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A
MEDIAÇÃO COMO VIA DE SUBVERSÃO DA EXCLUSÃO ESCOLAR
Wagner
Rodrigues SILVA (Pós-UNICAMP/UFT)
Introdução
A exclusão
escolar pode ser visibilizada pela incapacidade do aluno realizar atividades
tipicamente escolares no espaço da sala de aula, bem como pela
inaptidão dos mesmos para agir com sucesso em situações
sociais envolvendo o uso da língua escrita e falada. A primeira
limitação é percebida facilmente pelos educadores
em contexto de ensino, pois, devido a resquícios de práticas
da tradição pedagógica, as habilidades necessárias
para um bom desempenho escolar continuam sendo supervalorizadas. A segunda
limitação apresentada ganha fôlego com as recentes
discussões sobre práticas pedagógicas para o letramento,
propostas pelas diretrizes curriculares brasileiras vigentes. Nesse sentido,
a exclusão está sendo concebida como um fenômeno também
provocado por práticas pedagógicas autoritárias,
uma vez que mudanças e transformações propiciadoras
de avanços na aprendizagem e no desenvolvimento do aluno não
são provocadas.
O fenômeno da exclusão pode ser ignorado ou compreendido
como fatalidade por educadores. Por um lado, a invisibilização
desse fenômeno explica-se pela dificuldade dos educadores reconhecerem
a ineficácia do trabalho pedagógico por eles desenvolvido;
por outro lado, o reconhecimento é admitido devido à atribuição
da responsabilidade pela exclusão a fatores biológicos e
sociais que fogem ao campo de atuação escolar. Esses posicionamentos
frente à questão apresentada são caracterizados como
subterfúgios dos educadores para a não-admissão da
ineficácia da prática pedagógica vigente.
A subversão da exclusão, desejada e esperada por educadores,
governantes e comunidade, pressupõe o reconhecimento da necessidade
de transformação do exercício da docência,
estando a responsabilidade pela virada almejada na dependência de
esforços coletivos. Dentre os esforços necessários,
destaco o papel da universidade no tocante ao desenvolvimento de pesquisas
colaborativas em escolas de séries inicias, uma vez que, além
de resolver problemas imediatos e desenvolver teorias, tais pesquisas
também podem contribuir para a formação professores
reflexivos.
Objetivando mostrar a plena possibilidade de sucesso de alunos excluídos
pela escola em que estudam, investigo, neste texto, as possíveis
implicações da assunção da noção
de gênero discursivo como instrumento semiótico de mediação
para a aprendizagem e desenvolvimento de uma 6ª série projeto,
caracterizada como fracassada (Perrenoud, 2001) pela visão fatalista
da comunidade escolar. No âmbito dessa investigação,
destaco a importância do trabalho de mediação realizado
pelo pesquisador durante uma atividade de reescrita textual em aula de
língua materna.
A fundamentação teórica para a investigação
realizada é oriunda basicamente de duas áreas de conhecimento:
psicologia da educação e estudos da linguagem. Na primeira,
são utilizados os trabalhos que tematizam a abordagem sócio-interacionista
da educação, como Baquero (2001), Oliveira (1997) e Vigotski
(2003; 2001a; 2001b). Na segunda, são selecionados trabalhos que,
com enfoque essencialmente teórico, discutem a função
da linguagem na interação cotidiana e a concepção
de gênero discursivo, como Bakhtin (2002; 2000) e Martin (1997),
e, com enfoque aplicado ao ensino de língua materna, discutem o
trabalho didático a partir da noção de gênero
discursivo, como Schneuwly & Dolz (2004).
1. Caracterização
do corpus
O corpus utilizado na investigação proposta faz parte da
pesquisa de doutorado que desenvolvo no campo dos estudos aplicados da
linguagem. Na pesquisa, analiso como a professora colaboradora inova a
prática de ensino de língua portuguesa a partir da assunção
das noções de texto e de gênero discursivo como objeto
de ensino e unidade de análise, respectivamente, numa escola estadual
no subúrbio da cidade de Campinas, no Estado de São Paulo.
O trabalho pautado nessas noções demanda uma ressignificação
das práticas de leitura, produção de texto e gramática,
conforme orientam as diretrizes curriculares brasileiras para o Ensino
Fundamental II (PCN, 1998). A unidade didática elaborada pela professora
e pelo pesquisador tinha como temática o gênero rótulo,
não pressupondo que esse tenha sido o único gênero
discursivo contemplado, mas entrevistas, receitas, instruções
de uso, notícias, dentre outros gêneros também foram
trabalhados.
A professora colaboradora da pesquisa passou por um curso de formação
continuada de professor em serviço, desenvolvido numa grande universidade
estadual paulista. As orientações curriculares mencionadas
foram o eixo teórico do conteúdo trabalhado no curso de
formação continuada. Desenvolvido no segundo semestre do
ano de 2003, este curso fez parte da primeira etapa de um projeto do governo
do Estado de São Paulo denominado Teia do Saber. Nessa primeira
etapa do projeto, assumi a turma que a professora colaboradora freqüentou,
portanto acredito que, sem vínculos oficiais, a intervenção
realizada na escola foi uma extensão do curso mencionado. Em outras
palavras, as orientações teórico-metodológicas
desenvolvidas durante os dez encontros de oito horas que compuseram o
curso foram postas em prática durante a intervenção
realizada na escola, em quase todo o primeiro semestre do ano de 2004.
Os alunos da 6ª série fazem parte projeto do governo do Estado
denominado Projeto ABC, que, separando numa mesma turma os alunos da mesma
série com sérios problemas de aprendizagem, é proposto
para recuperar a defasagem de aprendizagem. Utilizo a denominação
excluídos para caracterizar os alunos da 6ª série E,
justificando-se tal escolha pela posição ocupada por eles
na organização social do espaço escolar. De forma
estigmatizada, os alunos dessa turma são separados dos demais estudantes
da instituição. Um registro, no diário de campo,
da fala de uma mãe, na reunião de pais, evidencia tal estigma.
O registro Uma mãe diz que, na sala do filho, tem de tudo, é
o ninho traça com pontilhados fortemente delineados a divisão
do espaço social. No cotidiano brasileiro, a expressão “ninho”
é utilizada para caracterizar um lugar habitado ou freqüentado
por pessoas perigosas, as quais, muitas vezes, são comparadas a
cobras venenosas, daí a expressão análoga “ninho
de cobra”.
Os pressupostos teóricos referentes à organização
do espaço social propostos por Bourdieu (2001, p. 27) são
úteis para evidenciar a razão da escolha da denominação
atribuída aos educandos. Para o autor, todo espaço social
encontra-se dividido, o que é provocado pelo que denomina de capital
simbólico . Considerando as declarações explicitas
e oficiais dos educadores atuantes na escola, nos termos de Bourdieu (2001,
p. 149), o baixo capital cultural ou, mais especificamente, capital escolar
proporciona a delineação do espaço na instituição.
Faltam aos alunos dessa turma os saberes escolares, autênticas credenciais
para transitar do lado oposto do espaço. Para corrigir um erro,
que acredito ter sido produzido pela própria instituição,
vinte e dois alunos são separados numa minúscula classe
para desfrutarem de um trabalho supervisionado “especial”.
Para justificar o baixo rendimento desses alunos na escola, é comum
os professores sobreporem a limitação dos saberes escolares
a comportamentos e atitudes de familiares dos estudantes rechaçados
pelas coordenadas sociais de boa conduta. As limitações
dos saberes escolares apontadas pelos professores são morosidade
para realizar atividades, problemas de grafia e incapacidade de produzir
textos, ao passo que os comportamentos e atitudes apresentados como justificativas
das limitações são problemas de alcoolismo, prostituição,
espancamento e exploração de trabalho infantil.
Especificamente para este trabalho, é utilizada, como estratégia
para coleta de dados de pesquisa, uma atividade proposta pela professora
de língua portuguesa do ano letivo anterior ao que foi realizada
a coleta do corpus, uma vez que as atividades realizadas no momento anterior
e durante a intervenção são comparadas nesta investigação.
A atividade foi reproduzida do caderno da turma arquivado na escola, sendo
essa prática ainda utilizada durante as aulas por professores e
alunos para registrar as atividades propostas.
Diferentes versões de um texto do gênero notícia produzido
por um aluno (GC) durante a intervenção realizada na escola
e a transcrição de um momento da interação
entre o pesquisador (P) e o aluno produtor da notícia, durante
a atividade de reescrita do texto desse gênero, também são
utilizadas como corpus para a investigação realizada. A
atividade de reescrita foi realizada no laboratório de informática
da escola, portanto o computador foi utilizado como uma ferramenta auxiliar
na atividade.
O texto do discente utilizado na análise foi selecionado devido
ao registro da gravação da interação entre
o pesquisador e o aluno. A gravação aconteceu de forma espontânea,
pois o gravador para registrar a aula foi posicionado ao lado do computador
em que o aluno estava reescrevendo o texto. Apenas durante a interação,
o pesquisador percebeu o fato, levando-o a tomar as devidas precauções
para registrar todo o processo.
O aluno envolvido na pesquisa estuda desde a primeira série na
escola em que foi coletado o corpus e não possui repetência
alguma no histórico escolar. Ele é caracterizado pelos professores
como um dos melhores alunos da turma. No ano letivo anterior, também
fez parte de uma 5ª série do Projeto ABC, turma em que foi
proposta a atividade supramencionada que também foi selecionada
como corpus para este trabalho. Nascido na cidade de Campinas, o aluno
é o filho mais novo de um casal com quatro filhos, sendo as idades
31, 28, 21 e 12 anos. Durante a intervenção, o aluno residia
num bairro na mesma região em que a escola está localizada;
o pai do aluno, sempre caracterizado como alcoólatra pelos educadores,
encontrava-se desempregado, enquanto que a mãe vendia uma bebida
láctea denominada Yakult.
2. Processo
de desenvolvimento e aprendizagem segundo Vigotski
O aspecto de interesse da psicologia que distingue os humanos das demais
espécies animais, segundo os postulados teóricos vigotskianos,
são os denominados processos ou operações elementares
e superiores. Os primeiros dispensam o planejamento, caracterizam-se por
ações reflexas ou reações automatizadas, sendo
comuns às espécies animais, ao passo que os segundos são
identificadores da espécie humana, uma vez que são caracterizados
pelo planejamento, controle e liberdade do indivíduo para agir
em sociedade.
Esses processos superiores são complexificados ao longo da vida
do homem por intermédio do uso de signos e instrumentos, os quais,
em termos vigotskianos, são concebidos como elementos mediadores.
Para essa linha teórica, os estímulos não motivam
uma resposta direta, mas elementos mediadores emergem como mecanismos
intermediários em situações que exigem resolução
de problemas. Os processos superiores ou avançados, nas palavras
de Baquero (2001, p. 90), são constituídos pelo caráter
crescentemente descontextualizado dos instrumentos de mediação
envolvidos em sua formação e pelo domínio com maior
grau de consciência e vontade das próprias operações
intelectuais.
Os signos são compreendidos como elementos portadores de conteúdo
semântico, daí a função de nomear ou classificar
desempenhada por eles. Os instrumentos, por sua vez, são espécies
de ferramentas que auxiliam na ação humana sobre o espaço
social. Nas palavras de Oliveira (1997, p. 30), os instrumentos são
elementos externos ao indivíduo, voltados para fora dele; sua função
é provocar mudanças nos objetos, controlar processos naturais.
Os signos, segundo a autora, são orientados para o próprio
sujeito, para dentro do indivíduo; dirigem-se ao controle de ações
psicológicas, seja do próprio indivíduo, seja de
outras pessoas. Os signos são denominados de instrumentos psicológicos
por Vigotski (2001a), uma vez que auxiliam na organização
e planejamento do pensamento.
Caracterizada como um sistema de signos historicamente e culturalmente
determinado, a escrita é um dos principais instrumentos de mediação
na sociedade letrada. Na abordagem maxista proposta por Bakhtin (2002),
no campo da filosofia da linguagem, a palavra escrita ou falada possui
uma natureza ideológica, permitindo a indexação de
valores e conflitos sociais na estrutura lingüística. Através
do uso da língua nas interações sociais, o indivíduo
age sobre o interlocutor, sofre transformações motivadas
pela presença do outro e transforma a própria língua
utilizada como elemento de mediação nas situações
de comunicação. Em síntese, aquilo que torna o signo
ideológico vivo e dinâmico faz dele um instrumento de refração
e de deformação do ser (Bakhtin, 2002, p. 49)
As ações e retroações motivadas pelo uso de
signos em atividades de comunicação remetem à função
do professor na interação em sala de aula. A interação
instaurada evidencia a relação construída entre o
professor e os alunos, provocando algum efeito na aprendizagem e desenvolvimento
desses últimos, não significando que os professores saiam
ilesos da situação. As estratégias de mediação,
refletidas em atividades didáticas e na fala do professor, podem
ser configuradas como desafios que se adiantam ao conhecimento possuído
pelos alunos, desencadeando a aprendizagem. As interações
entre os próprios alunos em sala de aula também são
situações motivadoras da aprendizagem e do desenvolvimento.
A ênfase na compreensão da aprendizagem como resultado do
contato do homem com seus semelhantes num espaço construído
sócio-historicamente é um dos aspectos centrais de identificação
desta proposta teórica designada como sócio-interacionismo.
Na interação social, ocorrem os processos denominados intersubjetivos,
responsáveis pela aprendizagem. Os adultos ou pessoas mais experientes,
utilizando-se de signos ou instrumentos, fazem a atividade de mediação
responsável pela interiorização de conceitos ou práticas.
Tal aprendizagem, iniciada na coletividade, tem continuidade na mente
do indivíduo, configurando o processo denominado de intrasubjetivo.
Em sala de aula, o trabalho de mediação do professor deveria
funcionar desta forma, pois, após exposições, conversas
e discussões, espera-se que os alunos internalizem o conteúdo
trabalhado, garantindo-lhes autonomia.
Para ilustrar esses processos, retomo a explanação sobre
a transição dos operações elementares para
as superiores ou avançadas, propostas por Vigotski (2001a). De
acordo com o autor, a exposição da criança a falas
sociais, originárias de diálogos com atores mais experientes,
possibilita o desenvolvimento da chamada fala egocêntrica, que corresponde
a enunciados oralizados cuja função é orientar a
ação executada pela criança. Ou seja, as ações
são oralizadas à medida que são executadas. Num estágio
mais avançado, essa fala egocêntrica é internalizada,
daí o termo fala interior. Responsável pelo planejamento
da ação e controle do comportamento, a fala interior possibilita
o envolvimento da criança em atividades complexas.
Nesta breve revisão dos fundamentos teóricos vigotskianos,
destaco não apenas o processo de aprendizagem e desenvolvimento
da linguagem no homem, mas também o fato da linguagem exercer um
papel sine qua non na aprendizagem e desenvolvimento de qualquer habilidade
constitutiva da atividade social humana. Para Vigotski, a linguagem desempenha
a função de comunicação e de generalização.
A primeira é responsável pela interação entre
os falantes nas diversas situações de comunicação,
ao passo que a segunda é responsável pelas atividades de
classificação e categorização (Baquero, 2001,
p. 50; Oliveira, 1997, p. 42). No bojo dessas concepções,
encontra-se a noção de linguagem como atividade ou forma
de ação na sociedade.
A própria acepção vigotskiana de signo lingüístico
exemplifica o dinamismo da linguagem, pois, além de ser utilizado
como instrumento de mediação durante a comunicação,
o signo sofre transformações, daí as noções
de significado e sentido propostas na teoria. Ao discutir tais noções,
Oliveira (1997, p. 50) afirma que o primeiro consiste no núcleo
relativamente estável de compreensão da palavra, compartilhado
por todas as pessoas que a utilizam. O segundo, por sua vez, refere-se
ao significado da palavra para cada indivíduo, composto por relações
que dizem respeito ao contexto de uso da palavra e às vivências
afetivas do indivíduo. Esse último é uma evidência
da instabilidade constitutiva da linguagem, uma vez que os falantes transformam
a língua durante o uso, dando-lhe a cada instante um novo sopro
de vida, uma nova carga ideológica, conforme Bakhtin (2002).
Para o sócio-interacionismo, a aprendizagem e o desenvolvimento
não são processos totalmente independentes, nem podem ser
concebidos como intrinsecamente dependentes, uma vez que se corre o risco
de cair num velho problema pedagógico, o da disciplina formal,
que condiciona o desenvolvimento da criança à aprendizagem
dos conteúdos disciplinares. Apesar de afirmar que a aprendizagem
não é desenvolvimento, Vigotski (2003; 2001b) afirma que
este último processo sucede o primeiro. Nas palavras do autor,
a aprendizagem é um momento intrinsecamente necessário e
universal para que se desenvolvam na criança características
humanas não-naturais, mas formadas historicamente (Vigotski, 2003,
p. 115). Um outro argumento contrário ao problema da disciplina
formal, podendo ser de grande proveito para o trabalho escolar, é
o fato de que o aprendizado das crianças começa muito antes
de elas freqüentarem a escola. Ainda utilizando as palavras do autor,
destaco que qualquer situação de aprendizado com a qual
a criança se defronta na escola tem sempre uma história
prévia (Vigotski, 2003:110), o que precisa ser considerado pelo
professor no processo de ensino, daí a importância do constante
diagnóstico para observar habilidades possuídas pelo aprendiz
e para planejar novos conhecimentos a serem assimilados.
O trabalho escolar, orientado por duas noções de níveis
de desenvolvimento, propostas por Vigotski (2003; 2001b), pode ser bastante
proveitoso, pois permitem a otimização do desenvolvimento
do discente. O primeiro é denominado de nível de desenvolvimento
real ou efetivo. Nomeia as funções que já amadureceram,
que são produtos finais do desenvolvimento do indivíduo.
O segundo é denominado de nível de desenvolvimento potencial.
Nomeia as funções passíveis de serem exercidas pelos
indivíduos com a ajuda de pessoas mais experientes. A autonomização
do indivíduo para desempenhar as funções ainda não
amadurecidas ocorre por via da imitação, que, na interpretação
de Oliveira (1997, p. 63), não é mera cópia de um
modelo, mas reconstrução individual daquilo que é
observado nos outros. A distância entre o nível de desenvolvimento
real e o nível de desenvolvimento potencial do sujeito é
denominada por Vigotski (2003, p. 112; 2001b, p. 112) de área ou
zona de desenvolvimento proximal – ZDP. O professor precisa atuar
nessa área para que a aprendizagem e o desenvolvimento de fato
ocorram.
Dado o interesse da investigação realizada neste texto e
o uso de argumentos relacionados a fatores biológicos e sociais
para justificar a inexistência de aprendizagem de alunos caracterizados
como fracassados pela escola, destaco o risco que incorrem os docentes
de não realizarem um trabalho na área de desenvolvimento
proximal do aprendiz, mas subjugarem o nível de desenvolvimento
real do discente, o que resulta num percurso contrário ao que o
trabalho diferencial é proposto. O próprio fato de separar
os piores alunos numa mesma turma, configurando uma espécie de
homogeneização, pode prejudicar a aprendizagem, pois, juntos
aos demais alunos, situações desafiadores mais diversificadas
surgiriam na interação, podendo impulsionar o desenvolvimento.
Em situações desse tipo, a afirmação de Vigotski
(2003, p. 117) de que o bom aprendizado é somente aquele que se
adianta ao desenvolvimento precisa ser constantemente lembrada.
Apresentados os conceitos centrais da abordagem sócio-interacionista
e pensando nas possíveis contribuições do ensino
de língua materna para o desenvolvimento do aluno, evitando a exclusão
escolar, chamo a atenção para o trabalho de mediação
realizado em sala de aula. Em aulas de língua portuguesa, as atividades
escolares propostas deveriam servir como bons modelos do uso adequado
da língua escrita ou falada em diferentes situações
sociais da vida cotidiana.
3. Gênero
discursivo como objeto de ensino e instrumento semiótico
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa
(PCN, 1998), diretrizes curriculares vigentes para o ensino de língua
materna no Brasil, orientam técnicos e professores para revisão
e elaboração de propostas didáticas que possibilitem
o uso da língua escrita e falada em diferentes situações
sociais dentro e fora da escola. No documento, é proposta uma formação
que possa ir além do que é identificado como modelo tradicional
de alfabetização, compreendido por atividades simples e
mecânicas com a escrita, características do espaço
escolar. Nesse sentido, é orientada a proposição
de atividades com a escrita verdadeira , a qual possibilita a inserção
dos alunos em práticas sociais de uso da escrita enquanto tecnologia
e sistema simbólico, configurando-se como práticas factuais
de letramento (Kleiman, 2001, p. 19)
Em resposta à necessidade de inserção dos alunos
em práticas de letramento, os PCN (1998, p. 20) apresentam o texto
como unidade de análise e o gênero discursivo como objeto
de ensino. A assunção dessas categorias é justificada
pela adequação do enunciado produzido ao gênero, uma
vez que, como afirma Bakhtin (2000, p. 301), todos os enunciados dispõem
de uma forma padrão e relativamente estável de estruturação
de um todo, os gêneros do discurso. Quaisquer enunciados, falados
ou escritos, produzidos na cadeia da interação verbal, são
textos que se moldam aos gêneros, os quais, por sua vez, são
espécies de modelos semióticos construídos cooperativamente
pelos usuários da língua nas atividades de interação.
Neste trabalho, uma das teses defendidas é que os gêneros
são instrumentos facilitadores dos denominados processos ou operações
mentais superiores propostos nos postulados vigotskianos.
Os gêneros discursivos, segundo Bakhtin (2000, p. 280), são
compostos por unidade temática, estilo, construção
composicional e funcionalidade, estando todos esses elementos intrinsecamente
relacionados e determinados por enunciados passados e futuros. A unidade
temática corresponde ao assunto abordado na materialidade lingüística;
o estilo pode ser lingüístico ou individual, estando o primeiro
relacionado às escolhas lingüísticas identificadores
do gênero, enquanto o segundo corresponde aos usos lingüísticos
identificadores do produtor. Diferentemente do estilo, atrelado ao nível
microtextual do gênero, a construção composicional
define a organização da macro estrutura textual do gênero,
organização de parágrafos e partes. A funcionalidade
designa a utilidade ou objetivo proporcionado pela escolha do gênero
discursivo.
O texto é uma estrutura lingüística gramaticalmente
articulada que possui uma unidade significativa. A articulação
gramatical dos elementos lingüísticos no texto é responsável
pela coesão textual, também contribuindo para a construção
do sentido produzido na interação entre a materialidade
lingüística e o leitor, o qual aciona diversos conhecimentos
adquiridos na história de vida, durante o momento da leitura. A
coesão textual, atrelada à organização de
informações no enunciado, corrobora a coerência textual,
unidade de sentido expressa. A existência de textos está
condicionada à incorporação de gêneros discursivos
(Koch, 2002).
A apropriação de diferentes gêneros discursivos como
habilidade de uso da língua falada e escrita pelo homem, em situações
diversas de comunicação, está subjacente à
proposta curricular para o letramento, o que é bastante coerente,
haja vista que os gêneros são modelos de contextos culturais
orientadores da ação do homem no espaço social (Martin,
1997). Esses modelos funcionam como signos, pois representam situações
de produção textual resultantes de uma elaboração
histórica constante que ocorre pelo uso da própria linguagem.
A instabilidade constitutiva dos gêneros discursivos é um
aspecto destacado, pois eles sofrem transformações para
atender às necessidades de interação cada vez mais
complexa da sociedade letrada.
Considerando a abordagem pedagógica para o letramento do aluno,
os gêneros discursivos são concebidos como instrumentos semióticos
(Schneuwly & Dolz, 2004), pois podem ser utilizados como elementos
de mediação entre o sujeito e a situação de
comunicação. Adequando as produções textuais
faladas e escritas a esses instrumentos semióticos, configuradores
das situações de comunicação, o aprendiz pode
tomar parte das efetivas práticas de letramento. Nessa perspectiva,
concordo com Baquero (2001, p. 38) ao afirmar que os instrumentos semióticos
parecem estar orientados principalmente para o mundo social, para os outros.
A linguagem, como exemplo de um dos instrumentos semióticos mais
versáteis e desenvolvidos, reúne a potencialidade de poder
ser dirigido e utilizado com funções e características
diversas.
Esse novo encaminhamento dado às aulas de língua materna
pode ser esclarecido por Schneuwly & Dolz (2004, p. 75), pois consideram
os gêneros discursivos como megainstrumentos que fornecem um suporte
para a atividade, nas situações de comunicação,
e uma referência para os aprendizes. Dada a natureza do espaço
escolar, as atividades de ensino podem simplificar a essência da
proposta do trabalho com gêneros, que, como foi ressaltada, é
aproximar as atividades escolares das práticas efetivas de uso
da tecnologia da escrita no cotidiano. A esse respeito, destaco três
desdobramentos, mencionados por Schneuwly & Dolz (2004, p. 76), que
ocorrem no trabalho com gêneros na escola, uma vez que esses instrumentos
semióticos, além de serem utilizados para comunicação,
também são utilizados como objeto de ensino e aprendizagem:
desaparecimento da comunicação; escola como lugar da comunicação;
negação da escola como lugar da comunicação.
O primeiro desdobramento corresponde à prática em que são
produzidos gêneros tipicamente escolares, como a narração
e a dissertação, além do trabalho com os textos clássicos
da literatura. Nessa prática, a noção de gênero
é achatada e, de fato, o trabalho é realizado unicamente
com o texto, sempre visando à avaliação das capacidades
do aluno. O segundo desdobramento é caracterizado pela transformação
da situação de comunicação na sala de aula
num espaço de geração de gêneros. A produção
desses instrumentos não é enfocada como objeto de ensino,
mas procura-se criar necessidades de produção de gêneros
para circular na escola. O terceiro desdobramento corresponde à
prática em que os gêneros são trabalhados tais quais
são encontrados fora da escola. Situações de circulação
de gêneros na vida cotidiana são reproduzidas na escola,
como se não houvesse desdobramento algum. As práticas subjacentes
a esses diferentes desdobramentos não são excludentes, são
complementares.
4. Análise
dos dados: subvertendo a exclusão
Antes de analisar a atividade fundamentada na noção de gênero
discursivo desenvolvida na 6ª série E, chamo a atenção
para as atividades desenvolvidas com a mesma turma de projeto no ano anterior.
Seguindo a orientação da coordenação para
o primeiro bimestre, os professores trabalharam os conteúdos disciplinares
em torno do assunto tematizado numa reportagem do jornal da cidade, que
noticiava a morte de uma anta por ter ingerido um saco plástico
deixado no local por visitantes do bosque do município.
Reproduzo abaixo uma atividade representativa do trabalho desenvolvido
pela professora de língua portuguesa com os alunos da turma em
que foi realizada a intervenção. Na ocasião, eles
estavam na 5ª série projeto. Eis a atividade reproduzida do
caderno piloto arquivado na escola:
Figura 1

A observação
da atividade permite caracterizá-la como autenticamente escolar,
uma vez que a comunicação desaparece completamente numa
situação de sala de aula em que as questões sejam
propostas. A primeira questão está restrita a uma simples
atividade de recorte e colagem, pois, se o objetivo for trabalhar compreensão
textual, pouco acrescenta ao aluno. Em resposta à questão,
foi colada a figura da capa de uma revista com um lobo do gelo. Tirando
o fato de um animal estar presente na capa da revista, a figura pouco
está relacionada ao bosque da reportagem, haja vista que o lobo
do gelo não é característico de regiões tropicais,
como o Brasil, e a figura não tematiza o inadequado comportamento
humano praticado. A segunda questão parece ser bastante confusa,
pois não está claro qual é ordem solicitada, nem
tampouco quais os nomes das figuras. Na figura colada pelo aluno, por
exemplo, não há identificação, restando a
dúvida se o aluno teria que nomear ou se teria que encontrar figuras
com títulos. A terceira questão, que, de fato, poderia levar
o aluno a produzir algo, está limitada à produção
de frases sem funcionalidade alguma. Dificilmente se afirma O lobo vive
no gelo fora de um contexto cultural de comunicação específico.
Observada a primeira atividade, resta perguntar em que essa atividade
poderia contribuir para a aprendizagem e desenvolvimento dos alunos do
denominado Projeto ABC. A atividade estaria realmente proporcionando uma
aprendizagem que se adiantasse ao desenvolvimento do aluno? Como colaborar
para a subversão da exclusão com tal atividade? Nenhuma
das questões propostas como exercício possibilita um trabalho
orientado pela noção de gênero discursivo, não
há situação de comunicação como modelo
a ser imitado pelos alunos, afinal, desconsiderando o texto sobre a anta
tomado como ponto de partida para o exercício, o trabalho limita-se
ao nível da frase.
É difícil admitir, mas a atividade reproduzida pode ter
sido bastante útil para manter os alunos ocupados e gastar todo
o tempo da aula, ainda que os estudantes se aborreçam com a falta
de propósito do exercício. Por outro lado, temo que atividades
desse tipo sejam a última carta tirada da manga de professores
inconformados por não poderem ensinar gramática, conteúdo
disciplinar que lhes proporcionava segurança e dava razão
às aulas de língua portuguesa (Silva, 2004). Nesse sentido,
reitero a importância do diálogo entre as escolas e as universidades
para subverter a exclusão provocada.
Analisada uma atividade representativa do trabalho realizado na turma
de projeto antes da intervenção feita, investigo as possíveis
contribuições das atividades orientadas pela noção
de gênero do discurso para a aprendizagem e desenvolvimento dos
discentes. O texto do gênero notícia foi produzido por GC
para ser publicado no jornal intitulado Jornal 6ª E, que foi criado
durante a intervenção realizada. Dito isso, a escola passou
a ser o lugar da comunicação, pois foram criadas necessidades
de escrita, levando os alunos a produzirem textos de diferentes gêneros
para circularem na instituição e na família. Inserindo
os alunos nessas práticas, procurou-se dar-lhes maior autonomia
para usar a língua escrita e falada em situações
específicas.
Antes da solicitação da produção da notícia,
foram desenvolvidas diversas atividades de interpretação
de diferentes textos de rótulos, dando ênfase à funcionalidade
das informações contidas no gênero. Uma entrevista
sobre o hábito de leitura de rótulos, elaborada pelos alunos
e realizada com os pais, foi uma outra atividade que forneceu informações
para os alunos produzirem a notícia. Após realizarem a entrevista,
as respostas foram analisadas em sala de aula e produzidos gráficos
com a cooperação da professora de matemática. No
momento anterior à produção das notícias,
foi realizada uma atividade de leitura com uma notícia sobre rótulos
retirada do site do Jornal Nacional, da Rede Globo de televisão,
servindo como modelo para o texto a ser escrito .
A primeira versão elaborada por GC está reproduzida adiante.
Saliento que, para correção da primeira versão, a
professora e o pesquisador procuraram fazer um bilhete com orientações
para revisão de aspectos macrotextuais, compreendendo título
e distribuição de informações em parágrafos.
No entanto, por motivo não registrado, não foi produzido
bilhete para o texto desse aluno, mas as orientações foram
dadas durante a reescrita do texto no computador, momento em que, como
é passível de observação adiante, além
de realizar correções propostas por P, o aluno realizou
reformulações espontâneas. Eis abaixo a primeira versão
da notícia produzida:
Figura 2

A notícia
reproduzida possui alguns problemas na macro e na micro estrutura textual,
os quais foram solucionados através de diferentes mediações.
Ressalto que muitos dos problemas só emergiram devido ao desembaraço
de GC para escrever, haja vista que esse foi o texto mais longo da turma.
Além da mediação realizada pela professora e pesquisador,
o computador desempenhou uma importante função enquanto
instrumento mediador para resolução de problemas na macro
e na micro estrutura da notícia, com destaque para a primeira.
Como foi perceptível na ocasião, o uso dessa maquina motiva
os alunos para realizar as atividades propostas.
O problema da paragrafação foi solucionado pelo próprio
aluno, haja vista que a primeira versão possui um parágrafo
bastante curto que não caracteriza suficientemente os entrevistados
da pesquisa, enquanto que o parágrafo seguinte apresenta as perguntas
e respostas da entrevista realizada sem uma organização
mínima. Acredito que a visualização do texto na tela
do computador tenha permitido a autonomia do aprendiz para solucionar
tais questões. A observação da versão final
da notícia, reproduzida adiante, facilita a percepção
das modificações. O primeiro parágrafo foi reorganizado
e o segundo foi dividido em vários parágrafos, facilitando
a leitura do texto publicado posteriormente no Jornal 6ª E. Eis a
versão final da notícia:
Figura 3

Acréscimo
e supressão de passagens textuais também foram realizadas
com o uso do computador enquanto instrumento de mediação.
No primeiro parágrafo da versão final, por exemplo, o aluno
acrescentou uma informação sobre os demais bairros onde
reside a minoria dos entrevistados (Uma pequena parte ficou dividida entre
os bairros de Jardim Aeroporto, Dic III, Rosalina, Vista Alegre, todos
da região Ouro Verde de Campinas). Uma supressão realizada
pelo discente corresponde às últimas pergunta e resposta
explicitadas no final da segunda coluna da notícia no jornal (Você
avalia a validade antes de comprar o produto? Todos responderam que sim).
Na décima linha da primeira versão, estava escrito: você
avalia a validade a maioria respondeu que sim e quase ninguém respondeu
que não. E então fizemos outra pergunta. O produto pode
estar vencido a maioria respondeu que sim ninguém respondeu que
não. Observa-se que, além de suprimir parte do texto, o
aluno complementa a pergunta com a expressão antes de comprar o
produto.
O título posto na versão final da notícia (Alunos
da 6ª E realizam entrevista para saber sobre o hábito de leitura
dos consumidores) foi produzido pela professora do aluno no momento da
edição do jornal. Durante a reescrita, o aluno foi chamado
a atenção sobre o título atribuído ao texto
(Texto sobre a pesquisa), porém não conseguiu modificá-lo,
o que é justificado pela falta de orientação específica
para o propósito. Na realidade, o título da versão
final prepara o leitor para ler a notícia, do contrário,
ficaria a leitura bastante prejudicada sem o título atribuído.
Analisados os aspectos gerais referentes ao trabalho de mediação
realizado, passo a investigar um pequeno momento representativo da interação
entre o pesquisador (P) e o aluno (GC) referente à correção
de aspectos da micro estrutura textual do gênero. Acontecendo através
do uso da língua enquanto instrumento de mediação,
a interação objetiva modelar a notícia como instrumento
semiótico para utilização pelos alunos em futuras
situações de comunicação. Essa atividade de
mediação ocorre por meio do que é denominado atividades
epilingüísticas, nos estudos da linguagem. Essas atividades
são compreendidas como práticas que operam sobre a própria
linguagem, compara as expressões, transforma-as, experimenta novos
modos de construção canônicos ou não, brinca
com a linguagem, investe as formas lingüísticas de novos significados
(Franchi, 1987, p. 41). Ressalto que as diretrizes curriculares brasileiras
orientam que o ensino de gramática tradicional seja reconfigurado
pelas atividades epilingüísticas, as quais podem contribuir
para a aprendizagem e desenvolvimento do aluno (PCN, 1998, p. 48; Silva,
2003).
Apresento adiante um momento da interação que representa
de forma significativa o denominado processo intersubjetivo a que fez
referência Vigotski (2001a). Nesse momento da interação,
destaco as referências feitas pelo pesquisador a conteúdos
trabalhados em outros momentos que podem auxiliar o aprendiz a substituir
o conectivo e utilizado em excesso pelo discente. Eis a segunda parte
da interação:
Interação
1. P: Antes disso, vamos ver aqui, a maioria dos entrevistados da pesquisa
tem entre trinta e quinze anos de idade ...
2. GC: Cinqüenta ...
3. P: Cinqüenta, e trabalha no serviço doméstico e
eles moram no Dic ... Pra não repetir E, E...
4. GC: Dic III ...
5. P: Como que a gente faz?
6. GC: Pra não repetir?
7. P: Pra não repetir E, E, lembra que você disse que queria
aqui colocar um ponto antes do eles?
8. GC: Ahm ...
9. P: Lembra?
10. GC: Ahm ...
11. P: Quer dizer que pode corrigir aqui esse E, E trabalham, a maioria
tem entre trinta e cinqüenta anos de idade e trabalha no serviço
doméstico ... tira o E e coloca o quê?
12. GC: Coloca ... idade ...
13. P: Quando a gente, lembra aquele exercício que a gente fez
da pontuação? Quando vai citar várias coisas ...
14. GC: Quando vai citar, dois pontos ...
15. P: Quando vai citar, dois pontos, mas quando a gente está separando
vários elementos que foram citados?
16. GC: Ponto e vírgula ...
17. P: Ponto e vírgula é no caso daquelas instruções,
né?
18. GC: É ...
19. P: E dentro da instrução, numa frase?
20. GC: Vírgula ...
21. P: Vírgula, ahm ...
22. GC: Então tiro o E e coloco vírgula? ... tiro o E e
coloco vírgula ... ((modificando))
23. P: Ahm ... a maioria dos entrevistados da pesquisa tem, continua lendo
...
24. GC: Aonde que você parou? ...
25. P: Lê o início ...
26. GC: A maioria dos entrevistados da pesquisa tem entre trinta e cinqüenta
anos de idade, trabalha no serviço doméstico, vírgula,
tiro o E e coloco vírgula, eles moram, moram ...
27. P: É moram, aqui?
28. GC: É ...
29. P: Olha, a maioria tem, trabalha ...
30. GC: Mora, tira o M ...
31. P: Tira o M ...
32. GC: Pode tirar o E e colocar vírgula ... ou está certo
assim?
33. P: Aí, você deixa o E porque é a última
coisa que você vai citar, não é? A maioria dos entrevistados
tem entre trinta e cinqüenta anos de idade, trabalha no serviço
doméstico e ...
As estratégias
utilizadas para levar o aluno a solucionar o excesso do conector e são
leitura de passagens textuais problemáticas e questionamento do
aluno quanto a uma possível solução para a inadequação
identificada, como se pode observar nas falas 3 (Cinqüenta, e trabalha
no serviço doméstico e eles moram no Dic ... Pra não
repetir E, E...) e 11 enuncadas por P (Quer dizer que pode corrigir aqui
esse E, E trabalham, a maioria tem entre trinta e cinqüenta anos
de idade e trabalha no serviço doméstico ... tira o E e
coloca o quê?), quando P lê a passagem a ser reescrita e insiste
em fazer pergunta a GC. Motivado pelo pesquisador, o acionamento do conhecimento
interiorizado pelo aluno é algo a ser destacado nesse momento da
interação, pois o saber acionado possibilita a correção
do problema lingüístico.
As perguntas que retomam os usos de sinais de pontuação
estudados anteriormente a partir do gênero instrução
de uso pelos alunos caracterizam a interação como verdadeiras
atividades epilingüísticas. As questões levantadas
por P, como é perceptível na fala 13 (Quando a gente, lembra
aquele exercício que a gente fez da pontuação? Quando
vai citar várias coisas ...), parecem não serem suficientes
para possibilitar GC chegar a uma resposta correta, pois o aluno aciona
sinais de pontuação não adequados para substituir
o conectivo, como pode-se observar nas falas 14 (Quando vai citar, dois
pontos ...) e 16 (Ponto e vírgula ...). Apenas na terceira tentativa,
falas 19 a 22 (P: E dentro da instrução, numa frase? / GC:
Vírgula ... / P: Vírgula, ahm ... / GC: Então tiro
o E e coloco vírgula? ... tiro o E e coloco vírgula ...),
o aprendiz encontra a solução para o uso excessivo do conectivo.
Ainda no tocante à interação, destaco as falas 26
(A maioria dos entrevistados da pesquisa tem entre trinta e cinqüenta
anos de idade, trabalha no serviço doméstico, vírgula,
tiro o E e coloco vírgula, eles moram, moram ...) e 32 de GC (Pode
tirar o E e colocar vírgula ... ou está certo assim?), pois,
generalizando a orientação para o uso da vírgula,
o aluno iria empregá-la na única situação
em que o conector e permaneceria, última oração coordenada.
A generalização do emprego do conector é impedida
pela mediação do pesquisador, podendo ser observada na fala
33 (Aí, você deixa o E porque é a última coisa
que você vai citar, não é? A maioria dos entrevistados
tem entre trinta e cinqüenta anos de idade, trabalha no serviço
doméstico e ...).
Diferentemente da primeira atividade analisada neste texto, proposta por
uma professora de português para os alunos na 5ª série
projeto, a atividade produção textual realizada durante
a intervenção parece ter um objetivo claro. Os momentos
de escrita, visando a uma possível publicação no
jornal da turma, devolvem à escrita a função que
perdera nas aulas de língua materna, uma vez que as produções
textuais reencontram os leitores. A atividade de reescrita instaura o
verdadeiro diálogo entre alunos e professores, pois os enunciados
encontram interlocutores atentos.
A produção da notícia certamente possibilitou situações
de aprendizagem e desenvolvimento, pois a atividade criou situações
desafiadoras para o aluno, sem subestimar o conhecimento por ele possuído.
As observações realizadas pelo pesquisador parecem levar
o aluno a realizar esforços na denominada zona de desenvolvimento
proximal, uma vez que são realizadas procuras de novas versões
lingüísticas, as quais são encontradas durante a interação.
O gênero notícia pôde ser observado como megainstrumento,
pois, além de ter possibilitado o trabalho de leitura, produção
e análise lingüística, foi apresentado como instrumento
semiótico de referência para as práticas de uso da
escrita no mundo fora da escola.
Considerações
finais
A investigação realizada neste trabalho mostrou que a exclusão
dos alunos da 6ª série pode ser subvertida e que um forte
suporte teórico é necessário para preparar atividades
que possibilitem a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos. Os discentes
não são fracassados como afirmam os educadores da instituição,
mas, na realidade, o fracasso pode ser atribuído à própria
escola. Dado o exposto, as atividades nas aulas de língua materna
deveriam servir de modelo para o bom desempenho dos discentes em situações
de comunicação espontânea na sociedade, uma vez que,
quando a funcionalidade dessas atividades está restrita à
dinâmica da instituição escolar, os alunos podem realmente
fracassar na vida.
As atividades interativas parecem ser bastante importantes para a aprendizagem
e desenvolvimento do discente, pois, dialogando com professores e amigos
de turma, saberes possuídos são acionados, enquanto que
saberes novos são internalizados. Como mostra o momento da interação
analisado, o professor pode utilizar diferentes estratégias para
solucionar situações problemas com os alunos, como propor
perguntas e soluções alternativas ou insistir na leitura
de passagens textuais inadequadas para que o aluno perceba a inadequação
lingüística.
Acredito que o professor precisa aprender a refletir sobre a própria
prática docente, evitando justificar o baixo aprendizado do aluno
com adversidades por eles enfrentadas fora dos muros escolares. A escola
deve instrumentalizar os alunos para inseri-los em práticas sociais
de uso da língua falada e escrita, pois, assim fazendo, as redomas
erigidas estarão demolidas, restando-lhes uma caminhada desafiadora
em direção ao horizonte.
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