Maria Vitória da Silva - Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia – UESB / Prefeitura Municipal de Feira de Santana
– PMFS
A sociedade atual, através das tecnologias da informação
e da comunicação, possibilita ao indivíduo o acesso
à leitura e à escrita de maneira dinâmica e em algumas
vezes impositivas, pois estamos imersos em uma multiplicidade de informações
no nosso cotidiano, presentes nos diversos portadores de textos, veiculados
pela mídia por meio de cartazes e informativos de propagandas;
e da televisão, entre outros, que além de mensagens escritas,
traz nos diversos programas as marcas do texto escrito através
da oralidade.
É paradoxal para a formação do indivíduo no
que se refere à aquisição do código escrito
que isso seja delegado à escola apenas; pois muitas vezes a escola
não acompanha essa dinâmica, uma vez que temos professores
mal qualificados, recursos inadequados para o desenvolvimento de atividades
significativas, falta de espaço-tempo de discussão para
formação continuada do professor, etc.
Apesar das dificuldades apontadas, a escola não pode se eximir
da sua responsabilidade de garantir a todos os alunos o acesso aos saberes
lingüísticos que lhes possibilite a plena participação
social. Portanto, deve criar condições para que o aluno
ao sair dos seus muros tenha competência lingüística.
A escola como um todo deve se preocupar com a leitura dos alunos, como
o que eles tem para ler, com o que justifica o fato de aprenderem a ler
e de inseri-los na diversidade de práticas leitoras.
Não basta apenas ensinar o aluno a decodificar os signos e sinais,
pois a decodificação por si só não garante
a compreensão do que está sendo lido. É necessário
que o leitor, ciente do significado das palavras dê sentido profundo
ao texto. A compreensão da leitura depende do conhecimento de mundo
e da multiplicidade de sentidos que o leitor dá ao texto. A leitura,
portanto, é uma “atividade complexa e plural, que se desenvolve
em várias direções” (JOUVE,2002,p.17) e que
exige do leitor várias habilidades.
O aprendizado da leitura enquanto “processo mediante o qual se compreende
a linguagem escrita...” (SOLÉ,1998, p.23), como já
foi afirmado, é responsabilidade da escola e se inicia com o processo
de alfabetização do indivíduo, numa perspectiva progressiva
que se estende às séries posteriores do Ensino Fundamental.
Pressupõe-se que a medida que o aluno passe para a série
subseqüente, a sua competência leitora aumente. E que além
de ler e escrever, use socialmente a leitura e a escrita e se envolva
nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e escrita.
Entretanto, os dados obtidos pelo Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Básica – SAEB, publicados pelo
INEP (2003), tem demonstrado que no Brasil, apesar dos dados serem diferentes
entre as regiões, um número significativo de alunos apresenta
condições distantes da satisfatória com relação
à leitura e escrita, para seguir adiante no segundo ciclo do Ensino
Fundamental (5ª a 8ª séries) e lhes possibilite uma aprendizagem
capaz de intervir como cidadão na sociedade contemporânea.
Imerso nessa realidade, um grupo de professores de uma escola de pequeno
porte da Rede Municipal de Ensino, situada na zona rural do município
de Feira de Santana, no estado da Bahia, que atende alunos da 5ª
a 8ª série do Ensino Fundamental, demonstraram insatisfação
com os resultados obtidos no final do ano letivo de 2002, em que 47% dos
alunos matriculados na 5ª série foram reprovados e 18% evadiram,
correspondendo a um total de 65%, ou seja, apenas 35% dos alunos foram
promovidos para a 6ª série.
A maioria desses alunos enfrenta sérias dificuldades de acesso
a escola, tanto pelas suas condições econômicas, quanto
pela distância. Mesmo contando com transporte escolar (dois ônibus)
eles precisam acordar muito cedo e/ou chegam em casa muito tarde, pois
precisam caminhar muito até o local onde embarcam no ônibus.
A comunidade atendida tem baixa escolaridade e para os alunos o contato
com a escrita faz-se quase que exclusivamente nas escolas.
É importante destacar que uma quantidade significativa desses alunos
além de serem trabalhadores prematuros que dividem seu tempo entre
escola e trabalho, estão subordinados a padrões de vida
urbana que descaracteriza o meio rural, seu modo de viver, sua cultura.
Esses fatores têm contribuído para a construção
de uma percepção negativa de si próprio.
Nessa perspectiva apontamos que, o currículo da referida escola
precisa de uma reformulação, visando superar a reprodução
das “vertentes ideológicas urbanizantes e desenvolvimentista...
responsáveis pelas transformações ocorridas no sistema
escolar rural, ocasionando a perda da sua identidade sócio-cultural...”
(LEITE,1999,p.14).
A escola funciona nos turnos matutino e vespertino e conta com um quadro
formado por dezesseis professores todos licenciados e alguns com pós-graduação
nas respectivas áreas em que lecionam, uma secretária e
cinco funcionários que desempenham a função de limpeza,
merenda e vigilância. A direção é formada por
professores do quadro, eleita pelos e membros da comunidade escolar para
um mandato de dois anos.
A caracterização da escola e de seus membros aponta elementos
que intervém no desenvolvimento da aprendizagem dos alunos e que
proporciona uma reflexão na busca de estratégias que sejam
gestadas a partir da realidade vivenciada no cotidiano escolar.
No início do ano letivo de 2003, após a análise dos
dados de aprovação e reprovação da escola
acima citados, e de várias discussões com o corpo docente,
coordenação e direção, ficou acordado que
a escola deveria fazer alguma coisa para sanar as dificuldades que esses
alunos apresentavam. Assim, decidiu-se que todos os professores deveriam
trabalhar com leitura em suas aulas, ou seja, deveriam ler para seus alunos,
realizar leituras coletivas e solicitar que alguns alunos lessem individualmente.
Entretanto, essas ações não dariam conta da solução
do problema, sendo necessário atividades sistemáticas que
pudessem levar os alunos a refletir sobre a construção da
linguagem escrita, tendo em vista que ingressaram na 5ª série
com profundas lacunas no aprendizado do código escrito. Estes estudantes
não eram ou estavam precariamente alfabetizados.
Partindo dessa reflexão, o referido grupo de professores e a coordenação
pedagógica decidiram elaborar um projeto de alfabetização
para ser desenvolvido com as 5ª e 6ª séries, nas disciplinas
diversificadas (Religião, Cultura Regional e Prática de
Saúde), que correspondia a três horas aulas semanais. A partir
de temas relacionados com o cotidiano dos alunos, selecionavam-se textos
diversos para elaboração de atividades sistemáticas
que envolviam práticas de leitura e escrita para serem desenvolvidas
por dois professores em cada turma. As atividades eram seqüenciadas
e um professor dava continuidade à atividade desenvolvida pelo
outro no horário da sua aula.
Em sala de aula os alunos eram incentivados a ler, a escrever e a expor
suas idéias através da discussão de textos. O professor
enquanto “modelo” de leitor e escritor buscava ajudar o aluno
a perceber as possibilidades para o desenvolvimento dessa aprendizagem.
De acordo com Solé (1998) aprende-se a ler lendo, tentando, errando,
vendo outras pessoas lendo e escrevendo.
Entretanto, essas ações não eram fáceis de
realizar. Os alunos, estavam acostumados a terem aulas com um tipo de
professor que numa perspectiva tradicional desenvolvia suas aulas de maneira
vertical, sem diálogo. Muitos dos alunos faltavam às aulas,
não respondiam as atividades, nem as avaliações escritas
e se escondiam atrás do discurso “Na recuperação
eu passo!”. Durante as aulas, se fossem solicitados para fazer alguma
leitura, faziam brincadeiras e tiravam a atenção dos colegas.
Essas eram algumas estratégias utilizadas para esconder o que não
podia ser revelado para os colegas – não sabiam ler mesmo
tendo freqüentado a escola por vários anos.
Não se pode negar que algumas aprendizagens haviam ocorrido na
trajetória escolar desses alunos. Tinham aprendido as letras e
números; a estabelecer relação letra/som; a formar
algumas palavras; a diferenciar os conteúdos compartimentados das
disciplinas; a fazer enormes cópias... Aprendizagens que por si
só não garantiam a construção de conhecimentos
nas diversas disciplinas e a utilização da leitura e da
escrita de forma autônoma nas relações sociais.
A princípio várias dificuldades foram enfrentadas: a percepção
dos professores que não estavam envolvidos com o projeto, de que
a leitura é uma questão apenas do professor de Língua
Portuguesa; a falta de domínio de um referencial teórico
que embasa a aquisição da língua escrita; a falta
de tempo para estudo, discussão e elaboração de atividades;
a falta de um local apropriado para planejamento – o acesso à
escola é muito difícil, apesar de ter um transporte para
levar os professores, as vagas são suficientes apenas para a quantidade
de professores que trabalham no dia e não existe um transporte
alternativo; a baixa auto-estima dos alunos; a discrepância entre
o nível de aprendizagem dos alunos na mesma sala (alunos não
alfabetizados e alunos com competências para estarem cursando a
5ª série); etc.
Apesar das dificuldades e de alguns desencontros o trabalho desenvolvido
foi bastante significativo. Ao final do ano letivo foi realizada uma avaliação
do projeto e os professores apontaram que houve avanços no desempenho
dos alunos: alguns alunos estavam conseguindo organizar melhor a disposição
da escrita no caderno, como também melhoraram a caligrafia e conseqüentemente
conseguiam ler o que escreviam. (É interessante destacar que muitos
alunos não conseguiam ler o que escreviam, devido a caligrafia
que era incompreensível tanto para eles como para o professor)
aos poucos percebia-se o envolvimento de alguns alunos no projeto e o
interesse em realizar as atividades, pois começavam a perceber
que conseguiam compreender o que estavam fazendo; a elevação
da auto-estima; uma certa preocupação em escrever ortograficamente
nas diversas disciplinas – começavam a perguntar aos professores
como se escrevia determinadas palavras ou em outros momentos procuravam
no dicionário.
Eram avanços pequenos, mas significativos que davam indícios
de possibilidades para o desenvolvimento do processo de letramento desses
alunos, pois nas condições que tinham ingressado na 5ª
série, apresentavam grandes probabilidades de fracassar na escola,
por falta de compreensão leitora nas diversas disciplinas das séries
finais do Ensino Fundamental, as quais têm como instrumentos de
comunicação a leitura e a escrita.
Após a avaliação todos os professores decidiram pela
continuidade do projeto no ano letivo de 2004, apenas para os alunos das
5ª séries e que seria formada uma turma “especial”
para atender os alunos que apresentassem maior dificuldade com leitura
e escrita. Para essa turma, as atividades de todas as disciplinas estariam
envolvidas por um eixo temático e voltadas para o processo de aprendizagem
da língua escrita, num nível diferenciado das outras turmas.
Buscava-se assim, envolver todos os professores, pois “a tarefa
de formar leitores e usuários competentes da escrita não
se restringe, portanto, à área de Língua Portuguesa,
já que todo professor depende da linguagem para desenvolver os
aspectos conceituais de sua disciplina”. (BRASIL, 1998, P.31)
Através de um diagnóstico a turma foi formada levando em
consideração o nível de aprendizagem em relação
ao código escrito e a defasagem idade/série, conseqüentemente
tinham várias reprovações sucessivas.
No início das aulas os professores informaram aos alunos os objetivos
do trabalho e a metodologia que seria desenvolvida com a turma. Procuraram
incentivá-los a se envolverem nas atividades e informaram que o
trabalho seria desenvolvido visando superar as dificuldades de aprendizagem
da leitura e escrita.
É importante destacar que algumas ações ficaram comprometidas
devido ao início do ano letivo – apenas em maio, por causa
de uma reforma no prédio escolar. Além disso, houve aula
em vários sábados e muitos alunos faltavam nesse dia. Apesar
desses obstáculos, no desenvolvimento das aulas observou-se um
crescimento significativo na aprendizagem da leitura e da escrita. Os
alunos começaram a pedir aos professores para ler em sala de aula;
as discussões de textos tinham maior participação;
escreviam com maior desenvoltura. Alguns alunos que antes do projeto só
escreviam palavras, começaram a escrever frases e pequenos textos.
Tanto para os alunos como para os professores, a escola, aos poucos, estava
se transformando em um lugar onde as razões para ler eram intensamente
vividas. Enquanto leitores, começavam a ter claro seus objetivos
de leitura, os quais dependem dos diferentes momentos e situações.
Ler para aprender; ler pelo prazer; ler para comunicar uma informação
a outro; ler para induzir; ler para libertar; ler para obter informações
precisas; ler para viver... “Cada leitor, para cada uma de suas
leituras é singular”.(CHARTIER, 1999,p.91)
Vale destacar que para Silva (2003) a leitura é um processo fundamental
para a superação do reducionismo, da simplificação
e do egocentrismo do sujeito, capaz de adensar o pensamento, levando-o
à esferas de ações menos inocentes e alienadas.
Referência Bibliográfica
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro
e quarto ciclos do ensino fundamental.Língua Portuguesa. Brasília:
MEC/SEF,1998.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo
de Moraes. São Paulo: Editora UNESP/ Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 1999.
INEP. Qualidade da Educação: uma nova leitura do desempenho
dos alunos da 4ª série do Ensino Fundamental. Brasília:
MEC/INEP, ABRIL 2003
JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
LEITE, Sergio Celani. Escola Rural: urbanização e políticas
educacionais. São Paulo: Cortez,1997.
SILVA, Ezequiel T. da. Condições para fazer leitores nas
escolas brasileiras: do medonho ao sem-vergonha.
In. Leitura: um cons/certo. FERREIRA, Sandra de A. (Org.). São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. Trad. Cláudia
Shilling .6º ed. Porto Alegre: ArtMed, 1998.