técnico –pedagógica
na escola: a inclusão.
Duas professoras com trajetórias e formações diferentes.
Duas profissionais responsáveis e dedicadas ao seu ofício
de ensinar-aprender. Vêem-se no impasse social que é a inclusão
de crianças com dificuldades de aprendizagem por comprometimento
neurológico. Como a supervisão, direção e
orientação educacional dão o suporte pedagógico
à escola em pareceria com a coordenação de educação
especial da FME? Como resolver na escola um problema que é de ordem
social com implicações que fogem ao universo de possibilidades
de ação da escola?
No que toca evidentemente à responsabilidade da escola há
muito a ser feito: articular as duas professores de modo que o planejamento
das atividades tanto no espaço da sala de recursos quanto na sala
regular atravessem os objetivos específicos de ambas, buscar formação
contínua com todos os educadores e também alunos da escola
para compreender como podemos lidar com tais diferenças, favorecer
a aprendizagem dessas crianças, procurando para isso romper com
determinações espaço-temporais historicamente constituídas.
Nada disso é fácil por si só, embora algumas ações
já tenham sido encaminhadas com bom aproveitamento para o conhecimento
da escola sobre esse tipo de trabalho. Considerando as dificuldades externas
à escola, a dificuldade parece ainda maior. Quando eles retornam
na segunda-feira parece que todos os avanços que conseguimos durante
a semana se perdem(...) O Felipe voltou a chupar dedo. A família,
os espaços de convivência fora da escola parecem comprometer
a superação das dificuldades. Como lidar com isso? Interagindo
com as famílias? De que maneira a escola pode intervir a ponto
de alterar o fluxo de relações externas a ela? Desafios!
Parto agora para a educação infantil na escola. Identifico-a,
ao mesmo tempo como um desafio e uma grande oportunidade. Não tendo
tido ainda até então experiência na área; estando
acompanhada de professoras que também não o tem, a exceção
de uma; estando a escola apenas no seu segundo ano de trabalho ininterrupto
com essa faixa etária, muito há a aprender. O que a escola
Sebastiana Gonçalves Pinho pensa ser educação infantil?
O que justifica cada atividade elaborada para as crianças? Como
fazer par formar professores de educação infantil?
Depois de muito observar, ouvir, conversar, tomamos a decisão,
no coletivo, de realizar fóruns de educação infantil.
Estamos caminhando para o quarto encontro. Refletimos sobre as concepções
de criança, sobre o quanto esse olhar determina nossas ações
em sala de aula. Estudamos concepções de avaliação,
de organização do dia de trabalho, da função
da pré-escola para além do assistencialismo que marca a
sua origem, para além da concepção para nós
questionável de prontidão para a alfabetização.
Estamos estudando sobre psicomotricidade, sobre as implicações
do trabalho com o corpo para a formação não só
do equilíbrio da criança mas também da compreensão
de si num contexto de interações que requerem organização
e orientação espaço-temporal.
Na opinião dos professores, as trocas têm sido enriquecedoras.
Têm nos feito pensar sobre nosso padrão de referência
para lidar com a infância, com os projetos, com os objetivos, com
o tempo de aprendizagem, com a importância do brincar no espaço
escolar, com o nosso senso de cuidado e perigo quanto ao que devem ou
não fazer crianças pequenas que estão sob nossa responsabilidade.
Discutimos também sobre os projetos de trabalho pedagógico
que comumente reproduzem esteriótipos, como o dia do índio,
o dia da páscoa e tantos outros momentos em que a escola, por ingenuidade,
desconhecimento ou ritmo, perpetua valores que falseiam a cultura nacional,
impedindo reflexões sobre os saberes populares, sobre as histórias
locais e universais que formam a cultura brasileira.
A equipe técnico-pedagógica, assim a compreendo, tem o papel
de fomentar as práticas educativas na escola. Cabe a ela pôr-se
a serviço de pais, alunos e professores com o objetivo de encaminhar
um projeto de escola e de sociedade que precisa se definir no coletivo
entre tantas já sabidas diferenças. É por isso que
compartilho da idéia de que o supervisor educacional precisa saber
articular as diferentes áreas de conhecimento, deve pesquisar as
diferentes práticas encerradas nas diferentes concepções
e com uma habilidade a ser construída no devir, identificando possibilidades
de intervenção que correspondam ao projeto de sociedade
do coletivo da escola, que se insere num projeto maior da sociedade civil
organizada no município, entre municípios, no país.
Quero problematizar também um espaço instituído na
escola: o conselho de classe.Antes mesmo de ser supervisora, a partir
da experiência como professora, muito tenho a dizer sobre os usos
e funções do conselho de classe. Não é segredo
para os vivem o cotidiano da escola que listas de alunos são lidas
e muitas impressões disciplinares associadas ao desempenho, comumente
negativas, são ressonantes.
Essas posições costumam tomar conta da sala de conselho,
gerando, algumas vezes, certa dificuldade para se manter uma organização
necessária ao andamento do trabalho: continuar lendo as listas
de alunos, destacando os melhores, os piores, registrando medidas de repressão
para que haja melhor comportamento e, em conseqüência, maior
possibilidade de o professor trabalhar: dar o conteúdo necessário
para que o aluno aprenda. Seria esse o uso e a função potencializadores
do conselho de classe como espaço de reflexão sobre o aproveitamento
dos alunos e os procedimentos pedagógicos em favor desse aproveitamento?
Poderia ser diferente?
Muitos se incomodam com esse fluxo. Eu sou uma. É um espaço
importante de reflexão, mas que se transforma em algo, do meu ponto
de vista, esvaziado, sem política-pedagógica de transformação,
sem conseqüência favorável às mudanças
necessárias.
Agora na função de supervisora tenho a oportunidade de não
só propor uma outra configuração como também
conduzi-la em articulação com direção e orientação.
O que pressupõe essa outra organização? Qual a decorrência
das reflexões e decisões tomadas em um espaço-tempo
como esse em questão? Estas são algumas das perguntas que
me fiz ao buscar consistência no fluxo de ações de
um conselho de classe.
Em constante conversa com Rozane e Izabel, diretora e orientadora respectivamente,
notei uma expectativa semelhante – a de que o conselho poderia ser
diferente. Mas como? O fato de nos permitirmos sintonizar quanto às
possibilidades e limitações desse lugar foi bastante encorajador.
A responsabilidade de propor mudanças e lidar com as conseqüências
pode ser inibidora. Quando se está em companhia tudo fica menos
difícil. “É próprio do pensar certo a disponibilidade
ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado
ou acolhido só porque é novo, assim como o critério
de recusa ao velho não é apenas o cronológico.”(Freire,
2002: p.39) Nesse sentido era necessário identificar entre os professores
se também eles concordavam com o meu ponto de vista sobre o conselho.
A orientadora e a direção sim, mas e os professores estariam
dispostos a mudar?
Considero que o conselho de classe deva ser um fórum de discussão.
É preciso pensar de uma perspectiva coletiva. Reflexões
e deliberações pelo coletivo da escola. A listagem de alunos
pode ser substituída — e foi — por um relatório
já organizado pelo supervisor e orientador no cotidiano de suas
atividades de acompanhamento aos alunos e aos professores. As dificuldades
pedagógicas, sociais, disciplinares de alunos e professores são
tratadas e registradas ao longo do período precedente ao conselho.
Por que repeti-las no conselho de classe? Essa prática vem sugando
o tempo necessário para a reflexão mais profunda e conseqüente
de questões coletivas e não somente específicas de
aluno A, B, C, D ou E.
Não devemos achar que nesse espaço não seja mais
possível falar do aluno individualmente. Esse relatório,
organizado por turma, é lido para o grupo ( eu fiz a leitura).
Cada professor sobre sua turma acrescenta, aprofunda o que convier, citando
e analisando o que ainda não tenha sido. A atualização
do registro vai sendo feita pelo supervisor ( assim foi) ou pelo secretário
da escola( assim pretendo que seja no próximo conselho). Não
bastam as impressões gerais. Há que se fazer um registro
consistente das questões levantadas para posteriores deliberações
no coletivo.
Com essa organização fica sem função a ata
separada por ano de escolaridade. O relatório se transforma em
uma ata coletiva, isto é, apenas um registro contendo observações
sobre todas as turmas. A prática nas escolas da rede tem sido a
de preencher uma ata com o mesmo formato para cada uma das turmas com
espaço para assinaura dos professores que atuam nela.
Os professores de outras turmas, por terem já trabalhado com os
alunos citados ou por compartilharem situações pedagógicas
semelhantes, também opinam enriquecendo a avaliação
sobre o processo pedagógico. Os professores permanecem até
o final da reunião. Percebi que alguns, provavelmente não
se reconhecendo nesse trabalho coletivo, se ausentavam momentaneamente
quando alguma questão que parecia não lhe dizer respeito
se punha. Desse modo, dentro do possível, as turmas então
foram objeto de discussão coletiva.
Feita a atualização do relatório, passamos para as
deliberações. Que estratégias utilizar para minimizar
ou resolver problemas num prazo estabelecido no grupo? É importante
estabelecer prazos? Penso que sim. As ações para a mudança
devem ser imediatas. Provavelmente a pressa é fruto da inquietação
por tantos anos vividos sem perceber substancial conseqüência
dessas reuniões.
Daniel tem uma história de muitas interrupções na
escolaridade devido a viagens que precisou fazer com a família,
certamente em busca de melhores condições de vida. Sua alfabetização
não foi concluída. Os espaços por onde passou não
puderam solucionar esse problema. Daniel retorna à escola já
no quinto ano de escolaridade com lacunas no seu processo de alfabetização.
Como assim? Escrevia com troca de letras, esquecia de pôr letras
na palavra, tinha dificuldade de leitura oral e compreensão do
que lia, tinha vergonha de se expor por destoar do grupo em que se inseria.
Qual foi nosso encaminhamento? O que fazer com esse menino? Na sua turma
estava se perdendo. Não caberia mudá-lo de turno. O problema
permaneceria. Resolvemos então convidar sua mãe para uma
conversa e solicitar que ele participasse dos trabalhos de uma turma à
tarde como reforço.Ela veio. Concordou imediatamente e ainda agradeceu
à escola a atenção que ela sabia que seu filho precisava,
mas que ela mesma não podia dar por ser analfabeta. Ele está
inserido num grupo cujo nível de aprendizagem do código
escrito é semelhante. O fato de ele ter uma estatura baixa, um
temperamento tranqüilo e vontade de melhorar muito ajudaram. Todas
as vezes que eu entro em qualquer uma de suas turmas, ele me chama e acena
com um sorriso. A professora do contraturno, que concordou em acolhê-lo
depois de eu mostrar dados sobre a entrevista que fizemos com ele, disse
que ele estava indo bem. E feliz, o que é importante para seu crescimento.
Nesse momento, é necessário destacar a importância
de uma equipe técnico-pedagógica engajada num só
projeto. A direção, que todo o tempo participa do conselho
e conhece bem os alunos, pensa junto sobre as dificuldades e possibilidades
que eles têm. Está sempre presente para apoiar, sugerir,
participar das decisões.
Nesse sentido, confirma-se a necessidade de que uma direção
da escola se disponha a compor uma equipe pedagógica, além
de administrativa, apresentando uma postura cooperativa e não impositiva.
Nada do que foi decidido no conselho pode ser implementado sem o aval,
a compreensão, a intervenção da diretora. É
bom que as decisões da direção estejam respaldadas
na sua interpretação e compartilhamento com os demais profissionais
desse coletivo. Não fosse esse tipo de participação,
todo o conselho iria por água abaixo. E o repetitório enfadonho
se mostraria a cada conselho.
O que os professores acharam dessa relativa alteração na
organização do conselho? Como já disse eu temia reações
negativas. Nossas convicções são tocadas constantemente
por faíscas de insegurança. Venho aprendendo a considerar
esse estado, quase permanente, como uma oportunidade e não demérito
(o que por muito tempo acreditei ser). A incerteza viabiliza a busca pelo
melhor possível. A dúvida se conforta nos braços
do vir a ser, na compreensão de que erro é condição
para acertos e novas buscas.
Tempo, quero viver mais duzentos anos
Quero não ferir meu semelhante
Nem por isso quero me ferir
Vamos precisar de todo mundo
Pra banir do mundo a opressão
Para construir a vida nova
Apresento
a pauta e o quadro de deliberações do primeiro conselho.
Acredito ser possível identificar o rumo que tomaram as reflexões.

Antes desse
dia, vinha falando nas reuniões pedagógicas centrassem suas
considerações no que ainda não tivesse sido tratado
nas reuniões pedagógicas ou em outros
espaços na escola. Não havia sinais de resistência.
O conselho aconteceu.
— Rozane, o que achou?
— Gostei muito.
— Eu sempre achei que o conselho devia ser diferente, mas não
tinha pensado como.
Outras falam vieram em outros momentos:
—
Ah! muito legal aquela idéia de ata. Gostei muito.
— Ah! também gostei.
Sinais de
que é possível arriscar mais e acreditar no vir a ser.
Fico aqui tentando antecipar as considerações de um leitor
virtual: Numa escola pequena como essa, é fácil. Vai lá
pra minha escola ver como é que a banda toca...
Assumo que o leitor virtual também possa ser uma autocrítica.
Em diálogo com ela e com quem mais se sentir identificado, reflito
que as experiências nem sempre se repetem na mesma escola muito
menos de uma para outra. A expectativa de que uma experiência deva
ou possa ser modelo para aplicação em outra revela algumas
concepções de escola, educação que do meu
ponto de vista merecem ser redimensionadas.
Essa reflexão pede um diálogo com as idéias de Najmanovich
quando propõe uma discussão sobre o sujeito encarnado e
a multiplicidade da experiência num contexto de análise sobre
o sujeito e o conhecimento da modernidade em comparação
com os da contemporaneidade:
O sujeito encarnado não pode estar em todos os lados ao mesmo tempo
e, portanto, só pode conhecer em um contexto especificado, e seu
conhecimento se estrutura em uma linguagem determinada. Quer dizer que
haverá sempre um lugar específico da enunciação.
(...) não podemos conhecer os objetos independentes — sem
relação alguma — de nós. A partir dessa ótica,
o conhecimento implica interação, relação,
transformação mútua, co-dependência e co-evolução
(...) teremos sempre um “buraco cognitivo”, uma zona cega
que não podemos ver. Mais ainda, habitualmente somos cegos a esta
cegueira.(2001: p.23)
Disponho-me
a compreender essas experiências como possibilidades de reconfiguração
da escola em que atuo num exercício constante teórico e
prático. Reconheço que nela não se apresenta toda
verdade, muito menos todas as nuances que compõem as situações
relatadas. Trata-se de um olhar possível e responsável diante
dos problemas que se apresentam não só na escola em questão,
mas nas escolas em geral.
Justamente na continuidade desse movimento de relacionar teoria e prática
é que aceitei fazer parte, há poucos meses, do grupo de
discussão sobre ciclos. Este apresenta uma proposta pontual. A
partir do livro do Luis Carlos Brandão a propósito do seu
percurso de pesquisador em educação, nos impulsiona a pensar
sobre os paradigmas moderno e contemporâneo, apontando suas características
e de certa forma permitindo a identificação das concepções
sob as quais fomos educados e contra as quais no discurso e na prática
pretendemos agir.
Acontece que compreender que podemos seguir não com o propósito
de inventar modelos que devam ser seguidos, mas com a convicção
de que a escola pode buscar o seu próprio caminho e que a experiência
do outro surge não para se pôr sobre outras passando a idéia
de que se alguém antes não fez assim foi por incompetência.
Trago a idéia de fluxo. Como contê-lo? Como prever totalmente
seus caminhos? Como ajustá-lo para que volte o tempo e reviva o
que se determina num outro terreno cujas curvas, depressões, quedas,
pedras ocupam diferentes lugares, obrigam um fluxo próprio? Devemos
ter a contenção como meta?
Aprendi uma lição nunca esquecida. Aprendi que se alguns
resultados e usos do trabalho científico foram e seguiam sendo
empregados para fabricar os armamentos, argumentos e conhecimentos de
uma Terra e de nações e sociedades regidas pela expropriação(da
natureza e entre pessoas), pela apropriação, pela posse
e uso desiguais dos bens do planeta e dos serviços e sentidos de
vida com que pessoas como nós criam os seus mundos, nem sempre
e nem para sempre deveria ser assim. Se muitos projetos científicos
embutem e ocultam uma vocação ideológica, uma intenção
e uma intenção política de controle, de domínio
de territórios e vidas e de mentes humanas, outros projetos de
pesquisa científica poderiam tomar uma direção diversa(...)
Poderiam inverter relações de domínio através
do saber e criar cenários crescentes de diálogo entre as
pessoas e entre as pessoas e a natureza através, também,
do conhecimento científico e de suas aplicações tecnológicas.
(Brandão, p.37)
A aprendizagem
de Brandão enquanto pesquisador pode também ser nossa enquanto
educadores convidados aqui a assumir uma postura reflexiva no cotidiano
das escolas em que atuamos. Como já disse, estamos sendo convidados
a assumir a potencial capacidade de pesquisar a própria prática;
a conhecer o mesmo contexto sob perspectivas diferentes e estranhar o
que nos parece óbvio, cristalizado; a não mais esperar a
escola ideal e nos revoltarmos por ela nunca existir. Quero romper com
essa perspectiva controladora, assumida pela escola desde a sua origem.
Quero compreender seus movimentos e suas possibilidades dentro de uma
realidade própria, diferente de outras, nem por isso melhor ou
pior, apenas diferente. Não cabe a aplicação de uma
experiência sobre outra.
Penso que caiba compartilhar a experiência do outro porque ela pode
vir a ser instigadora, inspiradora de outros modos de ver, não
para repetir, mas para criar o próprio. O ser humano é dialógico.
Buscando uma objetividade entre parênteses, nos disponibilizamos
a tratar das questões que surgem na escola, da perspectiva dos
envolvidos compreendendo que há princípios norteadores do
conflito diferentes dos nossos e isso implica uma coerência diferente
da que talvez defendamos. É Humberto Maturana novamente que me
ajuda a pensar que tudo é dito a partir de um observador e sendo
assim suas verdades estarão de acordo não com uma verdade
externa, maior, inquestionável, mas sim por princípios que
correspondem ao seu modo de relacionar, às suas emoções
(2000). Se na escola há tantos observadores, é fundamental
que a escuta seja sensível e que busque os argumentos que compõem
as concepções dos envolvidos no cotidiano de modo que a
cooperação se sobreponha à competição,
legitimando nosso potencial conciliador, criativo, transformador.
No tempo que vou trabalhando, conversando, vivendo, realizo diálogos
internos ou compartilhados, recorro memória e retomo as vozes com
as quais me identifico, estudo, ponho-as em confronto, tento olhar sob
outras perspectivas. Autocrítica contínua. Vou mudando,
aprendendo, com paciência e impaciência tensionadas. Vou lendo
e agindo com respeito às diferenças, procurando identificar
o projeto de escola desejado, o projeto de escola possível.
Como implementação dos ciclos vem se apresentando na escola?
Não sob a bandeira da salvação. Identifico desde
que cheguei à escola que lá se trabalha sob a lógica
de ciclos em alguns aspectos mesmo que não se reconheça
como tal ou mesmo que se renegue o ciclo como sistema imposto e não
constituído em cooperação com a base, com a rede.
Não seria um trabalho em ciclos aquele em que toda a equipe de
professores e técnicos procuram as melhores condições
estruturais para instigar a aprendizagem? Fazer com que as reuniões
pedagógicas assumam um caráter de formação
em serviço e de reflexão sobre as práticas diárias
na escola aponta para um perfil pressuposto pelo sistema em ciclos?
Respeitar as diferenças nos professores e alunos e compreender
que com elas há grandes chances de avanços significativos
tanto no trabalho do professor, como no dos alunos e da equipe técnico-pedagógica
seria estar sob a perspectiva do trabalho ciclado?
Se, por ora, buscarmos uma denominação do perfil da escola,
diria que estamos num caminho de implementação de ciclos
de aprendizagem. Começamos sutilmente uma discussão sobre
a distinção entre estes e os ciclos de formação.
Vamos caminhando no amadurecimento dessas questões. Gosto de ouvir
Arroyo dizendo que
O convívio
escolar será educativo na medida em que nos revelemos como adultos
às gerações jovens. A procura de mecanismos que explorem
as dimensões formadoras da relação adulto-criança-adolescente-jovem
passam a ser centrais. Passamos a ver a escola como um tempo de encontro
de gerações, em ciclos diversos de aprendizado, de vivências
e de interpretação da cultura. Vamos constatando que na
organização seriada infelizmente essa interação
de gerações tão pedagógicas se restringe aos
tempos e espaços da transmissão formal, na sala de aula,
na turma, nos 50 minutos de cada matéria. A interação
fica empobrecida pelo formalismo, pelo silêncio dos alunos. Até
pela ordem das carteiras e pelo tom magistral, onisciente da docência.(2002:
164/165)
Superar esse tom magistral quando ele representa a negação
do outro, trabalhar por uma consciência de que a escola é
um espaço de manifestação cultural e como tal pode
enriquecer-se de práticas não convencionais ocupando espaçostempos
intramuros, alemmuros com vivências que alarguem e aprofundem os
conhecimentos de todos, inclusive dos professores... Tanto a fazer!
Acredito que assim a escola vá realizando escolhas, redefinindo-se,
corporificando um sistema de trabalho em ciclos.
Preciso ainda dizer que ao apoiarmos o sistema em ciclos, estamos não
falando por todos, muito menos por obediência às determinações
da FME. Trata-se de uma compreensão de que a escola deve mudar
suas concepções e avançar no que possa ser para a
configuração de um novo projeto de sociedade. Edgar Morin
que o diga:
O aprendizado
da vida deve dar consciência de que a “verdadeira vida”
, para usar a expressão de Rimbaud, não está tanto
nas necessidades utilitárias — às quais ninguém
consegue escapar —, mas na plenitude de si e na qualidade poética
da existência, porque viver exige, de cada um, lucidez e compreensão
ao mesmo tempo, e, mais amplamente, a mobilização de todas
as aptidões humanas (2000:54).
Encorajada
mais uma vez por Morin, encerro, momentaneamente, este texto como abro:
trazendo as palavras de um poeta que, com o poder da síntese, característico
da poesia, diz com simplicidade e conhecimento ecológico-planetário,
do nosso compromisso com a re-formação da humanidade.
És o mais bonito dos planetas
Tão te maltratando por dinheiro
Tu que é a nave nossa irmã
Canta, leva tua vida em harmonia
E nos alimenta com seus frutos
Tu que é do homem a maçã
Vamos precisar de todo mundo
Um mais um é sempre mais que dois
Pra melhor juntar as nossas forças
É só repartir melhor o pão
Recriar o paraíso agora
Para merecer quem vem depois
Deixa nascer o amor
Deixa fluir o amor
Deixa crescer o amor
Deixa viver o amor (O sal da terra)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARROYO, Miguel.
Ofício de Mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A pergunta a varias mãos: a experiência
da partilha através da pesquisa na educação. São
Paulo: Cortez, 2003.
ESTEBAN, Tereza; ZACCUR, Edwiges (orgs.). Professora-pesquisadora –
uma práxis em construção. Rio de Janeiro: DP&A,2002.
GUEDES, Beto; BASTOS, Ronaldo. O Sal da Terra. Manaus, AM. EMI Music Brasil
Ltda.
LINHARES, Célia (org.). Os professores e a reinvenção
da escola: Brasil e Espanha. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2001
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação
e na política. Belo Horizonte:UFMG, 1998.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar
o pensamento. Rio de Janeiro: Bretrand, 2000.
NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado – questões para
pesquisa no/do cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
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