Marta Regina Paulo da Silva - Universidade Metodista
de São Paulo – UMESP
E se as histórias para crianças passassem
a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes
de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?
(José Saramago)
Aprender com as histórias infantis, aprender com
as crianças, aprender com a infância. Talvez esteja aqui
nosso maior desafio como educadoras e educadores: colocarmos enxada às
costas e nos aventurarmos a cavar “achadouros de infância”,
lugares onde esta se encontra (Barros, 2003). Não a infância,
consagrada pela modernidade, como falta, como ausência da razão,
como o lugar daqueles que nada sabem, que nada pensam, que nada produzem;
contrapondo ao adulto que tudo sabe, tudo pensa, tudo produz. Falo de
uma infância mais afirmativa, compreendida como condição
da existência humana. Infância que rompe com a idéia
de uma temporalidade linear, cronológica, que define a existência
humana em etapas, pressupondo uma gradativa evolução: do
inferior para o superior, do menor para o maior, do sem razão para
o com razão, do dependente para o independente. Uma infância
que nos acompanha por toda a vida, não estando, portanto, necessariamente
relacionada às crianças.
Para Kohan (2003, 2004), a ausência de voz – enfant –
não significa uma falta, e sim uma condição, uma
vez que é na infância que nos constituímos como sujeitos
na e pela linguagem: “é nela que se dá essa descontinuidade
especificamente humana entre o dado e o adquirido, entre a natureza e
a cultura. O ser humano é o único animal que aprende a falar,
e não poderia fazê-lo sem infância” (2004, p.
54). Entretanto, este aprendizado não se restringe a um tempo cronologicamente
determinado; enquanto seres inacabados iremos carregá-lo vida afora,
uma vez que, como “infantes”, estaremos sempre aprendendo
a falar e a ser falados, já que não falamos tudo, não
pensamos tudo, não sabemos tudo (2003, p. 246). Infância
e inacabamento se encontram.
Aprendemos com Paulo Freire que, enquanto humanos, somos seres inacabados,
inconclusos. Conscientes deste inacabamento nos tornamos curiosos frente
as coisas do mundo; queremos desvelar seus mistérios, compreendê-los,
transformar, criar novos significados. Em nosso processo de humanização
fomos nos diferenciando de outros animais dada a nossa condição
de transformar o suporte em mundo e então comunicá-lo; inventamos
assim a linguagem, tornamo-nos seres culturais. Estaria aqui a nossa infância?
A infância da humanidade? O momento em que, curiosos, inventamos
o mundo? Depois disto tudo é reprodução? Conservação?
Nada mais é original?
Somos seres de intervenção e não de adaptação,
nossa vocação ontológica é a de “ser
mais”. Benjamin (1984, p. 77) fala-nos que as crianças estão
mais preocupadas em construir seu próprio mundo do que em imitar
o adulto. Isto me faz pensar que talvez as crianças estejam mais
próximas, ou em maior sintonia, com a nossa condição
de inacabamento. Estão mais abertas ao mundo. Agamben afirma que
se há uma história humana é porque há infância
(Bazílio e Kramer, 2003, p. 118); eu ampliaria a idéia dizendo
que: se há infância é porque há inacabamento.
Talvez aí esteja a “raiz crianceira” da infância:
nosso inacabamento. Raiz que nos torna abertos ao mundo, curiosos, inquietos,
criativos, capazes de pensar uma outra realidade, de construir uma outra
História; de sermos sujeitos da experiência. Experiência
compreendida aqui como aquela na qual somos tocados pelas coisas do mundo,
afetados por elas, e de onde saímos transformados (Benjamim, 1984,
Larrosa, 2004).
Porém, nossa sociedade tem dificultado a experiência. Vivemos
agitadamente o mundo, aligeiradamente a vida, não podemos parar,
estamos “ligados”, constantemente excitados e, justamente
por isso, nada nos acontece. Nesta sociedade marcada pela lógica
do mercado, uma lógica acumulativa, de aparências, onde ter
e parecer valem muito mais do que ser, já não há
tempo para ser tocado pelo que nos acontece, já não há
tempo para a experiência. Nela perdemos a visão da totalidade,
ficamos presos a imagens que escapam ao nosso controle e que nos afastam
do mundo vivido, há um empobrecimento da vida cotidiana; “imagem
é tudo”, como afirma insistentemente a mídia, aqui
muitas coisas se passam sem que nos afetem, entre elas as pessoas, já
que também as relações sociais são mediatizadas
pelas imagens.
Tudo é muito rápido. Corremos atrás de um tempo que
nunca chega: o amanhã, depois, mais tarde, agora não dá...,
não vivemos o tempo presente. No presente corremos atrás
das informações e novidades, que nos chegam cada vez mais
veloz e que terminam por não serem apreendidas por nós,
o que as torna quase sempre descartáveis. Consumimos as novidades,
engolimos o que nos chega sem apreciar o seu sabor e, com a mesma facilidade
com que engolimos também a eliminamos, para então ingerir
novas informações. Não há tempo para a digestão.
Benjamim, em 1913, dizia que a máscara do adulto chama-se “experiência”,
sendo ela impenetrável, inexpressiva, sempre igual (1984, p. 23);
e hoje, não continuamos a nos esconder com tal máscara?
Esta não mascara o medo que temos de nos permitir o desconhecido,
o imprevisível? Não teria tal máscara a função
de nos proteger de nós mesmos, pela falta de sentido da vida, pelos
sonhos não realizados, pelas paixões não vividas,
pelo isolamento, pela infância não respeitada, pela “saudade
daquilo que não fui” (Barros, 2003)? Tirada a máscara
o que realmente experimentamos?
A modernidade capturou-nos com sua pretensa objetividade em detrimento
de nossa subjetividade; exaltou a razão, desprezou a paixão,
o corpo; a ciência transformou experiência em experimento,
a quantificou; a infância silenciou sua voz, acreditou ser ela inferior,
inútil. A modernidade consagrou a maioridade, entendida como racionalidade,
maturidade, emancipação. No entanto, a infância não
nos abandona, ela insiste em nos acompanhar por toda a vida. “Ela
é condição. Não há como abandonar a
infância, não há ser humano inteiramente adulto. A
humanidade tem um sôma infantil que não lhe abandona e que
ela não pode abandonar. Rememorar esse soma infantil é,
segundo Agamben, o nome e a tarefa do pensamento.” (Kohan, 2003,
p. 245)
Somos seres políticos, e é nossa condição
infantil, marcada pela curiosidade, pela paixão, pela nossa capacidade
de sonhar, de imaginar, de criar, de transgredir... que tem possibilitado
a nós humanos construirmos a História, e acredito ser ela
que nos possibilitará resgatar nossa humanidade, tão esquecida
nos dias atuais, resgatar nosso direito de “ser mais”, de
ser sujeito e não objeto, de encontrarmos um sentido para a vida,
para a existência humana. Experiência e infância que
aqui se encontram. Uma experiência, como diz Kohan, amiga da infância.
Uma experiência aberta à infância. Uma infância
aberta à experiência do novo, do imprevisível, da
diversidade, da busca, da ruptura, da transgressão. Uma infância
da infância, e não uma fase a ser abandonada.
Mas tememos a infância; tememos nos reconhecer inacabados. A sociedade
capitalista exige de nós “competência”. Competência
muitas vezes entendida na perspectiva de tudo saber, de ter todas as respostas,
de saber lidar com todas as situações... Penso numa outra
competência. Ser competente é reconhecer-se inacabado e por
isso mesmo aberto a novas aprendizagens, a novas experiências:
Eu acho que uma das coisas melhores que eu tenho feito
na minha vida, melhor do que os livros que eu escrevi, foi não
deixar morrer o menino que eu não pude ser e o menino que eu fui,
em mim. (...) Sexagenário, tenho sete anos; sexagenário,
eu tenho quinze anos; sexagenário, amo a onda do mar, adoro ver
a neve caindo, parece até alienação. Algum companheiro
meu de esquerda já estará dizendo: Paulo está irremediavelmente
perdido. E eu diria a meu hipotético companheiro de esquerda: Eu
estou achado, precisamente porque me perco olhando a neve cair. Sexagenário,
eu tenho 25 anos. Sexagenário, eu amo novamente e começo
a criar uma vida de novo. (Freire, 2001, p. 101)
Freire nos ensina sobre a experiência, sobre a
infância defendida neste trabalho. Uma infância que nos acompanha
por toda vida: “sexagenário, tenho sete anos... tenho quinze...
tenho 25 anos”. Perdendo-se ele se acha, “avança para
o começo”, como diz Barros (1997). Ensina a pensarmos num
tempo que não é linear, onde passado e presente se cruzam,
todos inacabados, pois o passado não precisaria ter sido o que
foi, o mesmo com o presente, o futuro é possibilidade. Ao pensar
uma história que não está acabada, cria de novo:
“começo a criar uma vida de novo”. Ensina, sobretudo,
que criança e adulto podem dialogar, conviver na mesma casa que
é o sexagenário; o diálogo é permanente. Não
é preciso matar o menino para que o sexagenário viva. Matar
o menino é também matar o sexagenário. Matar o menino
é matar a infância. Matar o menino é matar nossa condição
humana de sermos afetados pelo mundo. Matar o menino é matar a
experiência; é matar o próprio homem.
Deixemos então o menino viver e assim conviver com o adulto; pois
como afirma Milton Nascimento e Fernando Brant: “há um menino,
há um moleque, morando sempre no meu coração, toda
vez que o adulto balança ele vem pra lhe dar a mão”.
Assim, encontramos uma outra infância, compreendida como condição
da existência humana. Infância que traz o germe da criação,
da ruptura, da transgressão, da paixão, da expressão
de vida. Infância que nos convida a abandonar nossas pretensas certezas
sobre ela, e assim nos abrirmos a eterna novidade que carregam, aproximando-nos
então, daquilo que ainda há em nós de infantil: nossa
curiosidade, nossa disponibilidade para aprender, para inventar, admirar,
descobrir, para se espantar, amar, transgredir, para fazer “peraltagens”
(Barros, 1999). Infância como experiência.
Quem sabe, tocados pela infância, possamos falar com as crianças
e com a criança que existe dentro de cada um de nós. Quem
sabe, possamos acordar esta menina ou menino que, historicamente inferiorizado,
foi sucumbindo, também dentro de nós às certezas
que sobre eles nós, adultos, julgávamos possuir. Tocados
pela infância talvez possamos construir outras imagens sobre “ser
adulto”; imagens mais integradoras, afinal, o adulto não
é só razão, assim como a criança não
é só corpo; não é só seriedade, assim
como a criança não é só alegria...; um adulto
menos dicotomizado, que reconheça sua autoridade e também
seus limites, e que, na relação com as crianças também
reconheça nelas autoridade e limites. A criança precisa
do adulto, assim como este precisa dela.
A criança precisa do adulto, enquanto um “alter”,
como um “outro” diferente, para se constituir como sujeito
e se lançar continuamente para além de si mesma em busca
de seus projetos e utopias. Por outro lado, a criança também
encarna um “alter” para o adulto. Sendo a infância a
humanidade incompleta e inacabada do homem, talvez ela ainda possa nos
indicar o que há de mais verdadeiro no pensamento humano: a sua
incompletude, mas, também, toda a criação que se
prenuncia, ou melhor, a invenção do possível. (Souza,
2000, p. 97)
Quem sabe, tocados pela infância, possamos encontrar
um outro jeito de pensar a educação e, conseqüentemente,
a formação das educadoras e educadores.
A formação da educadora e do educador como
“um outro”
Essa é uma bela imagem para um professor: alguém
que conduz alguém até si mesmo. É também uma
bela imagem para alguém que aprende: não alguém que
se converte num sectário, mas alguém que, ao ler com o coração
aberto, volta-se para si mesmo, encontra sua própria forma, sua
maneira própria.
(Jorge Larrosa)
Voltar-se para si mesmo, encontrar sua própria
forma, sua autoria. Não seria este o objetivo maior da educação
e, conseqüentemente, da formação das educadoras e educadores?
Caminhar para si que implica uma ruptura com uma formação
aligeirada, marcada pela superficialidade do conhecimento, pelo didatismo
em detrimento das dimensões políticas e estéticas
da educação. Vivemos hoje a “cultura do espetáculo”,
a permanente exposição de resultados; a formação
tornou-se marca nos discursos políticos, plataforma de governo
seja de direita ou de esquerda; há a necessidade de impressionar
a todos, enfatiza-se os problemas educacionais e como solução
apresentam os investimentos na formação docente. Poderíamos
falar aqui do “caráter estetizante” da formação:
O caráter estetizante tipifica a existência desenraizada
e, por isso, furtiva, a que se aceite como acidente efêmero, sem
a certeza de que vale a pena ter um projeto sólido e realizá-lo.
Trata-se, por outro lado, de uma existência que percebe a realidade,
mas uma realidade entre aspas, porque forjada por um conjunto de aparências.
(Morais,1989, p. 126)
Qual o projeto proposto no que se refere à formação
dos profissionais da educação? Não seria ele apenas
um projeto de aparência, de fachada, em relação a
uma proposta de humanização, mas que no fundo busca cumprir
os interesses político-econômicos postos pela cartilha neoliberal?
“Abdicar do ser para parecer” (Morais, 1989, p. 127): não
estaria isto acontecendo na prática formativa? Abdicar da “essência”
da formação, da necessidade humana de ser cada vez melhor
na perspectiva de nossa humanização? Humanização
que passa pela tomada de consciência de nós mesmos, do outro
e do mundo, na perspectiva de nossa libertação.
Somos seres inconclusos; coletivos e singulares; seres históricos,
que ao agir no mundo faz e refaz a História; seres de intervenção,
portanto, seres políticos. Capazes de amar, de criar, de sonhar,
de lutar, seres utópicos; um projeto ilimitado. Mas também
capazes de explorar o outro, de “matar” o sonho, de negar
a liberdade, de desumanizar. Desta forma, se a humanização
é uma possibilidade de nossa condição de ser inconcluso,
seu contrário também o é, ou seja, uma outra possibilidade
é a desumanização. Sendo assim, a prática
de formação continuada pode constituir-se num espaço
de interlocução entre as educadoras e educadores na luta
pela humanização, mas também pode tornar-se mais
um espaço de desumanização; pode ser um momento para
tomada de consciência, mas também de anulação
da mesma; pode ser um espaço que se constitua em experiência
ou depósito de conteúdos...
Hoje muitos estudos e pesquisas apontam as competências que os docentes
devem desenvolver para dar conta das demandas de seus educandos e educandas
e, a partir delas, criam programas e mais programas para ensiná-los
a serem melhores profissionais; muitas vezes desconsiderando o sujeito-educador
e educadora, esquecendo-se que, neste espaço de formação,
são eles os próprios educandos e educandas. Mas quem são
estes sujeitos? Quais são suas histórias? Seus desejos,
sonhos, medos...? O que pensam sobre o mundo? Quais suas necessidades?
O que julgam fundamental em seu próprio processo de aprendizagem?
Larrosa, ao falar-nos do olhar para as crianças, propõe-nos
uma contra-imagem:
Uma imagem do totalitarismo: o rosto daqueles que, quando
olham para uma criança, já sabem, de antemão, o que
vêem e o que têm de fazer com ela. A contra-imagem poderia
resultar da inversão da direção do olhar: o rosto
daqueles que são capazes de sentir sobre si mesmos o olhar enigmático
de uma criança, de perceber o que, nesse olhar, existe de inquietante
para todas as suas certezas e seguranças e, apesar disso, são
capazes de permanecer atentos a esse olhar e de se sentirem responsáveis
diante de sua ordem: deves abrir, para mim, um espaço no mundo,
de forma que eu possa encontrar um lugar e elevar a minha voz! (2003,
p. 192)
Não será desta forma que também
olhamos para as educadoras e educadores, como alguém que já
sabe de antemão o que fazer com eles? Não caberia aqui também
pensarmos em uma contra-imagem? Em criarmos um espaço onde estes
possam elevar sua voz? Vê-los como “um outro”? Um enigma,
que nos inquieta e põe no vazio nossas certezas? Seria este um
caminho possível na prática formativa? Recebê-los?
Receber é estar aberto ao diálogo. Diálogo entendido
como encontro entre mulheres e homens para “serem mais”, na
perspectiva de sua humanização. Lembrando Freire, a compreensão
de nossa condição inconclusa nos inquieta fazendo com que
tenhamos que nos abrir ao outro e ao mundo na busca de respostas às
nossas questões. Ninguém se educa sozinho e sim em comunhão,
e o diálogo é a forma que nós, seres humanos, historicamente,
criamos para comunicar o mundo e assim modificá-lo; é, portanto,
um ato de criação e recriação.
No entanto, não há diálogo na arrogância, quando
um dos lados se acha sabedor de todas as coisas e procura depositar no
outro seus conteúdos: “se alguém não é
capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é
que lhe falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro
com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos,
nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão,
buscam saber mais.” (Freire, 2003a, p. 81)
Os programas de formação continuada que chegam às
educadoras e educadores, na maioria das vezes, não se traduzem
em encontro, não chegam para falar com eles e sim para eles, lidando
com estes como se fossem “coisa”, negando sua singularidade,
padronizando modos de agir, de falar, de pensar, de se relacionar com
o outro; negando seu desejo, doando autoritária e mecanicamente
o conhecimento, tornando-os meros executores de didáticas, negando
a própria experiência.
A contra-imagem solicita de nós o aprendizado da escuta, o que
só é possível fazer quando reconheço o outro
como sujeito, quando não o discrimino, quando estou aberto a aprender
com ele. Para Freire (1996) somente escutando é que aprendemos
a falar com o outro e não para o outro. E como têm sido as
educadoras e educadores escutados nos diferentes espaços de formação?
Como escutam uns aos outros? Larrosa instiga-nos a “escutar mais
devagar”, o que significa uma ruptura, uma transgressão em
nossa sociedade. Para este autor, “uma pessoa que não é
capaz de se pôr à escuta cancelou seu potencial de formação
e de transformação” (Veiga-Neto, 2002, p. 137). Escutar
é um aprendizado que nos convida a ter menos idéias, menos
certezas; que implica em amor ao outro e a si próprio; em abertura
ao desconhecido, ao imprevisível.
Na lógica capitalista aprender significa “somar, adicionar,
agregar, aumentar”; o que proponho é a lógica da subtração,
onde aprender significa criar um espaço, esvaziar; desaprender
para que possamos ver como nunca tenhamos visto; “raspar a tinta
com que pintaram os sentidos (...) desencaixotar as minhas emoções
verdadeiras, desembrulhar-me e ser eu”, como propunha Alberto Caeiro
(Pessoa, 1965). Despir-se de conceitos, valores, hábitos que sufocam,
que impedem o vôo, que aprisionam, que roubam do humano o seu direito
de “ser mais”, de ser autor, de ser dono do seu destino. Despir-se
de discursos fatalistas e desesperançosos, que nos imobilizam.
Tirar os excessos para que haja espaço àquilo que nos é
verdadeiramente significativo; para que aprender seja, então, buscar
a boniteza das possibilidades, a boniteza da vida. Aprender é “acordar
o lado adormecido”:
Quando o mistério é muito impressionante,
a gente não ousa desobedecer. Por mais absurdo que aquilo me parecesse
a mil milhas de todos os lugares habitados e em perigo de morte, tirei
do bolso uma folha de papel e uma caneta. Mas lembrei-me, então,
que eu havia estudado de preferência geografia, história,
cálculo e gramática, e disse ao garoto (com um pouco de
mau humor) que eu não sabia desenhar. Respondeu-me:
__ Não tem importância. Desenha um carneiro. (Saint-Exupéry,
1986, p. 12)
Acordar o lado adormecido é ser tocado pela criança,
como fez Saint-Exupéry em “O pequeno príncipe”;
como tem feito muitos escritores, poetas, músicos, cineastas, artistas
plásticos...; como tem feito também muitas educadoras e
educadores, que já descobriram o quanto a infância têm
a nos ensinar.
Aprendendo com as vozes da infância
Constantemente somos inquiridos pelas questões
das crianças, por sua curiosidade frente ao mundo. Constantemente
somos provocados por elas a entrar em contato com aspectos da vida que
muitas vezes já não nos trazem mais estranhezas. O olhar
da criança é curioso, investigador, não pára,
é um olhar descobridor, brincalhão. E quanto ao olhar adulto?
O que vê? Como vê? Olhar apressado já não vê
mais o mundo; olhar instrumental, funcional, prático, tem que produzir
algo, já não pode mais fruir. “Coitados dos adultos!
Arrancaram os olhos vagabundos e brincalhões de crianças
e os substituíram por olhos ferramentas de trabalho, limpa-trilhos
(...). Seus olhos eram escravos do dever. (Alves, 2000, p. 74) Olhos escravos
do dever é um “olhar-fôrma”, que enquadra, padroniza,
aprisiona. E quem aprisionou o olhar brincalhão da criança
que agora é adulto e já não olha mais?
Para Kramer (2000, p. 33) as crianças “possuem um olhar crítico
e maroto que vira pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem”;
talvez isso explique porque, historicamente, as imagens atribuídas
a elas e à infância foram marcadas apenas por uma falta,
por um vir a ser. Imagens que nos fazem pensar no quanto a criança
e a infância ameaçam. Ameaçam a ordem; ameaçam
aquilo que é dado como certo e verdadeiro; ameaçam, sobretudo,
nossos saberes e nosso poder.
O olhar da criança é ameaçador porque, curioso, vê
a possibilidade de criar novos mundos, o que assusta, principalmente aqueles
que querem manter as coisas como estão. Daí os neoliberais
buscarem nos convencer de que ser curioso pode trazer-nos muitos problemas,
daí criarem discursos e situações que nos fazem temer,
que nos imobilizam; daí considerarem a infância como uma
fase inútil e que precisa ser acelerada e preenchida com saberes
úteis e práticos. Ao longo da História temos observado
como a educação vem servindo a este propósito, sendo
ela marcada pelo depósito de conteúdos, o que termina por
domesticar nossa curiosidade, fazendo-a ficar comportada; não nos
perguntamos e nem perguntamos, simplesmente calamos e engolimos sem mastigar.
Somos bombardeados diariamente pela superficialidade do conhecimento.
O olhar da criança ameaça porque nos provoca a pensar o
mundo, pois o mundo a provoca. Como diz Saramago:
Para a criança o mundo é todo uma tentação,
desde as mais simples e óbvias como a do bolo, da desobediência,
até a da surpresa diante das coisas desconhecidas. Ela quer saber
como é o mundo e, por isso, passa algum tempo da vida a perguntar
“por quê, por quê, por quê”. É a
pergunta que mais se ouve da boca de uma criança. E há um
momento em que ela deixa de perguntar, mas isso não significa que
já saiba. Só significa que ela se resigna a não saber
porque ninguém respondeu. (Carvalhal, 1999, p. 50)
E quanto às educadoras e educadores, quais são
suas tentações para com o mundo? Como este os têm
provocado? Quais suas curiosidades? Concordo com Freire (1996, p. 95)
que sem a curiosidade não aprendo nem ensino e que exercer a curiosidade
é um direito que todos temos. Neste sentido, acredito que os espaços
de formação possam constituir-se em momentos onde os docentes
sejam instigados em sua curiosidade, experimentando e saboreando o mundo;
estabelecendo com o conhecimento uma outra relação, não
mais como algo exterior a si próprios, como mercadoria, e sim como
algo que os atravessa, os transforma, algo conectado com a própria
vida.
Entendo a formação continuada como uma viagem, uma aventura;
uma viagem cujo destino não nos é claro, não sabemos
ao certo aonde vamos chegar. Não é uma viagem de negócios,
onde se vai vender um produto, fechar um contrato, comprar algo...; e
sim uma viagem que nos possibilite conhecermo-nos melhor, onde possamos
encontrar sentidos para o nosso trabalho e para a nossa vida. Uma viagem
aberta a muitas possibilidades, a muitos caminhos.
Viagem marcada por nossas histórias, muitas cavadas em solo infantil,
memórias infantis; memórias que já não são
mais apenas do passado, mas que se reescrevem no presente ao atualizarem-se
no momento de sua fala; memórias não saudosistas e sim esperançosas,
que atravessam os limites de um tempo linear; passado-presente-futuro
se entrecruzam. Memórias que somadas a tantas outras histórias,
suas, das crianças e todas aquelas construídas e as que
estão se construindo nas diferentes culturas, nos permitem mergulhar
em seus enredos, fruir e assim, reinventá-los, criando então
novos desfechos; isto porque a vida humana está aberta, ela não
é uma sucessão de acontecimentos determinados.
Histórias narradas que ao serem compartilhadas vão sendo
re-significadas, deixando novas marcas. Narrar que não significa
um tagarelar repetitivo e sem sentido e sim um resgate daquelas experiências
que estão arraigadas em cada um de nós e também do
conhecimento que mulheres e homens foram construindo historicamente; um
encontro das experiências pessoais com as experiências coletivas.
E quanto a prática formativa, esta tem possibilitado este encontro?
Nela as educadoras e educadores têm sido convidados a narrarem suas
experiências, suas práticas, suas histórias...? A
deixarem suas marcas, sua autoria?
Para Gadotti (2004, p. 12) a educação precisa ser “biófila”,
precisa amar a vida; sendo a autobiografia uma forma de encontrarmos sentido
para nossa vida e ainda, centrar a educação na vida. Para
tanto, propõe que ensinemos as crianças, desde cedo, a contar
sua vida, escrever sua biografia. No entanto, é possível
ensinar isto às crianças quando as próprias educadoras
e educadores não o fazem? Quando eles próprios não
compartilham suas histórias? Em nossa sociedade há espaço
para as narrativas? Neste sentido, não somos nós que precisamos
aprender com as crianças a contar nossas vidas? Aprender a deixar
marcas, a ser autores?
Infância e poiesis... a dimensão estética
da formação
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
(Manoel de Barros)
Criança e poesia. Criança e poiesis. Poiesis
que do grego significa “ação de fazer algo, aquilo
que desperta o sentido do belo, que encanta e enleva.” (Martins,
Picosque, Guerra, 1998, p. 24) Assim como as crianças o poeta cria,
brinca com as palavras, muda o sentido das coisas, transgride; não
pretende ter a verdade, mas nos inquieta, nos encanta, nos toca. “Poesia
é voar fora da asa.” (Barros, 2004)
Poiesis é então nossa capacidade de criação,
de desvelar as coisas do mundo e então transformá-lo. Diz
respeito a nossa dimensão estética. Estético entendido
como a forma de nos relacionarmos com o mundo, a forma como o apreendemos
e que, portanto, não se refere a padrões ideais que definem
algo como belo. Segundo Duarte Junior (1991) há duas maneiras de
nos relacionarmos com o mundo: a experiência prática, onde
o que nos interessa é a função das coisas, sua utilidade;
e a experiência estética, que diz respeito à sua forma:
Na vida prática a experiência presente é
colorida por expectativas quanto ao futuro e por associações
com o passado. A “utilidade” que vemos nas coisas relaciona-se
com o já sabido e já experienciado em nossas vidas, bem
como com os projetos que temos para o futuro, nos quais aquele objeto
pode ou não infruir. Enquanto na relação estética
o objeto tem, naquele momento, o seu esplendor, não sendo tomado
como um possível instrumento ou ferramenta para uma eventual ação
que estejamos planejando (p. 58).
Rubem Alves também nos fala do caráter utilitário
e estético dado ao conhecimento. Este autor, inspirado em Santo
Agostinho, pontua que todas as coisas do mundo estão guardadas
em duas feiras: a feira das utilidades e a feira das fruições.
Na primeira encontram-se as coisas úteis: “utensílios,
ferramentas, objetos necessários para alcançar ou produzir
aquilo que se deseja (...), meios que nos permitem alcançar algo
diferente deles mesmos, algo que desejamos” (2000, p. 21-22). As
coisas desta feira, por si mesmas, não dão prazer, mas podem
possibilitar que se chegue a ele, são meios. É a feira do
poder, pois através do seu uso podemos atingir aquilo que queremos;
ela existe para tornar realidade nossos desejos. Assim, ler é uma
ferramenta, conhecimento útil, mas que pode nos permitir fruir
frente aos poemas de Drummond.
A segunda é a feira da fruição, “do latim frui,
fruir, desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma (...) é o
lugar do amor” (Alves, 2000, p. 26). Aqui se encontram as coisas
que dão prazer e alegria, não são utensílios
ou meios, são inúteis. Inúteis, dentro da lógica
capitalista, uma vez que nada de concreto produzem, além do prazer
e alegria. Nela encontramos: os poemas, a música, a literatura,
a dança, a pintura, o brinquedo, o perfume, o beijo...; coisas,
que segundo o autor, não servem para nada, mas que amamos porque
nos trazem felicidade. É a feira dos sabores, da sensibilidade:
“na Feira da Fruição o pensamento vai ao sabor, dançando
e brincando, vagabundeando. Pensamento-brinquedo, como disse Nietzsche.
A razão brinca, quando está na Feira da Fruição.
Aprender a brincar com o pensamento: esse deveria ser um dos mais altos
alvos da educação. É só quando o pensamento
brinca que as boas idéias chegam” (p. 28-29).
A escola e, portanto, a prática de formação continuada,
consoante com a política neoliberal, tem investido nos conteúdos
da feira das utilidades, no conhecimento-ferramenta, útil, prático,
objetivo; em detrimento dos conteúdos da feira da fruição,
do conhecimento-brinquedo. Mas, se educar é o encontro entre homens
e mulheres na perspectiva de sua humanização, se educar
é um ato de amor, como pode a educação nos afastar
daquilo que nos humaniza: nossa sensibilidade?
Não há aqui nenhuma apologia contra o conhecimento-ferramenta,
como vimos este é importante e, portanto, precisa fazer parte da
formação; a crítica reside na dicotomia estabelecida
entre estes dois conhecimentos, onde o conhecimento-brinquedo tem sido
abandonado nos currículos escolares, desconsiderando na formação
dos educandos e educandas e, conseqüentemente, na formação
das suas educadoras e educadores, sua dimensão estética.
Para além de sua dimensão utilitária, o conhecimento
pode e deve ser prazeroso, porque relacionado à vida possibilita
o encontro do sujeito, seja ele criança, adolescente ou adulto,
consigo próprio. Concordo com Freire (2003b), que a educação
é por natureza um exercício estético, uma vez que
lida com a formação permanente de mulheres e homens, com
o seu crescimento:
Outro ponto que faz da educação um momento
artístico é exatamente quando ela é, também,
um ato de conhecimento. Conhecer, para mim, é algo belo! Na medida
em que conhecer é desvelar um objeto, o desvelamento dá
“vida” ao objeto, chama-o para a “vida”, e até
mesmo lhe confere uma nova “vida”. Isto é uma tarefa
artística, porque nosso conhecimento tem qualidade de dar vida,
criando e animando os objetos enquanto os estudamos (p. 145).
Eis a dimensão estética da educação:
dar vida ao objeto. Não é justamente isto que fazem as crianças,
os poetas, pintores, músicos...? Desvelar o mundo dando-lhe nova
vida? Não teríamos então algo a aprender com eles?
Estimular nas crianças e em nós próprios o desejo
de aprender, de dar nova vida? Fazer da feira das utilidades ferramenta
da feira da fruição? Não seria isto a própria
experiência?
Mas como a poesia, os contos, o romance, a pintura, o cinema, o teatro,
dança, fotografia... têm entrado nos espaços de formação
das educadoras e educadores? Quais têm sido suas experiências
com estas diferentes linguagens?
Nunca ninguém leu histórias para mim.
É a primeira vez que eu vejo uma obra de arte.
Eu não sei desenhar, só sei fazer aquela
casinha.
Depois que você trouxe aquela obra do Picasso deu
vontade e eu fui no museu.
Sou de família pobre e aprendi a ler aos cinco
anos com as revistas velhas que minhas tias traziam das casas onde trabalhavam.
Desde então sempre gostei de ler, mas não sei o que aconteceu,
acho que foi a vida, que não tenho lido mais. Estes dias do curso
me deram vontade de ler de novo, recuperei em mim algo que eu achava ter
perdido.
Esta música me lembra quando eu era criança...
Falei daquele filme (Patch Adams) pro meu marido, alugamos
a fita e assisti inteiro. Muitas coisas passaram pela minha cabeça;
fiquei pensando na desumanização; pensei na minha própria
relação na escola com a equipe, com as crianças,
com minha família. Também não tenho sido indiferente
com eles?
Estes são alguns depoimentos de educadoras com
as quais tive oportunidade de conviver em diferentes espaços de
formação. Depoimentos que, somados a outros, foram reafirmando
em mim a importância de trabalhar na formação docente
com aquilo que Freire Weffort (1996, p. 7) chama de prática estética,
ou seja: “espaço onde esse educador entra em contato com
seu processo criador em outras linguagens – verbal e não-verbal
– apurando seu ser-sensível. Espaço de desvelar/ampliar
seus referenciais pessoais e culturais, para exercitar também a
organização, a sistematização e a apropriação
de seu pensamento.”
Kramer (2003) também defende que a formação das educadoras
e educadores contemple sua formação cultural, onde haja
momentos em que estes possam não só apreciar, mas também
socializar suas experiências com a literatura, teatro, música,
pintura, etc; sendo esta formação parte do processo de tomada
de consciência de sua prática educativa. Para a autora, e
concordando com ela, tal formação permite a nós o
resgate de “trajetórias e relatos, provoca a discussão
de valores, crenças e a reflexão crítica da cultura
que produzimos e que nos produz, suscita o repensar do sentido da vida,
da sociedade contemporânea e nela o papel de cada um de nós”
(p. 44).
Em minha experiência como formadora de educadoras e educadores tenho
observado que pouco se investe neste aspecto da formação
docente, e quando este ocorre, termina por ter um caráter utilitário;
por exemplo, ler para as professoras algumas histórias infantis
para que estas leiam para as crianças, ou ainda ensinar-lhe algumas
técnicas de desenho para que façam com estas... Neste sentido
a Arte está a serviço das práticas da sala de aula,
aprisionada à elas, não há uma preocupação
em favorecer às educadoras e educadores experiências estéticas
que sejam significativas a si próprios. Sendo uma linguagem transgressora,
que implica em rupturas com os padrões de certo e errado, feio
e bonito, bem e mal..., a Arte, de um modo geral, tem sido negligenciada
nos espaços escolares. Afinal, como poderia esta se afirmar numa
instituição marcada pela homogeneização, pela
normatização, pelo disciplinamento do corpo?
Numa passagem rápida, à grande maioria das escolas, é
possível observar, através do próprio espaço
físico, o “não-lugar” desta linguagem: poucas
ou nenhuma produção de artistas ou das próprias educandas
e educandos pelos espaços; é comum a presença de
produções mimeografadas para que estes pintem não
permitindo que construam seus próprios significados; a área
de Artes ainda a serviço de outras áreas de conhecimento,
como uma técnica; rotinas ausentes de espaços para dança,
teatro...; mesmo a literatura, quando acontece, é seguida de desenho
ou prova como forma de produto que indique a compreensão sobre
a história. Apenas fruir e compartilhar suas experiências
não é suficiente, e aqui, muitas vezes, tanto a leitura
quanto o desenho terminam por ter seus conteúdos esvaziados de
sentidos.
Fruto de uma formação que tem privilegiado a razão
em detrimento do corpo e da sensibilidade, o contato dos docentes com
esta linguagem tem sido pouco expressivo. A Arte, num mundo capitalista
como o nosso, é tratada como algo menos importante, inferior, talvez
por isso ela nos aproxime tanto das crianças; talvez por sua capacidade
de transgredir ela também ameace. Ameace por lidar com nossa inteireza,
uma vez que:
Congrega um conhecimento que trabalha com as polaridades:
ao possibilitar o gostoso, também engendra o desgostoso; ao dar
prazer, também provoca o desprazer; se traz satisfação,
igualmente dá frustração; se permite trazer à
tona a luz da existência, também mexe com as sombras do ser
humano; o sublime e o horrível, o belo e o feio: está tudo
aí, no processo artístico. Na arte, em suas diferentes linguagens,
não emerge apenas a fada, mas a bruxa, os ódios, o fundo
do baú da nossa vida. Por isso, a arte mexe com a totalidade. (Ostentto
e Leite, 2004, p. 12)
Neste sentido, ela nos aproxima da nossa sensibilidade,
da nossa humanidade, da infância, nossa e a do mundo; já
que temporal, tem sua marca numa determinada época, num determinado
contexto; mas também sendo intemporal, ultrapassa os limites de
seu próprio tempo, isto porque, o “ser humano que a contempla
é sempre novo, ou terá um olhar outro e estará realizando
uma infinidade de leituras porque infinita é a capacidade do homem
de perceber, sentir, pensar, imaginar, emocionar-se e construir significações
diante das formas artísticas.” (Martins, Picosque, Guerra,
1998, p. 60-61)
A arte nos possibilita ir além do previsível, das respostas
que já são esperadas; está sempre aberta a novas
leituras, novos significados. Permite fruir, criar, construir nosso próprio
jeito de olhar para as coisas do mundo. Nesta perspectiva, acredito que
seja uma boa aliada em nossa escavação de “achadouros”
da infância, no nosso (re)encontro com a infância, com nossa
poiesis, com nossa capacidade de sermos tocados, inquietados pelas “coisas”
do mundo, encantando-nos com suas belezas e nos indignando com sua “feiura”:
injustiça, miséria, exclusão, desigualdade, exploração...
É preciso olhar mais devagar. Olhar brincalhão, curioso;
mas nossos olhos não foram educados para isto, ao contrário,
foram vendados. Neles foram depositadas muitas informações
que foram se cristalizando e provocando cegueira. Ficamos doentes dos
olhos:
A “fôrma” restrita do olhar sem pensar
só percebe, só quer ver o homogêneo, o bonito, o que
compreende. O resto não lhe serve. É jogado fora como se
parte da realidade pudesse, de fato, ser jogada no lixo.
O olhar-pensante procura formas de olhar. Procura no próprio objeto
a forma de o compreender. Percebe as diferenças o que já
conhece. E faz relações.
Aprender a pensar, aprender o olhar-pensante não é somar
conhecimentos já internalizados, apropriados, mas é estabelecer
relações entre semelhanças e diferenças. E
para isso uma “fôrma” do pensar ou do olhar não
tem serventia.
A minha forma se exercita, se instrumentaliza na quebra das amarras de
um olhar comum, na procura consciente da própria forma de olhar,
no exercício de buscar ângulos novos, na construção
de relações. É um olhar de pensamento divergente.
(Martins, 1992, p. 21)
Não seria então a Arte uma possibilidade
de exercitar o nosso olhar? De tirar as fôrmas? De construir um
olhar “sensível e pensante” (Freire Weffort, 1996,
p.10) que envolva atenção – sintonia consigo mesmo
e com o outro? Que implique em presença e escuta? Em disponibilidade?
Um olhar curioso, investigador, pesquisador, que busca apreender o mundo
para poder pensá-lo, interpretá-lo? Não poderia a
formação continuada constituir-se em um espaço para
apurarmos nosso olhar? Qual a forma ou “fôrma” de olhar
que tem sido construída nos diferentes espaços de formação?
Olhar prático? Distante? Amoroso? Indagador? Reprodutor? Transformador?
Sonhador? De vida ou de morte? Curioso? Que homogeniza ou diferencia?
Inclui ou exclui? Quais foram as formas e fôrmas que cada um foi
“olhado” ao longo de sua história pessoal? Como são
olhados hoje?
Aprendemos a olhar, olhando e refletindo sobre o próprio olhar.
Com Madalena Freire acredito que também as educadoras e educadores
necessitem de um “outro”, um interlocutor, que instigue o
seu olhar; que atento aos seus movimentos, suas hipóteses provoque-os
em suas certezas, problematize sua prática, e que, sem exigir imitação
e sem intimidar, favoreça o encontro destes consigo próprio,
com sua própria maneira de ser (Larrosa, 2003, p. 52); que possibilite
a estes se abrirem ao mundo, aventurar-se, saírem de suas casas:
__ Mas uma coisa eu lhe digo: tem acontecido coisas lá
fora que vocês aqui trancados nesta casa nem desconfiam. (Hodgson
Burnett, 1993, p. 252)
Aprendemos a pensar, pensando junto com um outro, compartilhando
com este nossas experiências, nossas hipóteses acerca do
mundo e construindo outras a partir desta interação, afinal
somos seres sociais, históricos e culturais. E os espaços
formativos, têm se constituído como espaços de acompanhamento
do processo criador de educadoras e educadores, instigando-lhes sua autoria?
Ou apenas os conforma dentro de moldes já definidos? Possibilitam
construção de novos significados ou apenas sua reprodução?
Penso que a Arte possa ser um caminho para rompermos com o pragmatismo
da formação, possibilitando criar e recriar novos enredos,
onde possamos “desenferrujar” nosso pensar, um pensar muitas
vezes adormecido, fruto de uma formação que só ensinou
a reproduzir; onde possamos nos colocar o desafio da mudança, de
romper com uma prática alienada, de romper com uma atitude passiva
frente ao próprio processo de aprendizagem. Ruptura que provavelmente
irá provocar mal-estar, ansiedade, mas também prazer à
medida que cada um vá assumindo com o próprio punho o seu
fazer e o seu pensar.
Alegria de aprender, de construir conhecimento. Alegria do ato crítico
do estudo, como defende Freire (1993). Estudo que ultrapassa a reflexão
meramente técnica e pragmática da docência, considerando
também nela suas dimensões estética e política,
dimensões estas inseparáveis já que o desenvolvimento
da criatividade está diretamente relacionado a nossa capacidade
de sonhar, de imaginar, de lutar:
É necessário que a professora ou o professor
deixem voar criadoramente sua imaginação (...). A imaginação
ajuda a curiosidade e a inventividade da mesma forma como aguça
a aventura, sem o que não criamos. A imaginação naturalmente
livre, voando ou andando ou correndo livre. No uso dos movimentos do corpo,
na dança, no ritmo, no desenho, na escrita, desde o momento mesmo
em que a escrita é pré-escrita – é garatuja.
Na oralidade, na repetição dos contos que se reproduzem
dentro de sua cultura. A imaginação que nos leva a sonhos
possíveis ou impossíveis, é necessária sempre.
É preciso estimular a imaginação dos educandos (...).
Por que não enfatizar o direito a imaginar, sonhar e brigar pelo
sonho? Por que a imaginação que se entrega ao sonho possível
e necessário da liberdade tem de se enfrentar com as forças
reacionárias para quem a liberdade lhes pertence como direito exclusivo?
(Freire, 1993, p. 70-71)
Freire nos propõe a sonhar. Como Barros (2004)
nos convida a romper com o “traço acostumado”, a “desformar
o mundo”, tirando “da natureza as naturalidades”; afinal,
somos seres poéticos; capazes de desvelar a beleza escondida nas
coisas do mundo, dando-lhes nova vida; criando e recriando. Que os espaços
de formação sejam então espaços de poiesis.
Formação e poesia. Formação geradora de esperança
e alegria. Formação que passa pelo saber da experiência.
Saber este povoado de mistério, de realidade, de sonho, de paixão,
de alegria, de dor, angústia, dúvida...de vida. Saber que
é finito, subjetivo, que implica em voltar-se para si mesmo e para
o mundo. Saber que solicita que “a subjetividade humana se torne
visível e que as instituições estejam aí auxiliando
na possibilidade de transformação deste ser-aí que
comparece.” (Martins, 1992, p. 91) Saber que possibilite o encontro,
o diálogo entre adulto e criança. Saber que recupere a infância,
nossa e a do mundo. Infância que nos possibilite a fazer, como as
crianças, a História, a partir do lixo da História
(Benjamim, 1984, p. 14). Infância e poesia. Poesia e formação.
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