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PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO E DA IMAGEM CORPORAL
Mariza da Costa Silva - Grupo de Estudo em Imagem
Corporal – FEF/UNICAMP
Mesmo sendo um conceito novo para nossa língua,
a palavra letramento já é utilizada por especialistas em
educação desde os anos 80. (Soares, 2004).
O conceito de letramento designa um estado de envolvimento subjetivo do
sujeito com as práticas sociais de leitura e escrita, sendo evocado
não apenas para explicar a prática de ler e escrever, mas
principalmente o envolvimento do mesmo com essa prática. Envolvendo-se,
o sujeito desenvolve a observação, manipula as informações
necessárias à sua particularidade, transformando-as em conhecimento.
Isso significa que essa relação não se estabelece
na passividade e sim na atividade, envolvendo a percepção,
a emoção, a afetividade e os movimentos corporais como instrumentos
mobilizadores de pensamento. Nesse sentido, entendemos a participação
corporal como uma experiência que se desenvolve, que envolve e que
transforma o pensamento do sujeito.
O processo de letramento se inicia nas relações sensório-motoras
da criança com a pessoa que se ocupa dela enquanto bebê,
quase sempre sua mãe, que lhe permite validar tanto seu corpo como
o dela. É nesse processo que a criança se torna capaz de
imaginar seu próprio corpo por analogia com o de outrem.
No movimento de trocas, aproximações e separações
nas relações entre o bebê e a mãe, cada figura
ganha seu contorno e para a criança, cada vez mais, vai ficando
nítida sua diferença com relação aos objetos
e pessoas de sua convivência, num processo contínuo de construção
da própria identidade corporal. O mesmo movimento que separa os
corpos se intensifica nas relações que se alternam entre
a objetividade e a subjetividade, dando as bases para a criança
formar sua auta imagem. No entanto, não se trata ainda de uma separação
objetiva, substancial, mas compatível com as estruturas perceptivas
internas da criança, pois ainda permanece subjetiva, misturando-se
às vezes. À medida que a criança vai diferenciando
seu corpo dos objetos e das pessoas, este se torna um termo entre os outros,
ganhando objetividade e intencionalidade no deslocamento do corpo.
Nesse ponto, encontram-se os fundamentos para essa reflexão: para
o sujeito se letrar, ou se tornar letrado, precisa antes atingir certa
capacidade de perceber as relações corporais e coordena-las
.Um exemplo é que muitas vezes, o objeto não é apanhado
pelos olhos sem que antes seja apanhado pelos dedos ou a mão, segurado,
manipulado, sentido em sua forma física e sua textura. A sensação
experimentada pelo corpo impulsiona as modificações das
habilidades representativas da criança, nesta fase denominada sensório-motora.
(Para Vygotsky 1988), não são somente as habilidades de
pegar e manipular os instrumentos que são desenvolvidas na fase
sensório-motora, “mas também os movimentos sistemáticos,
a percepção, o cérebro e as mãos-na verdade
o seu organismo inteiro”. (P. 23)
Prosseguindo nesse raciocínio, pode-se afirmar que há uma
simetria entre a representação mental das coisas e o desenvolvimento
funcional da inteligência concedido pela participação
das experiências corporais. As experiências primitivas alongam-se
na percepção e na representação até
ao plano do pensamento reflexivo e lógico.
Assim, as relações da criança com o espaço
se tornam qualitativamente novas, possibilitando que descubra uma diversidade
de movimentos, principalmente das mãos, que podem transformar os
objetos na sua forma, posição e direção. Essas
experiências desenvolvem suas habilidades perceptivas possibilitando
a coordenação dos movimentos das mãos. Segundo Vygotsky:
(...). Quando a criança transfere sua atenção
para um outro lugar, criando dessa forma um novo foco na estrutura dinâmica
de percepção, sua mão, obedientemente, mover-se em
direção a esse centro, junto com seus olhos. Em resumo,
o movimento não se separa da percepção; os processos
coincidem quase que exatamente (p. 110).
Com esse novo comportamento a criança deixa de
apresentar os impulsos motores criados pela percepção direta
e passa a prestar a atenção nos signos, criando imagens
mentais dos mesmos. Com os movimentos coordenados das mãos passa
a criar sinais escritos (desenhos), na busca de representar os objetos
pensados ou observados. Essas experiências levam a criança
a experimentar a criar formas variadas no espaço plano (papel,
parede e outros). Para Vygotsky (1988), esse é o movimento que
possibilita a escrita: “(...) o desenvolvimento da linguagem escrita
nas crianças se dá pelo deslocamento do desenho das coisas
para o desenho de palavras” (p. 131).
Em outras palavras, são as experiências corporais que oferecem
momentos de desenvolvimento de habilidades importantes como a percepção
e a formação de imagens. Durante o processo de aprendizagem
a memória e a evocação são extremamente solicitadas
e estas habilidades emergem ou são construídas a partir
da consciência corporal. Todo o exercício com o corpo propicia
a formação de imagens e ao fortalecimento da memória
como nos explica Tavares (2003):
“(...) a pessoa usa esse modelo internalizado de experiências
corporais pata formarem imagens de outros objetos. Assim, de acordo coma
história de suas primeiras relações, a criança
terá maior ou menor facilidade em usar imagens visuais, auditivas
ou cinestésicas”. (p. 110).
Quando a
criança se liberta definitivamente da percepção direta,
tornando-se capaz de evocar as imagens pretendidas é porque já
construiu a expressão corporal no próprio pensamento.
A discussão desses aspectos nos leva a compreender o processo de
desenvolvimento do letramento vinculado às vivências do corpo.
É nas experiências ou relações do corpo com
o espaço objetivo que aprendemos a reagir aos estímulos,
que formamos imagens do mundo, que percebemos as formas, tamanho, distância,
lateralidade, posições de um conteúdo espacial. É
nesse embate, nesse confronto com o conteúdo que emerge a consciência
ou que ela se forma. O conteúdo por sua vez, não nos é
dado a priori, cada um o percebe e o constrói conforme a reação
de seu próprio corpo, nas palavras de Tavares (2003):
“(...) cada cérebro constrói mapas do ambiente usando
seus próprios parâmetros e sua própria estrutura interna,
criando assim um modo único de perceber para cada pessoa”.
(p. 20).
Os movimentos
oculares, no acompanhamento à linha impressa no ato de leitura,
por exemplo, é resultado de uma longa caminhada da experiência
corporal. O deslocamento do olho de um ponto fixo para o acompanhamento
das palavras ao longo do texto se torna possível quando esses são
coordenados em sua dinâmica. Essa coordenação se faz
na relação corpo-mente, se estabelece na intencionalidade
dos atos, através da consciência de suas próprias
possibilidades corporais.
Parece possível que a criança que não constrói
sua identidade corporal fica impossibilitada em criar imagens. Essa habilidade
é fundamentalmente importante no processo de alfabetização.
No entanto, nem todas as crianças foram mediadas por estas experiências
de forma positiva ou enriquecedora, não o suficiente para elaborar
seus movimentos globais (em relação com o macro espaço)
até atingir a dominância dos movimentos mais aperfeiçoados
como, por exemplo, traçar uma letra na folha do papel (na relação
com o micro espaço). Todo movimento é construto do próprio
corpo, isto é, carrega em si uma sabedoria corporal inerente.
Assim sendo, a dificuldade de algumas crianças durante o processo
de alfabetização pode ser compreendida nesse contexto. Visto
por esse ângulo, no caso dessas crianças, elas se tornam
vítimas da própria percepção, uma vez que
suas experiências não foram suficientes para a tomada da
competência do espaço visual, do espaço auditivo,
do espaço cinestésico, etc, pois o próprio corpo
ainda não ganhou conteúdo e objetividade. Não conseguem,
portanto relacionar as coisas entre si com as possibilidades de sua própria
ação. A apropriação do conhecimento é
um processo complexo que ultrapassa a simples memorização
de informações. Se entendido como processo, será
considerado na sua singularidade, ou seja, cada aluno como sujeito único,
possui um ritmo e uma maneira particular de desenvolver esse processo,
se houver alguma dificuldade por parte da criança, cabe a escola
investigar e fazer as intervenções. Ainda que a causa do
não aprender tenha sua origem fora da escola, será nesta
que poderá encontrar espaço para a construção
de alternativas para sua superação.
O progresso na direção do conhecimento do mundo exterior
corresponde um programa na direção do autoconhecimento ou
da tomada de consciência de si mesmo. Neste programa a escola pode
participar junto com a criança.
Bibliografia
TAVARES,
Maria da Consolação G. Cunha F. Imagem Corporal: conceitos
e desenvolvimento. Barueri : Manolo, 2003.
VYGOTSKY, L.S. A Formação Social da mente. São Paulo:
Martins Fontes, 1988.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros.Belo Horizonte:A
Autêntica, 2004. |
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