Maurício Silva (UniFMU)
De modo muito especial, a Literatura Infanto-Juvenil desempenha
os mais diversos “papéis” sociais, que vão do
lingüístico ao psicológico, do interacional ao pedagógico,
tornando-se, neste sentido, instrumental indispensável ao processo
de desenvolvimento do pensamento reflexivo, de aquisição
da cidadania plena, de aprofundamento de conceitos abstratos etc.
Ler, analisar, interpretar e julgar um texto literário
pode ter os mais diversos sentidos para as sociedades letradas, mas talvez
nenhum deles seja tão salutar ao ser humano como a capacidade que
a literatura tem de conferir ao homem uma singular experiência ontológica,
na medida em que emerge como representação simbólica
de sua própria vivência, fazendo parte, desde a infância,
de seu imaginário.
Nascem, portanto, dessa condição primordial da atividade
e do texto literários, as diversas funções da literatura
como fenômeno norteador de nossa intervenção na sociedade,
com o intuito de buscar soluções para os desequilíbrios
sociais e modos de aprimoramento de nossas relações humanas.
Trata-se da capacidade da literatura em desautomatizar nossa percepção
do cotidiano, atuando no sentido contrário à padronização
de nossa apreensão da realidade; em desenvolver nossa sensibilidade
e inteligência, habilitando-as plenamente para uma leitura mais
abrangente do mundo; em despertar nossa capacidade de indignação,
criando em cada um de nós uma consciência crítica
da realidade circundante; em alicerçar nossa conduta ética
no trato social, a fim de aperfeiçoar nossas inter-relações
humanas; em desenvolver nossa capacidade de compreensão e absorção
da atividade estética, a partir de uma prática hermenêutica
consistente.
De modo muito especial, a Literatura Infanto-Juvenil desempenha os mais
diversos “papéis” sociais, que vão do lingüístico
ao psicológico, do interacional ao pedagógico, tornando-se,
neste sentido, instrumental indispensável ao processo de desenvolvimento
do pensamento reflexivo, de aquisição da cidadania plena,
de aprofundamento de conceitos abstratos etc. Evidentemente, para esse
complexo formativo/informativo concorrem fenômenos diversos, aos
quais a Literatura Infanto-Juvenil está atenta e com os quais igualmente
contribui, como a própria construção da identidade
social da criança e do adolescente
Daí a necessidade de se estabelecerem os possíveis contornos
da Literatura Infanto-Juvenil, a fim de melhor depreender os conceitos
que lhe são pertinentes e os aspectos que conformam sua dinâmica
ética e estética.
Literatura Infanto-Juvenil: conceitos e definição
A primeira questão a ser ressaltada no sentido de depreender os
conceitos pertinentes à Literatura Infanto-Juvenil é a necessidade
de distinguir o texto literário do não-literário,
por mais óbvio que tal distinção nos possa parecer.
Isto se dá pelo fato de que talvez como em nenhuma outra manifestação
artístico-cultural, na Literatura Infanto-Juvenil os fatos que
compõem a natureza estética do fenômeno artístico
fazem-se inapelavelmente presentes.
Neste sentido, nunca é demais lembrar que, enquanto o texto não-literário
possui uma série de funções referenciais, voltadas
em geral para o pragmatismo cotidiano, o texto literário faz ressaltar
a função estética da linguagem, privilegiando o discurso
artístico e tornando a literatura – particularmente a Literatura
Infanto-Juvenil – um universo pleno de manifestações
criativas. É por isso que, nos dizeres de Nelly Novaes Coelho,
“a Literatura Infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor,
é arte: fenômeno de criatividade que representa o Mundo,
o Homem, a Vida, através da palavra”.
A Literatura Infanto-Juvenil não nasce como um produto criado a
priori para deleite e formação da criança, mas surge,
antes, como resultado de um complexo cultural em que a tradição
popular serve-lhe de base. Essa literatura inaugural, a que podemos chamar
de tradicional, é sobretudo marcada pela oralidade, registrada
na memória coletiva dos povos, geralmente anônima e de extração
folclórica. Nela encontra-se, a rigor, a gênese da Literatura
Infanto-Juvenil, razão de sua vitalidade como manifestação
cultural e inesgotável fonte de inspiração da histórias
destinadas às crianças:
“em todas as latitudes, e desde sempre, é
a Literatura Tradicional a primeira a instalar-se na memória da
criança. Ela representa o seu primeiro livro, antes mesmo da alfabetização,
e o único, nos grupos sociais carecidos de letras. [As histórias
pertencentes à tradição oral dos povos são]
a contribuição mais profunda na Literatura Infantil”.
Contrariamente à chamada literatura geral –
em que se privilegiam a escrita autoral, de temática diversa, geralmente
dirigida a adultos letrados –, a literatura tradicional nutre-se
das grandes narrativas míticas (fábulas, mitos, lendas,
contos de fadas etc.), em que o maravilhoso e o imaginário predominam,
tornando-se, por isso mesmo, fonte privilegiada para os relatos ficcionais
da Literatura Infanto-Juvenil. Esta, sim, mesclando os universos discursivos
das literaturas tradicional e geral, assume, deliberadamente, um contorno
mais apropriado ao leitor-mirim, podendo ser – de acordo com a faixa
etária de seu interlocutor – oral ou escrita, de temática
popular ou não, dirigida a crianças letradas ou não-letradas.
É por isso que, pode-se dizer, a Literatura Infanto-Juvenil privilegia
a intenção artística na relação autor/leitor
e valoriza o enfoque fantasista na releitura que promove da realidade
circundante, o que resulta, no final das contas, num constante estímulo
à criatividade infanto-juvenil, isto é, à sua imaginação
criadora:
“a Literatura infantil ocupa no acervo das bibliotecas
um lugar privilegiado, constituindo-se num elemento desencadeador de atividades
criativas (...) A história não acaba quando chega ao fim.
Ela permanece na mente da criança, que a incorpora como um alimento
de sua imaginação criadora”.
Não se pode prescindir, quando se trata desse
assunto, de uma das questões mais importantes à boa interação
entre a Literatura Infanto-Juvenil e a criança: a adequação
entre a faixa etária do leitor e o livro que lhe é oferecido
e que lhe servirá de passaporte na aventura de descoberta do universo
imaginativo contido na narrativa ficcional. Muitas vezes, a falta de atenção
para esse fato tão simples é o responsável pelo desinteresse
que a criança manifestará, quando adulto, pela leitura,
num processo de distanciamento e aversão ao livro que se pode tornar
irreversível.
A responsabilidade do educador faz-se também, neste sentido, nos
interstícios a atividade formadora, no momento de dirigir os interesses
da criança para uma leitura que não apenas lhe será
agradável naquele momento, mas que desencadeará todo um
processo de amadurecimento do interesse para leituras futuras, para um
contato atemporal com a literatura.
Esta é, em poucas palavras, a opinião balizada de Nelly
Novaes Coelho, ao expor o problema nos seguintes termos:
“torna-se urgente que os responsáveis pelas
leituras da criançada atentem para a adequação entre
o livro e a possível fase psicológica (ou faixa etária)
em que ela se encontra (...) Se atendermos às exigências
de cada fase, a criança passará, sem problemas, do interesse
espontâneo pela linguagem visual imagética, para o interesse
mais profundo pela linguagem verbal escrita. O não respeitarmos
a evolução natural de seu psiquismo (forçando-a a
leituras ou atividades intelectuais inadequadas), poderá impedi-la,
para sempre, do importante encontro com o mundo da palavra nos livros”.
Pautando-se, portanto, nas teorias propostas pela Psicologia
do Desenvolvimento, podemos dividir os períodos de desenvolvimento
da criança e do adolescente em cinco tipos diferentes, correspondentes
a grupos etários distintos e cronologicamente dispostos, a fim
de melhor visualizar o processo de adequação dos leitores
à produção ficcional infanto-juvenil.
Um primeiro tipo, aquele que podemos genericamente chamar de Primeira
Infância, correspondente às crianças de um ano e meio
a três anos, prevê aperfeiçoamentos diversos por parte
da criança, como a sensibilidade tátil, o desenvolvimento
da maturidade, a exploração dos sentidos, a descoberta de
formas concreta, a conquista da linguagem etc. Para esta faixa etária,
aconselha-se a utilização de livros com imagens, com texturas
diferentes, livros-brinquedo, livros musicais e afins, em geral contendo
narrativas curtas, com muitas imagens, de enredo simples e vivo, com poucas
personagens e que se aproximem da vivência da criança.
Um segundo tipo, o da Segunda Infância, de crianças de três
a seis anos, assinala o desenvolvimento da fantasia e da imaginação
infantis, o predomínio do pensamento mágico, o aumento do
vocabulário, a não-diferenciação entre a fantasia
e a realidade, o interesse pelo maravilhoso etc. Para essa fase, é
recomendável os livros com imagens que já apresentem correspondência
com as palavras, contendo, sobretudo, narrativas curtas com a presença
do humor, certo clima de expectativa ou mistério e toda sorte de
discursos ligados à imaginação (fábulas, contos
de fadas, lendas etc.).
É no terceiro tipo, o da Terceira Infância, dos sete aos
onze anos, que a criança começa a desenvolver, com mais
intensidade, o pensamento racional e o processo de socialização,
resultando na substituição do pensamento mágico pelo
lógico, embora o interesse pelo maravilhoso ainda persista. Os
livros adequados para essa faixa etária são aqueles que
apresentem aventuras e ação constantes, além de livros
de mistério e narrativas exemplares. Logicamente, com o processo
de alfabetização em franca evolução, a criança
– entrando agora na puberdade – passa a se interessar por
narrativas escritas, de extensão mediana, com o predomínio
do concreto sobre o abstrato.
A literatura que se produz para esses três primeiros grupos, representando
a infância e suas subdivisões, apresenta características
muito singulares, na medida em que há, nessa fase do desenvolvimento
humano, não apenas uma necessidade intrínseca do lúdico,
mas também uma curiosidade muito intensa, que se liga de imediato
à inteligência. A literatura, neste sentido, desempenha um
papel relevante, procurando prover as necessidades mais íntimas
das crianças, ainda que nem sempre elas sejam muito claras para
as próprias crianças. Como já se afirmou uma vez,
“o bom livro para crianças é (...) aquele que pretende
consultar as suas características psíquicas e responder
a suas exigências intelectuais e espirituais”.
No quarto tipo, o da Pré-Adolescência, numa faixa etária
que vai dos onze aos dezesseis anos, revela-se maior grau de pensamento
reflexivo, resultando em maior autoconfiança e aprofundamento do
abstrato (sobretudo em relação ao tempo e ao espaço).
O interesse volta-se, quase que naturalmente, para os livros que contenham
textos mais longos, com histórias de heróis, temas emotivos
e sentimentais, motivos cotidianos e uma diversidade de assuntos, própria
da curiosidade do pré-adolescente e do adolescente.
Finalmente, o quinto e último tipo, correspondente à Adolescência,
a partir dos dezessete anos, manifesta maior espírito aventuresco,
muitas vezes buscando explicação para a essência e
fenômenos da realidade, correspondendo, via de regra, ao desenvolvimento
da maturidade física e psíquica. Uma variedade enorme de
tipos de livros são colocados à disposição
dessa faixa etária, destacando-se os que contêm narrativas
de aventuras e ficção científica, histórias
humorísticas e até narrativas existencialistas.
O quadro aqui esboçado, embora simples, revela-nos a responsabilidade
do educador no papel de mediador entre a criança/adolescente e
a literatura, uma vez que prescreve, para cada faixa etária, no
processo de desenvolvimento humano, um tipo relativamente específico
de livro e de narrativa. Dessa maneira, qualquer que seja a faixa etária
de que se esteja tratando, o provisão adequada da Literatura Infanto-Juvenil
resulta numa inegável contribuição para o desenvolvimento
da inteligência e da sensibilidade humanas e, conseqüentemente,
para o processo de interação social:
“no aspecto físico, um ambiente rico em estimulação
irá proporcionar objetos que possam ser manipulados pela criança,
lugares que possam ser explorados, oportunidades de observação
de fenômenos da natureza etc. No plano social, o ambiente será
rico em estimulação quando reforçar e valorizar a
aquisição de competência da criança em muitos
e muitos aspectos”.
O lúdico e o pedagógico na Literatura Infanto-Juvenil
Pode-se dizer que a Literatura Infanto-Juvenil é
o resultado da interação entre intenção pedagógica
do texto ficcional – a qual estimula o aprendizado – e sua
intenção lúdica – que, por sua vez, estimula
a criatividade de uma forma geral, tudo, evidentemente, mediado pela natureza
estética da literatura, que, no limite, fundamenta a própria
concepção do que seja a arte: a estética acaba sendo,
neste sentido, o princípio e fim de toda atividade artística.
Apesar disso – ou, sobretudo quando se trata da Literatura Infanto-Juvenil,
por isso mesmo –, outros aspectos relacionados a essa manifestação
artística agregam valores diversos à Literatura Infanto-Juvenil,
tornando-a ainda mais adequada à criança e ao jovem e desempenhando
imponderável papel no seu processo de formação.
Para efeito didático, podemos dividir em três os aspectos
nos quais essa literatura incide, contribuindo para a formação/desenvolvimento
da criança e do adolescente e permitindo, providencialmente, uma
franca interação entre o lúdico e o pedagógico.
O primeiro aspecto que ressaltamos é o psicofísico, no sentido
de que a Literatura Infanto-Juvenil atua como estímulo às
funções motoras e intelectuais das crianças, além
contribuir com a formação de sua personalidade, com o desenvolvimento
do imaginário infantil e de seu espírito crítico.
O segundo aspecto sobre o qual a Literatura Infanto-Juvenil age é
de natureza social, já que, por meio dela, a criança adquire
melhores condições de formar sua identidade social, aperfeiçoar
seu processo de sociabilidade e estabelecer categorias de valor ligadas
à ética. O terceiro aspecto, a que podemos chamar de lingüístico,
liga-se à capacidade, promovida pela Literatura Infanto-Juvenil,
de contribuir para o desenvolvimento do vocabulário, para a aquisição
de estruturas lingüísticas, para a distinção
de registros discursivos e desenvolvimento da escrita e da narratividade.
Contudo, a discussão maior se trava não em torno desses
aspectos que assinalamos, intrinsecamente relacionados à atuação
da Literatura Infanto-Juvenil na formação da criança
e do adolescente, mas em torno da possível dicotomia entre um valor
lúdico (a-funcional) e um valor pedagógico (funcional) dessa
literatura.
Com efeito, não são poucos, a exemplo de Maria Antonieta
Cunha, que se colocam a favor da natureza estritamente lúdica da
Literatura Infanto-Juvenil, assinalando não ser necessário
seu pretenso tributo à Pedagogia, já que
muitas obras feitas para crianças e ditas de literatura
infantil não se desprendem de uma peculiaridade do discurso pedagógico:
a redução da criança, notadamente pela facilitação
artística (puerilidade) e pelo tom moralizador. Nesses casos, temos
apenas uma pretensa literatura infantil, exatamente como, dentro da produção
artística para adultos, existem também lamentáveis
equívocos: há maus romances, maus poemas, maus contos”.
Há também, evidentemente, aqueles que,
como Cecília Meireles, colocam-se – com argumentos igualmente
convincentes – a favor de uma pretensa natureza pedagógica
da Literatura Infanto-Juvenil, rejeitando, até pela omissão
de qualquer comentário favorável a este – seu possível
caráter lúdico:
“a Literatura não é, como tantos supõem,
uma passatempo. É uma nutrição. A Crítica,
se existisse, e em relação aos livros infantis, deveria
discriminar as qualidades de formação humana que apresentam
os livros em condições de serem manuseados pelas crianças”.
Uma posição mais imparcial, acreditamos,
é exatamente aquela que se pauta numa concepção intermediária
do valor da Literatura Infanto-Juvenil, seja por considerar sua atuação
a partir de uma perspectiva equilibrada, como ocorre em Nelly Novaes Coelho:
“como ‘objeto’ que provoca emoções,
dá prazer ou diverte e, acima de tudo, ‘modifica’ a
consciência-de-mundo de seu leitor, a Literatura Infantil é
Arte. Por outro lado, como ‘instrumento’ manipulado por uma
intenção ‘educativa, ela se inscreve na área
da Pedagogia”;
seja por entender que a Literatura Infanto-Juvenil coloca-se
como uma proto-pedagogia que atua, em conjunto com seu caráter
lúdico, na formação da criança, como sugerem
Maria José Palo e Maria Rosa Oliveira:
“o verdadeiro sentido de uma ação
pedagógica que é mais do que ensinar o pouco que se sabe,
estar de prontidão para aprender a vastidão daquilo que
não se sabe. A arte literária é um dos caminhos para
esse aprendizado (...) À função utilitário-pedagógica
só resta um caminho, que a leve ao verdadeiro diálogo com
o ser literário infantil: propor-se enquanto proto-pedagogia ou
quase-pedagogia, primeira e nascente, capaz de rever-se em sua estratificação
de código dominador do ser literário infantil, para, ao
recebê-lo em seu corpo, banhar-se também na qualidade sensível
desse ser com o qual deve estar em harmônica convivência”.
Com efeito, é na interação entre
os valores lúdico e pedagógico que se encontra a melhor
definição do que seja a Literatura Infanto-Juvenil e o melhor
entendimento de sua atuação sobre os aspectos psicofísico,
social, lingüísticos e outros, próprios do processo
de desenvolvimento da criança e do adolescente.
Conclusão
Como já ressaltamos anteriormente, nada disso
prescinde dos pressupostos estéticos, por assim dizer, que fundamentam
a própria natureza da Literatura Infanto-Juvenil. Não há,
em última instância, literatura sem aquele sentido secreto
que ultrapassa palavras e frases de que nos fala Clarice Lispector em
um de seus melhores romances; tampouco pode haver Literatura Infanto-Juvenil
sem aquele prazer espiritual de que nos fala Cecília Meireles.
São exatamente os chamados aspectos estéticos que enformam
a Literatura Infanto-Juvenil os responsáveis pela trama narrativa,
pelo discurso ficcional, pela variedade de personagens e pelo arcabouço
temporal que, no conjunto, tornam um texto essencialmente literário.
E dessas características decorre todo o restante...