Sergio
Marcos Rodrigues da Silva*
Mara Kitamura - Universidade de Sorocaba – UNISO
Fábio Luís Pereira - Universidade de Sorocaba – UNISO
Apresentação
O Projeto
Leia esta Canção teve sua inspiração num projeto
de características semelhantes, levado a cabo pelo cineasta Cacá
Diegues, em 1994, e exibido, mais tarde, pela TV Cultura de São
Paulo, intitulado Veja esta Canção. Consistia tal proposta
na construção de roteiros que desenvolvessem pequenas histórias
a partir da leitura de uma música dada. Foram quatro músicas
ao todo, dentre elas Drão, de Gilberto Gil, e Samba do grande amor,
de Chico Buarque. O resultado final foram quatro histórias que
buscavam, nas músicas, seus argumentos e traduziam uma leitura
possível de cada uma delas.
Pensado nessa mesma lógica, o Projeto Leia esta Canção
buscou produzir condições materiais para que alunos da 2ª
série do Ensino Médio do Colégio Dom Aguirre, em
Sorocaba, escola particular mantida pela Fundação Dom Aguirre,
construíssem suas possibilidades de leitura da realidade a que
estavam expostos a partir de duas linguagens bastante próximas
de seus centros de interesse: a música e a imagem, objetivadas
na produção de um tipo de videoclipe.
Ele chegou a ser desenvolvido por três anos – 2001, 2002 e
2003 –, resultando numa produção material de cinqüenta
e cinco videoclipes, tendo-se encerrado, a partir de então, por
conta do esgotamento das condições materiais e humanas que
lhe davam sustentação.
A proposta deste texto é a apresentação dos referenciais
teórico-metodológicos que sustentaram a sua realização
e o relato da experiência com essa prática, que envolveu
o aparato didático-pedagógico de três disciplinas
mais a parceria com a Universidade de Sorocaba, particularmente com o
curso de Comunicação daquela instituição.
Ao final, pretende-se analisar a sua execução, apontando
aspectos positivos e negativos que se puderam verificar ao longo do processo.
Referenciais
teórico-metodológicos
A sociedade
das imagens
Em 1995, o vestibular da Fuvest trazia uma proposta de redação
bastante interessante sob o ponto de vista da temática que abordava
e da discussão a que levava os candidatos. Ela se centrava nos
três textos a seguir, dois de Adorno e um de Badiou:
Não há sempre sujeito, ou sujeitos. (...) Digamos que o
sujeito é raro, tão raro quanto as verdades. (A. Badiou)
Em muitas pessoas já é um descaramento dizerem "Eu".
(T.W. Adorno)
Todos são livres para dançar e para se divertir, do mesmo
modo que, desde a neutralização histórica da religião,
são livres para entrar em qualquer uma das inúmeras seitas.
Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção
econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de escolher
o que é sempre a mesma coisa. (T.W. Adorno)
Deve-se a Adorno e Horkheimer1 a propagação do uso do termo
indústria cultural. Para eles, a cultura contemporânea é
um caos total, a tudo emprestando um ar de semelhança. Toda cultura
de massa, colocada sob o poder do monopólio, não deixa de
ser idêntica, levando-se em conta que ela não precisa se
apresentar como arte. Afirmam eles: “a verdade é que não
passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada
a legitimar o lixo que propositalmente produzem” (p.114).
O que se percebe na sociedade atual é que a cultura se tornou descartável.
As mudanças que deram origem ao capitalismo contemporâneo,
de capital globalizado e globalizante, transformaram-na em mercadoria.
E toda mercadoria, em essência, é descartável.
Isleide Fontanelle2, em seu livro O nome da marca, publicado pela Boitempo,
em 2002, procura enfatizar o papel que a marca assume no capitalismo contemporâneo.
Segundo ela, num mundo que esvazia reiteradamente as pessoas de suas identidades,
num jogo infinito de espelhos que refletem, expropriam e deformam, o consumo
passa a ser uma fábrica de identidades postiças.
Fontanelle, partindo de Adorno e Horkheimer, afirma que os conceitos deles
“nos remetem à gênese dessa sociedade que, hoje, se
tornou ‘das imagens’” (p. 229). Trata-se, segundo a
autora, de um processo de transmutação: “num dado
momento, a marca usa elementos da realidade social para construir a sua
imagem; num outro momento, é essa própria realidade social
que se refere à marca para definir a si mesma” (p. 280).
É nessa sociedade imagética, ou das imagens, que nos instalamos.
As pessoas consomem marcas, mas não são, segundo Fontanelle
(p. 270-1), encantadas pelas imagens que as cercam, fazem, sim, de modo
paradoxal, uso dessas imagens para construir as imagens sobre si mesmas
e sobre o mundo em que vivem. Nossos jovens vão a shows Hollywood,
marca da aventura, fumam Free, uma questão de bom senso; pessoas
participam dos espetáculos dos Festivais Carlton, um raro prazer,
construindo, assim, limites entre realidade e fantasia, encontrando na
mídia modelos e imagens para estabelecer o que seja a realidade.
Paulo Liedtke3, em ensaio no qual analisa a sociedade das imagens, afirma:
É através da percepção midiática dessa
realidade que a sociedade de consumo rotula as pessoas. No senso comum,
não são mais os valores, as idéias e a filosofia
de vida de um indivíduo que importam para se fazer um julgamento
dele; seus hábitos de consumo é que são decisivos
na sua avaliação. Os lugares que freqüenta, o bairro
e a habitação em que mora, o carro e as roupas que usa,
enfim, seu comportamento como consumidor é que vai situá-lo
em determinados segmentos sociais. Grande parte desses valores são
pautados pela mídia, principal instrumento para a geração
de modismos e estereótipos. Basta olhar para a realidade brasileira
e perceber o quanto a publicidade e as novelas interferem na cultura nacional.
Sem falar, é claro, na força internacional da indústria
cultural americana na difusão ideológica e comportamental
(p. 135).
O professor, em sala de aula, hoje, assiste a um desfile de celulares
dos mais variados tipos, que tiram fotos, que fazem download de vídeos,
que possibilitam escolher a música do toque de chamada e não
apenas um sinal, que incorporam jogos sofisticados. Há, inclusive,
aparelhos que até permitem conversar com outras pessoas. Esses
celulares são exibidos com orgulho, os mais modernos subjugando
os precocemente ultrapassados, submetendo seus proprietários (ou
possuídos) ao consumo de um mais moderno, que a mídia exibe
com requintes de espetáculo. É o capitalismo das imagens,
que Liedtke (p. 137) explica citando Marcos Dantas4:
Segundo Marcos Dantas (p. 117-118), o processo de produção
deixou de ser apenas aquilo que se realiza dentro das fábricas.
Realiza-se também nos lares, nas ruas, escolas e espaços
públicos de entretenimento, onde o indivíduo é adestrado
para se incorporar a uma rotina produtiva qualquer, e ao mesmo tempo,
dialeticamente, é "construído" para desejar usar
o produto que socialmente ajudou a fabricar. Esta construção
é, numa palavra, cultural. "Razão por que, nestes tempos
contemporâneos, cultura é economia", conclui o autor.
A mídia se torna, nessas condições materiais, um
instrumento de produção simbólica da realidade. Sua
capacidade de produzi-la e distribuí-la nunca se superou tanto
quanto agora, com o advento dos meios eletrônicos e das novas tecnologias.
A Internet, por exemplo, globalizou e dinamizou a informação
e a comunicação. Acontecimentos, fatos, oriundos de locais
variados, com culturas das mais diversas e de diferentes imaginários
são absorvidos por diferentes sociedades, o que aproxima aquilo
que parecia muito distante antes e dá a sensação
de participação social muito maior5. Os meios de comunicação
transformam-se, dessa forma, nos mediadores principais “na percepção
articulada acerca dos fatos sociais, influenciando o imaginário
coletivo” (Liedtke, p.133). Como afirma Fontanelle (p. 265), os
meios de comunicação são alçados pelas pessoas
a veículo de legitimação da sociedade.
Mas ao mesmo tempo em que esses meios eletrônicos, particularmente
a televisão, configuram-se como “aparelho privado da hegemonia
mais eficaz na articulação hegemônica por conta de
sua capacidade de definir/construir os limites do hegemônico (da
realidade)” (Liedtke, p. 134), eles constroem espaço para
as contradições. Orivaldo Leme Biagi5, analisando o conteúdo
e a forma na construção da notícia, dá forte
exemplo disso:
Não há mais inexperiência na utilização
da mídia, nada é deixado ao acaso. Tudo está sendo
cada vez mais programado (inclusive construções noticiosas
manipuladoras). Mas espaços para a contestação sempre
existirão, como nos demonstra a mudança de opinião
da população norte-americana em relação à
recente intervenção das suas forças armadas no Iraque:
a “desculpa” do combate ao terrorismo (por causa dos atentados
de 11 de setembro) e a derrubada do ditador Saddam Hussein têm se
tornado irrelevantes comparado às cenas de tortura cometidas por
soldados norte-americanos e da resistência iraquiana perante o “invasor”
estrangeiro.
Em outro momento de seu artigo, citando Michel de Certeau6, ele afirma:
Mas nem tudo é, logicamente, manipulação (...) Em
outras palavras, nem sempre a “criatura” corresponde aos desejos
do “criador” e as leituras podem gerar significados inesperados
no público, para surpresa dos produtores. A leitura, quer de um
livro ou jornal (ou até mesmo o acompanhamento de um programa de
TV ou de rádio) é um ato interpretativo e sempre varia de
pessoa para pessoa, ou seja, de cada história pessoal, dos seus
conhecimentos, das suas experiências, etc.
A própria sociedade das imagens pode marcar algumas contradições
do capitalismo, naquilo que Liedtke (p. 147), citando o sociólogo
Luís Fernando Novda Garzon7, chamou de a Crise do Capital para
discorrer sobre o que alguns analistas já tomam como o limite do
capitalismo em sua capacidade de superação de crises :
O autor afirma que as novas tecnologias cavaram ainda mais o abismo entre
as classes e países, ressuscitando a temida equação
superprodução/consumo. A financeirização prostituiu
a racionalidade econômica e gerou ainda mais instabilidade. O incremento
do hedonismo consumista (vide exemplo McDonalds) só fez aumentar
o vazio de legitimidade de uma vida em que tudo esta à venda, ela
inclusive.
O cotidiano
e a construção da cotidianidade
As teorias do cotidiano sob a ótica de LUKÁCS, HELLER, LEFEBVRE,
DUARTE, dentre outros de mesma linha, acabam por determinar as condições
materiais para a produção dessa “sociedade das imagens”.
O Estado do Bem-Estar Social e a produção capitalista foram
cunhando, conforme afirma Maria do Carmo Brant Carvalho8 a figura de um
usuário servil, voraz e individual, que busca a satisfação
de necessidades. “O Estado e a produção capitalista
moderna engendram na vida cotidiana atual um único valor: a satisfação”
(CARVALHO, 2000: 54).
Sobre isso, Lefebvre, citado por CARVALHO (2000) afirma:
Ser satisfeito, eis o modelo geral de ser e de viver, do qual os promotores
e apoiadores não vêem que ele engendra o mal-estar. Porque
a busca da satisfação e o fato de ser satisfeito pressupõe
a fragmentação do ‘ser’ em atividades, intenções,
em necessidades, todas bem determinadas, isoladas, separáveis e
separadas do Todo
José Paulo Netto8, citando Lukács, mostra o cotidiano nessa
mesma direção:
Há mais, todavia: aquelas determinações da cotidianidade
fazem com que todo e cada indivíduo só se perceba como ser
singular, vale dizer: a dimensão genérica (a referência
à pertinência ao humano-genérico) aparece subsumida,
na vida cotidiana, à dimensão da singularidade” (NETTO,
2000: 68)
Acrescente-se, ainda, a colocação feita por CARVALHO (2000:
pp. 19-20):
Vista sob certo ângulo, a vida cotidiana é em si o espaço
modelado (pelo Estado e pela produção capitalista) para
erigir o homem em robô: um robô capaz de consumismo dócil
e voraz, de eficiência produtiva e que abdicou de sua condição
de sujeito, cidadão.
É assim que a vida cotidiana é, para o Estado e para as
forças capitalistas, fonte de exploração e espaço
a ser controlado, organizado e programado.
Dessa forma, o cotidiano, como esse espaço controlado, organizado
e programado pelo Estado e pelas forças capitalistas, exerce uma
força que homogeneíza um modo de vida, criando necessidades
individuais cuja superação prende-se, também ao plano
da individualidade. Isso enfraquece o embate que poderia gerar o que Agnes
Heller9 chama de suspensão do cotidiano – o que significaria
o movimento de saída da vida cotidiana e o retorno modificado a
ela, dando ao indivíduo a consciência dessa vida. “Esse
movimento objetivaria a passagem do homem inteiro (muda relação
de sua particularidade e generacidade) para o inteiramente homem (unidade
consciente do particular e do genérico)” (CARVALHO, 2000:
27). Segundo Heller (ib.), ainda, essa passagem ocorre quando se rompe
com a cotidianidade: quando uma obra ou um ideal convoca a inteireza de
nossas forças e então suprime a heterogeneidade. Essa seria
a objetivação do ser social.
A interdisciplinaridade
como espaço de parceria
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio –
Parecer CEB/CNB no. 15/98, instituídas pela Resolução
nº. 4/98, entre outras disposições, determinam que
os currículos se organizem em áreas – “a base
nacional comum dos currículos do ensino médio será
organizada em áreas de conhecimento” – estruturadas
pelos princípios pedagógicos da interdisciplinaridade, da
contextualização, da identidade, da diversidade e autonomia,
redefinindo, de modo radical, a forma como têm sido realizadas a
seleção e organização de conteúdos
e a definição de metodologias nas escolas em nosso país.10
A referência de interdisciplinaridade de que se partiu para a execução
do Projeto Leia esta Canção foi a concepção
da educadora Ivani Catarina Arantes Fazenda11 e o que ela define como
atitude interdisciplinar, que é a compreensão e a vivência
do movimento dialético. Na explicação de Adriana
Azevedo Paes de Barros12,em artigo sobre a interdisciplinaridade:
O pressuposto é que o velho sempre pode tornar-se novo e há
sempre algo de velho no novo. Velho e novo, faces da mesma moeda, dependem
apenas da visão de quem lê, se o faz disciplinar ou interdisciplinarmente.
O que se deve destacar neste fundamento é a importância do
exercício do diálogo realizado com nossas próprias
produções, objetivando extrair destes diálogos novos
conhecimentos, novas posturas, novos indicadores, novas possibilidades
de trabalho.
Fazenda ainda sustenta que outro fator importante para a prática
interdisciplinar é a parceria, que incita o diálogo com
formas diversas de conhecimento não habituais para nós,
produzindo a possibilidade de que elas se interpenetrem, consolidando
a intersubjetividade, a complementaridade de pensares diversos.
A interdisciplinaridade seria, por fim, um meio de superar a visão
fragmentária dos objetos e acontecimentos, naquilo que Barros,
interpretando ainda Fazenda, argumenta:
...é o pressuposto de que o conhecimento interdisciplinar busca
a totalidade do conhecimento, respeitando-se a especificidade das disciplinas,
assim , o projeto, a intencionalidade e o rigor tornam-se características
fundamentais de uma forma de pensar e agir interdisciplinar, forma que
infelizmente, muitas vezes tem sido substituída pelo improviso
e descompromisso. Desta forma, um projeto interdisciplinar alicerça-se
em pressupostos epistemológicos e metodológicos que são
sempre revisados. Caracteriza-se pela ousadia da busca, da pesquisa, da
transformação.
Justificativa
Inserido
nessa sociedade das imagens, nesse espaço controlado, organizado
e programado pelo Estado e pelas forças capitalistas, que é
o cotidiano, o grupo de alunos que participou da execução
do Projeto Leia esta Canção é produto disso tudo.
Entretanto, considerando-se que, ao mesmo tempo em que essa sociedade
das imagens constrói uma produção simbólica
da realidade interessante ao capitalismo, ela cria as condições
para que a subjetividade do indivíduo que ela quer consumidor interprete
essa produção. E um ato interpretativo sempre varia de pessoa
para pessoa, ou seja, depende de cada história pessoal, dos seus
conhecimentos, das suas experiências, dentre outros fatores.
Assim é que a execução desse projeto, sob a forma
controlada de uma prática escolar referenciada nesses pressupostos
teórico-metodológicos, poderia produzir a mediação
e as condições materiais necessárias para tensionar
essa produção simbólica da realidade pela sociedade
das imagens, encontrando o terreno do contraditório.
Ficava a pergunta: essa prática, nos moldes como fora concebida
e planejada, produziria a tensão suficiente para a suspensão
do cotidiano, de modo que esse grupo de alunos pudesse, em dadas condições,
olhar para a vida cotidiana de fora para dentro, retornando a ela modificado
e consciente dela?
Esse era o objetivo do projeto. E de certa forma o que se pretende, aqui,
ao apresentar o relato dessa prática escolar, é analisar
os resultados e construir uma possibilidade de resposta a essa questão.
O projeto
e suas etapas – relato de uma experiência
Explicação
necessária
O Projeto Leia esta Canção foi desenvolvido na referida
escola por três anos – 2001, 2002 e 2003 – com grupos
de alunos da 2ª série do Ensino Médio. O primeiro ano,
até pela inexperiência em trabalhar com a linguagem de vídeo,
produziu algumas falhas que o segundo ano de execução buscou
superar, mas com algumas limitações. Apenas no terceiro
ano é que o projeto parece ter alcançado uma maturidade
Sendo assim, optou-se por trabalhar aqui com sua terceira edição,
até pela conformação mais consistente que ela assumiu,
o que se verifica no próprio produto final, os vídeos.
O projeto foi desenvolvido sob a forma de interdisciplinaridade (na concepção
exposta nos referenciais teórico-metodológicos) por três
disciplinas: História, Geografia e Português, mais especificamente
a frente de Redação desta última, uma vez que essa
escola opta por dividir a disciplina em três frentes: Literatura,
Gramática e Redação, o que parece tem sido a opção
das várias escolas particulares que operam no Ensino Médio.
A idéia era que os componentes curriculares das duas primeiras,
por seu caráter de trabalho com as formas de produção
da vida pelo homem e pela sociedade, dessem os referenciais teóricos
necessários para a compreensão dessa produção,
o que poderia refletir no olhar do aluno para a interpretação
da realidade que procuraria produzir com seu vídeo. A terceira
disciplina contribuiria como suporte técnico-teórico, dimensionando
as várias possibilidades de leitura para a produção
dessa interpretação a partir da música escolhida
e de sua letra, e os mecanismos de coesão e coerência que
construiriam a unidade e a lógica da linguagem produzida no vídeo.
Participaram do projeto, nos dois anos, os professores Fábio Luiz
Pereira (História), Mara Kitamura (Geografia) e eu, Sergio Marcos
Rodrigues da Silva (Redação).
Diferentemente da proposta do projeto levado a cabo por Cacá Diegues
e já mencionado na apresentação deste texto, que
consistia na produção de uma história a partir de
argumentos filtrados da música pela subjetividade do cineasta,
o Projeto Leia esta Canção consistia na construção
de uma seqüência coerente de imagens, captadas das mais diversas
fontes – noticiários de tv, filmes, videoclipes, fotografias,
documentários, etc. – que pudesse produzir um possibilidade
subjetiva de leitura para a realidade veiculada ou discutida pela música
e sua letra, levando em conta a história pessoal dos indivíduos
que formavam cada grupo, seus conhecimentos, suas experiências e
o modo como conseguiam perceber os componentes curriculares de cada disciplina,
além da forma como conseguiam mediar as discussões e contradições
presentes em seu trabalho em grupo.
As etapas
1. Indicação dos componentes do grupo e da música
a ser trabalhada
Cada classe, num total de cinco, foi dividida em três grupos. Cada
grupo tinha a liberdade de indicar a música com a qual trabalharia.
A única limitação era para que não houvesse
repetição de músicas, nem na mesma turma, nem em
relação às outras turmas. Tal medida foi tomada para
que o natural contato entre eles no espaço escolar não contaminasse
suas leituras ou produzisse interferências nelas.
Em princípio, pensou-se em produzir mais uma limitação:
não seriam aceitas músicas que abordassem o erotismo ou
a sexualidade de forma banalizada, mas decidiu-se por não fazer
isso. O que se mostrou eficaz, já que nenhum grupo sugeriu qualquer
música nessa direção. Em tempo, na primeira versão
do projeto, as músicas foram sugeridas para os grupos, talvez nossa
primeira falha, uma vez que eliminávamos a subjetividade da escolha
do grupo.
2. Ação
das disciplinas envolvidas
Cumprida a primeira etapa, os professores passaram a trabalhar, em suas
aulas ou em reuniões conjuntas entre eles e os grupos, as mediações
necessárias para a interpretação do conteúdo
das letras das músicas. Procurou-se tomar o cuidado para que essas
mediações não ultrapassassem os seus limites e contaminassem
as leituras dos grupos.
As orientações eram feitas no sentido de esclarecer trechos
obscuros das letras para os alunos, indicando-lhes caminhos para a construção
do sentido a partir de seus conhecimentos de mundo.
Importante esclarecer que o trabalho dos grupos se dividiu em duas etapas.
Nesse primeiro momento, o trabalho era coletivo para a construção
de uma interpretação para a letra da música e o estabelecimento
de um projeto para a seqüência de imagens que seria construída.
Depois disso, os grupos eram subdivididos por tarefas: uma parte se encarregava
da captação das imagens; outra, da “decupagem”
dessas imagens (processo de identificação do material e
catalogação para fácil manipulação
no momento da edição do vídeo); e uma última
equipe se encarregava de produzir a edição final do vídeo
nos laboratórios e ilhas de edição do curso de Comunicação
da Universidade de Sorocaba, parceira na execução do projeto.
Esse último procedimento era feito sob a orientação
dos estagiários da universidade em função nos seus
laboratórios.
3. Capacitação
A produção de um vídeo trabalha com um tipo de linguagem
a que o aluno tem acesso, normalmente, como expectador. Por se tratar,
portanto, de uma linguagem nova para eles pela ótica da produção,
uma das etapas do projeto consistia na capacitação para
o trabalho com essa linguagem.
Para isso contamos com o professor Fernando Negrão, coordenador
dos laboratórios do curso de Comunicação da Uniso
que, em diversas reuniões com os grupos, foi preparando-os para
a produção de uma leitura nessa forma de linguagem. Essa
preparação consistia em definir o que era roteiro, decupagem,
estabelecer padrões de imagens que os equipamentos seriam capazes
de ler, dentre outros aspectos que os professores não conseguiriam
dar conta naquele momento.
4. Execução
O projeto foi executado ao longo do ano de 2002 (tomando-se por base a
sua segunda edição, por conta do que já foi exposto)
No mês de fevereiro, o projeto foi apresentado às turmas
de alunos, que se separaram em três grupos cada. Durante os meses
de março e abril, cada grupo deu conta de escolher a música
e produzir a leitura para a letra. Ao mesmo tempo, por meio de palestras,
o professor Fernando Negrão, da Uniso, ia capacitando os alunos
para trabalhar tecnicamente a linguagem de vídeo, preparando-os
para a produção do roteiro com o argumento da leitura.
O mês de maio foi dedicado à produção desse
roteiro, sob a orientação, agora, dos professores, cujo
papel era, exclusivamente, avaliar a coerência da seqüência
das imagens e sugerir, a partir do todo que se apresentava, mudanças
de rumo, não na leitura, mas na olhar para a realidade captada
na letra. Essa orientação, vez ou outra, sugeria a inclusão
ou exclusão de imagens, pensando na coerência do conjunto.
Os meses de junho, particularmente, e julho (ainda que os grupos estivessem
em férias), foram dedicados à procura e captação
das imagens que o roteiro previa. Durante o mês de julho, sugeriu-se
aos membros das equipes responsáveis por essa etapa que trabalhassem
individualmente, uma vez que as férias dificultariam as reuniões.
No retorno, em agosto, as equipes de captação de imagens
reuniram-se na primeira semana para a finalização da etapa,
passando o material captado para a equipe de “decupagem”,
que iria produzir a identificação e catalogação
necessárias para o trabalho da equipe de edição.
Nos meses de setembro e outubro, foi realizada a edição
final dos vídeos nos laboratórios do curso de Comunicação
da Uniso, sob a orientação dos estagiários que cumprem
função ali. Os estagiários, seguindo as orientações
das equipes de edição, manipulavam o equipamento, montando
a seqüência de imagens como era sugerida. Vez ou outra, por
conta de seu conhecimento do equipamento e da linguagem trabalhada, sugeriam
alguns recursos, mas com o cuidado para não contaminar a leitura
do grupo.
Ao final do mês de outubro, o produto final do projeto, o vídeo,
era entregue em definitivo.
5. Orientação
O trabalho de orientação dos professores envolvidos no projeto
ocorreu ao longo de todo o processo. Essas orientações ocorriam
em dias programados, fora do horário de aula, com rodízio
dos mesmos a cada semana, ou conforme o pedido dos grupos.
Todo o trabalho de orientação procurou ser realizado como
mediação, cuidando para não contaminar as decisões
do grupo.
6. Avaliação
Começava, então, o trabalho de avaliação pelos
professores orientadores. A avaliação levava em conta três
critérios: coerência da seqüência de imagens para
compor a unidade do vídeo, os pressupostos da leitura sob a ótica
dos referenciais teóricos dos componentes curriculares das disciplinas
de História e Geografia, o trabalho do grupo na execução
das etapas.
Paralelamente ao processo de avaliação, mas sem interpor-se
a ele, uma equipe de jurados, dentre professores da escola, do curso de
Comunicação da Uniso, das áreas de publicidade e
propaganda e dos meios artístico e jornalístico, era constituída
para julgar os vídeos como produto acabado, levando em conta sua
plasticidade e sua coerência interna e externa.
7. Encerramento
Desse julgamento, classificavam-se os três melhores vídeos,
que eram premiados durante uma mostra de todos os trabalhos aos alunos
do projeto, no Teatro América, na região central de Sorocaba.
Um quarto trabalho era escolhido para premiação pelos professores
envolvidos no projeto. O critério era bastante subjetivo, os professores
procuravam a leitura mais original.
Encerrada a mostra, o projeto chegava ao fim.
Conclusões
O momento
de produção deste texto resulta numa oportunidade bastante
interessante de olhar para o projeto com um olhar de maior exatidão.
Isso se deve ao fato de que o distanciamento temporal de sua execução
e o amadurecimento dos referenciais teóricos, agora revisitados,
que em princípio o sustentaram, permitem uma avaliação
mais crítica e objetiva de seus resultados, sem o envolvimento
emocional que, naturalmente, pesa sobre um trabalho dessa dimensão
para quem nele se envolve diretamente.
A partir desse olhar mais crítico, é possível reconhecer
alguns elementos que produziram obstáculos para a verificação
que se pretendia realizar. Um deles foi, sem dúvida, o número
excessivo de componentes em cada grupo, entre quatorze e dezesseis. Tal
número deveu-se à capacidade que os laboratórios
da universidade tinham para nos receber e agendar para nós horários
de uso, uma vez que os mesmos eram utilizados para trabalhos dos alunos
dos cursos de Comunicação.
Outro elemento que gerou, muitas vezes, atrasos nas etapas foi a convivência
com o calendário de provas. Era difícil conciliar os trabalhos
das equipes com a necessidade que seus componentes tinham de estudar para
cumprir esse calendário. Às vezes, era preciso resgatar
procedimentos de etapas anteriores para dar continuidade ao processo.
Também, de nossa parte, os referenciais teóricos que sustentavam
as linhas do projeto não me parecem, vistos hoje, que estivessem
amadurecidos o suficiente. Isso nos levou, algumas vezes, a indecisões
quanto aos procedimentos necessários para alcançar o objetivo
proposto.
Por outro lado, entretanto, os trabalhos finais surpreenderam, e ainda
hoje surpreendem. As temáticas abordadas pelos alunos através
das músicas não foram tão diversificadas, mas produziram
leituras interessantes sobre a violência, as reivindicações
populares, o cotidiano da vida urbana, a vida em si.
Analisada a produção final do projeto, ou seja, os vídeos
produzidos pelos alunos, é possível dar conta de que o objetivo
a que ele se propunha foi, parcialmente ao menos, alcançado. Criaram-se
condições materiais para que esses alunos produzissem, eles
mesmos, as imagens e, através delas, uma visão particular
de mundo. É claro que essa visão surgiu, muitas vezes, imbricada
pela produção simbólica da sociedade das imagens
e seus efeitos sobre o indivíduo, pelas marcas do cotidiano e de
sua fragmentação do todo. Exemplo disso são as imagens
dos ataques ao Worl Trade Center, em 11 de setembro de 2001 e a ofensiva
norte-americana ao Afeganistão, bem como a Guerra do Iraque, em
2003, que permeiam boa parte dos vídeos, reflexo, talvez, da exposição
excessiva e sob a forma de espetáculo que a mídia televisiva,
principalmente, realizou.
Mas houve trabalhos em que é possível sustentar uma compreensão
subjetiva da realidade capaz de produzir uma consciência dela. Para
alguns, parece-me, o projeto foi capaz de mediar um rompimento com a cotidianidade
e, resgatando Heller, convocá-los na inteireza de suas forças,
suprimindo a heterogeneidade, mesmo que tenha sido um momento insuficiente
para dar vazão total às suas singularidades.
De um modo geral, essa prática escolar foi singular para nós,
professores envolvidos no projeto, mudando a percepção que
tínhamos do grupo de alunos. As leituras que apresentaram nem de
longe lembravam as atividades escritas produzidas por indicação
de exercícios propostos em aula ou provas, foram além. Talvez
porque a linguagem das imagens esteja mais próxima de suas referências
de mundo, talvez porque essa prática tirou-os, por longo tempo,
do cotidiano da sala de aula, gerando outras condições materiais
de produção de seu saber.
Vale uma última explicação para uma questão
que, a esta altura se coloca. Dados os resultados, por que o projeto não
teve continuidade? Como posto na apresentação, esgotaram-se
as condições materiais e humanas que lhe davam sustentação.
Sua execução cobrava dos professores uma dedicação
quase que exclusiva e um trabalho voluntário, além de tomar
um tempo muito grande, principalmente durante o período das edições.
Os professores tinham outros compromissos que não podiam mais adiar,
os laboratórios praticamente esgotaram sua capacidade de nos dar
suporte tecnológico, de modo que sua execução tornou-se
inviável para aquele momento. Mas a validade de seus pressupostos
parece-me, ainda, bastante sustentável.
Referências
bibliográficas e bibliografia
1 ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética
do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1985.
2 FONTANELLE, Isleide. O nome da marca: McDonald’s, fetichismo e
cultura descartável. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
3 LIEDTKE, Paulo. A marca Mc Donald’s na sociedade de imagens: mídia
e cultura no capitalismo em crise, in: Revista Eletrônica dos Pós-Graduandos
em Sociologia Política da UFSC, vol. 2, nº 1 (2), jan-jun/2004,
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