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PRÁTICAS
DE ENSINO E INTERAÇÕES DE PROFESSOR SURDO/ALUNO OUVINTE EM
AULA DE ALFABETIZAÇÃO
Marília da Piedade Marinho Silva –
UNICAMP/IEL
Introdução
Este trabalho apresenta parte de um estudo maior de nossa
pesquisa de doutorado na área de pesquisa em Lingüística
Aplicada sobre Interações entre professor surdo/aluno ouvinte
no processo de aquisição da escrita.
A questão específica a ser focalizada neste artigo faz parte
de um estudo etnográfico em sala de aula sobre o trabalho de aquisição
da escrita inserida em práticas sociais mais amplas denominadas
por nós como estratégias pedagógicas.
Dessa forma, este estudo apresenta as seguintes questões:
-como o professor surdo interage com os alunos e como os alunos interagem
com o professor?
-como o professor surdo lida com o processo de ensino da escrita?
Tendo isso em vista e com o propósito de entender essa problemática,
estamos adotando a noção de interação conforme,
(Goffman 1983): “a influência recíproca dos indivíduos
sobre as ações uns dos outros, quando em presença
imediata se constitui como uma situação social”, ou
seja, em uma determinada situação o indivíduo desempenha
um papel especificado, diante de determinado grupo, exercendo algumas
influências sobre esses sujeitos. O papel que representa terá
conseqüências, apesar dos indivíduos terem referências
anteriores veiculadas por outras instâncias. No caso dos alunos
e professores, há todo um referencial de influências, tanto
discursivas como certamente das estratégias utilizadas como referências
teórico - metodológicas de ensino.
Para investigar as questões apontadas, estamos entendendo que,
para aprender escrever uma língua é pois necessário
aprender a pensar sobre ela (Olson, 1977). Dessa mesma forma, Signorini
(2001:79) afirma: “A dificuldade de encontrar uma relação
possível entre a língua do aluno e a do modelo ideal de
escrita acaba sendo a questão pedagógica por excelência,
uma vez que na hierarquia dos tipos textuais, os modelos de escrita estão
no pólo oposto ao da escrita informal, a de menos status nessa
hierarquia tida como menos monitorada, menos autônomo, mas próxima
da fala e, portanto, como a mais a escrita”.
No intuito de compreender melhor a complexidade interativa da sala de
aula entre professor surdo/aluno ouvinte e as bases das estratégicas
didático-pedagógicas construídas pelo professor informante,
apresentamos nossa discussão da seguinte maneira: - na introdução
apontamos as fontes do trabalho dessa pesquisa e a questão problematizada;
em seguida refletimos sobre o seu contexto e sua caracterização;
apresentamos então a aula a analisada; concluímos com as
considerações finais.
1. Contexto e caracterização dos informantes
da pesquisa
Para caracterização dos dados dessa discussão
estamos considerando o contexto de uma escola de ensino regular. A escola
situa-se em município próximo a Belo Horizonte na zona rural.
Os 10 alunos que nos serviram de informantes são 5 do sexo feminino
e 6 do sexo masculino. A faixa etária dessas crianças estava
entre 7 a 14 anos. Os pais são lavradores, em sua maioria, e não
são alfabetizados.
A professora caracteriza-se pela sua larga experiência na regência
em ensino público como alfabetizadora, sendo portadora de surdez
profunda, perda entre 80 e 90 decibéis. Perdeu a audição
aos 6 anos de idade de forma gradativa, sem um diagnóstico fidedigno
de acordo com as informações da família. Por opção
própria, ADR , nunca aprendeu os sinais, fazendo uso da leitura
labial. ADR, tem uma fala compreensível, sendo que, o que evidencia
sua surdez à primeira vista é o uso do aparelho de audição.
Graduada em Pedagogia, mora na mesma região de seus alunos com
sua família.
Dessa forma, para discussão desse artigo, estamos considerando
uma aula de alfabetização, com duração de
4 horas, ministrada pelo professor informante. O tema Folclore, fez parte
de um Projeto maior da professora. Para análise, identificamos
como o professor introduz e desenvolve suas aulas para atingir seus objetivos,
ou seja, como se processa o ensino e as referências teórico-metodológico
discursivo mobilizadas, observando os modos de participação
dos alunos nos processos de interação. (Matêncio,
2001).
Para o desenvolvimento do seu trabalho, a professora informante utiliza
um planejamento diário organizado por ela. O plano de aula, sempre
tinha a mesma característica: 1. Objetivos (o trabalho com a linguagem
oral e escrita), 2. Estratégias (a atividade a ser desenvolvida
e os modos de mediação.) . De acordo com o planejamento
diário, ADR organizava suas aulas observando um Projeto que era
sempre elaborado por ela, mediante datas significativas. Os Projetos objetivam
segundo ADR, inserir o conteúdo, permitindo ao aluno a construção
do sentido de sua aprendizagem com responsabilidades e atribuições,
revelando desejos, conflitos, experimentações e atitudes
para o desenvolvimento de sua convivência grupal. De acordo com
nossas observações, a aula de ADR seguia uma estrutura de
etapas didático-discursivas .
Segundo Matêncio (2001:161) a aula identifica cinco etapas: abertura,
etapa que não visa o objeto de estudo, ela é primordial
na interação e tem a função inicial em relação
às atividades didáticas – preparação,
são as atividades do dia, ou seja, à abertura nuclear quanto
aos objetivos didáticos, desenvolvimento da(s) atividades, conclusão,
a etapa do encerramento das atividades em termos de interação.
Evidenciamos a proposta de Matêncio para apresentar a organização
global das aulas, pois entendemos que os dados apresentados privilegiam
essa organização. Procuramos focalizá-los em três
etapas: Organização, Análise, Conclusão (cf.
Aparício, 1999:15).
Quadro 1

2. Organização
e análise da aula
Partindo
das noções de atividade e tarefa de acordo com Matêncio
(2001:22 ), podemos indicar a atividade dessa aula como de linguagem oral
e escrita, cujo tema é sobre Foclore, em que o professor/aluno
interagem, trocando informações, contextualizando a linguagem
oral, informações adequadas para fundamentar a temática
trabalhada.
O fragmento a seguir refere-se ao início da atividade – (Correção
do Para Casa – Ex.: 1, linhas 10 e 11.)
CORREÇÃO DO PARA CASA

PREPARAÇÃO
Exemplo 1
1P: boa tarde...
2AS: ((todos))... boa tarde...profeSSORA...
3P: como foi o fim de semana?... brincaram... passearam...
4AS: ((vários)) eu paSSEEI...
5P: vamos organizar as carteiras para a aula de hoje... ((as carteiras
eram organizadas
6 em círculos de acordo ... que o professor ficasse no centro da
sala, para que pudesse
7 fazer a leitura labial))...fizeram o para casa?... deixem o caderno
aberto que vou dar
8 o visto... ((todos abrem o caderno colocando em cima da carteira)) muito
bEM...
9 alguns precisam ter mais cuidado...((a professora ia de carteira em
carteira, fazendo
10 observações orais e escritas no caderno das crianças,
tais como: “muito bem”, “sei
11 que você é capaz de melhorar”, “te adoro”.
Após olhar os cadernos a professora
12 continua a aula)) hoje eu vou ler uma historinha ... mas primeiro quero
ouvir
13 vocês... vamos para o pátio...vamos em silêncio...
para não atrapalhar seus colegas
14 que estão na outra sala...vamos sentar em rodinha... pois assim...
todos podem dar
15 sua opinião... ((os alunos sentam e ficam atentos ao professor))
Nesse trecho,
podemos observar que, o tema da tarefa (Folclore) se transforma em atividade
didática e passa a ser o núcleo do trabalho do dia.Essa
tarefa foi discutida aproximadamente 25 minutos
Na contextualização desse tópico, é interessante
apontar o professor criando um outro ambiente de escuta fora da sala de
aula para desenvolver atividades de ensino, experimentar situações
que envolvam uma perspectiva crítica de língua(gem).
No que diz respeito ao desenvolvimento linear dos tópicos da aula
verificamos a abrangência em relação ao desenvolvimento
da tarefa, ou seja o professor para atingir seus objetivos procura manter
uma organização seqüencial conforme o próximo
tópico a seguir
DESENVOLVIMENTO
Exemplo 2
1P: ((ainda
no pátio)) quando vocês dormem... vocês... costumam
sonhar... vocês
2 dormem sozinhos?...
3EG: eu sonho tem vez professora... eu já sonhei que fui à
casa de minha tia... e estava
4 brincando...e depois: caí no buRACO...
5AS ((risos))
6DM: eu já dormi com gato...
7AS ((risos))
8P: com GATO?... pode dormir com gato?...
9AS: ((todos))... NÃ:::O
10P: será que dormi com gato não pode... ou é...
uma superstição?...ou... porque causa
11 alguma doença?
12RP: não sei... o que é superstiÇÃO...
13P: bem... vou explicar... não podemos dormir com gato pois é
um animal que pode
14 causar doenças... por causa de seu pelo fino... mas superstição...
são várias
15 credencies... coisas que as pessoas acreditam... que nossos avós
contam... nossos
16 pais...entenderam?
17AM: que coisas professora?
18P: bem... vou ler a história e vocês prestem bastante atenção
para entender vou ler
19 uma lenda... a lenda faz parte do que chamamos de superstição...a
história é sobre
20 AS-SOM-BRA-ÇÃO...um diálogo entre dois personagens...
diálogo é a conversa
21 entre duas pessoas...ouçam... ((a professora lê a história))
“Tião, ocê iscuitô o que
22 a fessora falô da lenda?... iscuitei. já pensô se
a gente incontrá o Saci-Pererê
23 fumando cachimbo e assustando tudo nóis?... eu hein?...queria
só vê tudo mundo
24 correndo se aparecesse arguém com os pé pra trás...
o Curupira... aI, ai!...num
25 posso é pensá na Mula-Sem-Cabeça furiosa que arrepia
tudo...bom mesmo era
26 iscuitá a voz da Iara...a sereia linda que canta música
pros pescador...sério? ocê
27 queria incontrá ela de verdade?...é...querdite se quiser...mas
imagino ela tão linda
28 que só vendo! ... agora me lembrei do Lobisomem... quanta história
de horror né?...
29 é... mas se a Iara fosse di verdade eu ia conquistá ela...seu
coração...eh, Zeca!...ocê
30 num tem jeito...fica sonhando até com mulhé de lenda”
((os alunos escutaram com
31 atenção e a professora reinicia a conversa com os alunos))
gostaram?
32AS: GOS-TA-MOS...
33P se gostaram... quero ver quem entendeu... mas ... levante a mão...que
outro título
34 poderia ser dado a história?
35WS história e lenda
36EG história equisita... ((risos))
38RO superstição e lenda...
39P muito bem...quem são os personagens da história?...personagens
são as pessoas
40 que fazem parte da história...nós já estudamos...
41VP (( pensando)) Tião... Zeca.. saci-pererê... mula- sem-
cabeça... Iara a sereia...
42P muito bem... está certo... mais alguém?
43AS ((todos)) ... NÃ:::O...
44P vamos voltar à sala de aula ((todos voltam à sala de
aula e a professora inicia
45 atividade)) abram os cadernos e copiem o que eu vou escrever no quadro
de giz...
46 copie no caderno as palavras da história pronunciadas pelos
personagens de
47 maneira diferente e as escreva corretamente ((a professora escreveu
as palavras:
48 océ, fessora, querdite, mullé, iscuitó, argúem,
alembrei))
49AS ((as crianças soletravam para escrever as palavras))
50RO VVVVvvv.... você... pLofessora....não... PRO-FES-SO-RA...
Arquedite…A
51 CRE-DI-TE... IScutou...EScutou...AUguem...(os alunos conversando entre
eles))
52 não consegui escrever...alembrei...minha mãe fala alembrei...
mas é lembrei...
53 incontra...acho que é assim que escreve...será que não
é?
54P: ((a professora observava a escrita das crianças indo de carteira
em carteira sem
55 fazer a correção no caderno, em seguida pede a um aluno
para ir ao quadro)) RO
56 venha ao quadro... quero que todos prestem atenção...
leia a primeira palavra..
57RO ocê... ocê...vou colocar o v
58P certo...faça e escreve a palavra certa no quadro...PRO-FES-SO-
59RA...isso...QUERDITE...o que é esquisito na escrita e fala dessa
palavra?
60RO a gente não fala é assim...é A-CRE-DI-TE...e
escreve acredite...a outra palavra...
67 posso fazer?...escutou.... AUGUEM... não sei...((pensando))
já sei... escutou...
68P: quem quer vir ao quadro...
69FS: eu
70P: como escreve?... ((a professora aponta o dedo para a palavra escrita
“auguem”))
71 olha para a minha boca aLguém (( sonorizando))
72FS alembrei... tiro o A... professora?
73P sim... muito bem... e a próxima?...Incontrá... ((a professora
faz a pergunta
74 dirigindo-se para a classe toda))
75As ((todos)) EM-con-trar
76P muito bem...todos vão olhar para as palavras que escreveram
e fazer a correção no
77 caderno...escrevendo novamente a palavrinha... as palavras que for
acertando...
78 coloque um certo... como eu faço
Neste trecho,
conforme o observado, vemos a professora interagindo com os alunos, lançando
mão de diversas língua(gens), e estratégias. Podemos
analisar esse fragmento em dois momentos: linhas 17 à 39 e linhas
40 à 101. Observa-se nas linhas 17 à 39 a professora interagindo
com os alunos através da linguagem oral, localizando aspectos interpretativos
na história, ou seja, incorporando na temática da aula,
as superstições, a lenda apontada na história contada.
Dessa forma a professora adota como prática pedagógica as
trocas de língua(gem) entre professor e aluno, buscando justificar
o cultural o social através do aspecto discursivo do texto selecionado.
De acordo com a tarefa, linha 17 a 39, a professora concebe a relação
oral e escrita como observa Cagliari, “uma representação
gráfica dos sons propriamente dita e de outro o da convenção
ortográfica, momento em que a representação passa
a dialogar com seus próprios limites, em cujo termo está
a institucionalização de uma ortografia oficial”.
Dessa forma, verifica-se a complexidade de uma aula de ensino da escrita,
onde subjaz uma heterogeneidade e formas híbridas desse processo.
No fragmento a seguir a professora retoma a temática concluindo
e apontando atividades para continuação do trabalho.
Exemplo 3
79P gostaram
da história?
80AM sim pois.... eu aprendi o que é lenda...eu achei legal...
81DM: eu gostei foi da sereia...
82P bem... vou passar a tarefa de casa... conte para a mamãe o
que vocês aprenderam
83 hoje...sobre as lendas... traga para a próxima aula ... anotando
no caderno...
84 adivinhações...outras superstições que
a mamãe conhece...peça ajuda... para a
85 mamãe... papai...ou quem vocês acham que possa ajudar
Neste fragmento
uma questão interessante é a preocupação do
professor em não perder de vista o interesse dos alunos frente
à temática apresentada, linhas 79, 80, 81, ou seja, as estratégias
pedagógicas de ensino estariam respondendo aos questionamentos
do conteúdo apresentado. Esse episódio também privilegia
o social, o cultural numa dimensão interativa (linhas 82, 83, 84),
em momentos estratégicos de aquisição da linguagem
oral e escrita..
3. Considerações
finais
Procurei
abordar, neste trabalho, vários modos pelos quais as estratégias
de ensino, a heterogeneidade da aquisição da escrita e o
processo interativo em sala de aula podem ser observadas. Na análise
das práticas percebeu-se que, além de contribuírem
decisivamente para o ensino e interação corroboraram para
o aparecimento de poder envolvendo práticas de controle, ou seja,
a cultura veiculada pela instituição escolar perpassa pela
preocupação marcante em controlar programas, atitudes, alunos
e professor, pois o controle é uma condição indispensável
de uma prática de qualidade.
Entendemos que as estratégias pedagógicas e o processo interativo
na aquisição da escrita do professor trazem vários
modos de heterogeneidade nas práticas sociais conforme observamos
na aula citada.
Outra questão interessante nessa situação de ensino
é a articulação entre o professor e os alunos em
todas as situações da aula. Quanto ao processo de avaliação,
os alunos fizeram a correção sozinhos, mobilizando, assim,
uma autoconfiança e criando uma independência no processo.
Por meio do presente estudo é possível afirmar que as práticas
pedagógicas de ensino e os modos de interação são
fruto de articulações e das condições objetivas
do trabalho em sala de aula, isto é, características pessoais
e a formação da professora expressam nas suas concepções
e nos modos como desempenha seu trabalho.
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