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UM
OLHAR SOBRE AS FICHAS DE LEITURA: UMA INTERPRETAÇÃO AUTORIZADA
?
Andréa Costa da Silva- Mestranda –
Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde / NUTES /
UFRJ
Nilma Gonçalves Lacerda - Núcleo de Tecnologia Educacional
para a Saúde / NUTES / UFRJ
Vera Helena Ferraz de Siqueira - Núcleo de Tecnologia Educacional
para a Saúde / NUTES / UFRJ
Um primeiro passo em nosso trabalho consiste em considerar
o livro como bem de leitura, e, mais que um bem material, um objeto que
carrega um caráter simbólico, a distingui-lo de outras produções
culturais. Encontro então as palavras que procuro:
A leitura não é um ato situado numa esfera
ideal da vida humana. É um trabalho, para o qual se deve mobilizar
capacidades que requerem, algumas delas, extremas sofisticações.
O processo de decodificação dos signos, ao pro-porcionar
o prazer semelhante àquele que se encontra no jogo, atrai o sujeito
a uma tarefa que pode habilitá-lo para o radical movimento da liberdade.1
Os textos produzem significados, e a leitura do texto
literário propicia o contato com o simbólico, a consciência
de que por meio das palavras a realidade se explica ou se reproduz. A
leitura exerce uma função ordenadora sobre a visão
de mundo do indiví-duo, em que pesem sua desordem e subjetividade
aparentes.
A interação estabelecida entre professor e aluno –
amplamente significativa e dis-cutida em vários âmbitos –,
permite ao docente o exercício de uma função mediadora,
presente na quase totalidade dos atos pedagógicos. Segundo Thompson,
ao descrever os tipos de interação criados e usados pelos
meios de comunicação:
Uma das características da interação
face a face é que os participantes nor-malmente empregam uma multiplicidade
de deixas simbólicas para transmitir mensagens e interpretar as
que cada um recebe do outro. As palavras podem vir acompanhadas de piscadelas
e gestos, franzimento de sobrancelhas e sorri-sos, mudanças de
entonação e assim por diante. Os participantes de uma inte-ração
face a face são constantemente e rotineiramente instados a comparar
as várias deixas simbólicas e a usá-las para reduzir
a ambigüidade e classificar a compreensão da mensagem.2
Ao falar, contar ou criticar os livros que lemos, estamos
realizando essa interação a que Thompson alude. Em contato
com nossos alunos, firmamos com eles um acordo tácito, uma cumplicidade,
e nos valemos da afetividade que aí circula, para seduzir e convencer.
Por vezes, essa interação é processada por outro
suporte: o suplemento de leitura. Foi sobre ele que detive o olhar, quando
realizei levantamento bibliográfico na Funda-ção
Nacional do Livro Infantil e Juvenil, no Rio de Janeiro (FNLIJ) –
seção brasileira do International Board on Books for Young
People (IBBY).
O chamado suplemento ou ficha de leitura, material produzido e anexado
aos li-vros, tem nítida pretensão didática e situa-se
no espaço de mediação que caberia ao pro-fessor.
Neste trabalho, apresentamos análise de pequena parte desse material,
que serve de mediação entre o contexto escolar e a esfera
da cultura, buscando observar que ele-mentos aí se manifestam,
a concepção de leitura em que investem, sendo uma de nossas
demandas verificar o respeito à subjetividade do leitor.
A pesquisa
é realizada no Laboratório de Linguagens e Mediações,
no Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte do projeto Representações
pelo cinema e literatura de temas seqüestrados: acomo-dações
e resistências inseridas em Mídia, saúde e gênero
(apoio projeto Universal do CNPq), que visa investigar as representações
das categorias saúde, gênero e sexualidade em diferentes
suportes textuais e sua apropriação em contextos de educação
formal e não-formal.
Ao levantar
títulos relacionados à gravidez na adolescência, fica
nítida a suprema-cia da chamada “literatura de entretenimento”
– conceito abordado adiante – e também dos livros informativos
sobre o tema, em detrimento de títulos literários. Foram
relacio-nados, inicialmente, vinte e quatro títulos relacionados
à questão da sexualidade e gêne-ro. Após a
primeira filtragem, em que retiramos os que não estavam diretamente
ligados à temática da gravidez, restaram dezessete títulos,
dos quais dez livros de ficção. Nesse universo, seis apresentaram
“material de apoio” ao professor.
Material
de apoio ao professor
Vale fazermos
uma pequena reflexão das práticas de leitura na escola.
E para isso cabe compreender o sentido de leitura aí praticado,
as concepções de leitura que se evi-denciam, de forma geral,
no fazer dos docentes, questionando se a promoção de leitura
na escola é usada como forma de resgate das experiências
do mundo do aluno, para a formação do leitor crítico
– tal como faz Bartolomeu Campos de Queirós em relação
àquele que foi seu primeiro livro.
Em Por parte de pai, Bartolomeu Campos Queirós nos diz: “Enquanto
ele escre-via, eu inventava histórias sobre cada pedaço
de parede. A casa do meu avô foi o meu primeiro livro”3. Ao
saudoso avô, ele faz referências quando relembra a casa, bordada
de escritos por toda a parede, e a decisiva significação
deles em sua vida.
Quanto à infância, aqueles saudosos dias de ingenuidade infantil,
quando rechea-dos por deliciosas e belas narrativas, tornam a tenra idade
uma passagem, além de pra-zerosa, um referencial para toda a vida.
Em cada história de leitor, caberá um capítulo ou
página referente à obra ou pessoa que o encaminhou pelas
estradas por vezes tortuo-sas da leitura. Triste é quando dessas
lembranças só restam notas de rodapé, ou recortes
amassados de um passado por vezes nem tão distante.
O cânone escolar, de maneira por vezes equivocada, diz o que se
deve ler, e a a-propriação do texto escrito acaba controlada
pela escola e pelos materiais propostos como suporte para a mediação
do professor, e produzidos freqüentemente de maneira dissonante da
própria intencionalidade autoral.
Chartier, ao ser perguntado sobre o discurso segundo o qual as classes
mais jovens afastam-se da leitura, responde:
Sim, concordamos
implicitamente sobre o que deve ser leitura. Aqueles que são considerados
não-leitores lêem, mas coisa diferente daquilo que o cânone
escolar define como uma leitura legítima. O problema não
é tanto o de consi-derar como não-leituras estas leituras
selvagens que se ligam a objetos escritos de fraca legitimidade cultural,
mas é o de tentar apropriar-se sobre essas práti-cas incontroladas
e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola mas também
sem dúvida por múltiplas vias, a encontrar outras leituras.
É preciso utilizar aquilo que a norma escolar rejeita como um suporte,
para dar acesso à leitura na sua plenitude, isto é, ao encontro
de textos densos e mais capazes de transformar a visão do mundo,
as maneiras de sentir e pensar.4
A visão
do teórico investe na significação da literatura
na construção da subjetivi-dade, e permite que se reconheça
a importância e a urgência do desenvolvimento de propostas
de escolarização da leitura mais adequadas do que aquelas
que, de maneira geral, vigoram atualmente. O texto acima levanta a importância
– para a formação do leitor – da chamada literatura
de entretenimento, isto é, a literatura produzida pelo escri-tor
profissional, em atenção à demanda do mercado, que
se caracteriza por um gosto mediano, sem problematização
conceitual, de baixa ou nenhuma voltagem estética, di-recionada
à diversão e à instrumentalização.
Se um panorama da literatura para crianças e jovens pode ser traçado,
Elizabeth Serra nos diz:
Acreditamos
que o livro para crianças e jovens como produto cultural não
po-de deixar de refletir a sociedade em que está inserido, com
suas contradições e influências. Ao mesmo tempo que
serve aos interesses do mercado, o livro, quando é resultado de
criação artística, ou quando trata de informação
científi-ca de maneira criteriosa, sem estereótipos ou sem
preconceitos, transforma-se em um importante instrumento de formação
intelectual e afetiva de nossas cri-anças, na direção
de uma educação libertadora.5
Essa educação
libertadora, que encontra na literatura seu aliado fiel, só aí
pode se realizar. A leitura que se constrói na geração
de múltiplos significados, atendendo a ideais, sentimentos e questionamentos
humanos, por vezes seculares, mas também tão atuais, vem
da obra de arte que sobrevive para além dos modismos do consumo
de mas-sa.
O grande perigo é quando a literatura está posta a serviço
da escola, que lança mão dos famosos “procedimentos
pedagógicos” para massificar, deturpar e corromper a obra
literária, que passa, então, a vestir um caráter
uníssono, de mansidão, em que o leitor e sua apropriação
acontecem na direção contrária ao que constata de
Certeau:
Este (o leitor) não toma nem o lugar do autor nem um lugar de autor.
Inventa nos textos outra coisa que não aquilo que era a ‘intenção’
deles. Destaca-os de sua origem (perdida ou acessória). Combina
os seus fragmentos e cria algo não-sabido no espaço organizado
por sua capacidade de permitir uma plurali-dade indefinida de significações.6
É
em de Certeau ainda que podemos encontrar referência à categoria
de pessoas “autorizadas” a utilizar o texto:
A leitura
fica de certo modo obliterada por uma relação de forças
(entre mes-tres e alunos, ou entre produtores e consumidores), das quais
ela se torna ins-trumento. A utilização do livro por pessoas
privilegiadas o estabelece como um segredo do qual somente eles são
os verdadeiros “intérpretes”.7
Voltamos
à primeira demanda e ao motivo pelo qual iniciamos este trabalho:
a subjetividade do leitor é figura considerada no material de apoio
ao professor?
Nas obras pesquisadas, observa-se o investimento em atemorizar as leitoras
e os leitores quanto às conseqüências de uma gravidez
precoce. A narrativa costuma ser um fio de lágrimas, embora de
final feliz – um ajuste narrativo ao gosto do mercado. As personagens
femininas são as grandes sacrificadas, com perda de seus projetos
de vida, que passam a se ajustar à condição da maternidade.
A redução do conflito a uma trans-gressão e conseqüente
penalização ignora a problematização de uma
experiência tão determinante para o ser humano. Nesse contexto,
é completamente ignorada a perspec-tiva levantada pelo pensador
Georges Bataille de que “A literatura é comunicação
ou não é nada, pois das criações humanas ela
é a que acompanha o ser em sua radical ex-pressão de liberdade.”8
Na constituição das narrativas de temática tão
contemporânea, são ignorados, e mesmo negados, o lugar do
desejo, o espaço da sexualidade, a importância das questões
sociais, a presença e responsabilidade da mídia. O “material
de apoio ao professor” a-companha essa vertente, deixando de apontar
questionamentos e de alimentar-se de tro-cas intertextuais, para investir
na cobrança e no adestramento.
O formato das fichas, de maneira geral, corresponde a uma ou mais folhas
de pa-pel dobradas, encartadas no livro. Não costumam apresentar
ilustrações, a diagramação é muito
simples, as questões são abertas ou de múltipla escolha.
Há previsão de espaço para as respostas, o que caracteriza
o material como descartável, para um único uso do leitor.
A primeira “ficha de leitura” aqui analisada, é da
obra Sem olhar para trás, de Lannoy Dorin. Escolhida por ser a
obra mais antiga encontrada, com registro de entrada na Fundação
em 1984, a ficha propõe como exercício uma análise
interpretativa dos personagens, enredo e tema. As questões são
objetivas e, como se observa no exemplo abaixo, as opções
são limitadas:
Aponte o
tema desta história
– A perdição por amor
– A força da amizade
– Triste passado
– A libertação através da maternidade
Difícil
escolher um tema que não esteja pré-determinado pela ficha,
em que não há qualquer espaço para discussão,
ou abertura para que as atitudes da protagonista sejam levantadas ou contextualizadas.
A segunda ficha que analisamos, do livro E agora, mãe?, de Isabel
Vieira, apre-senta um caráter estritamente ligado à interpretação
da história, como a análise dos fa-tos, dos personagens,
por meio de perguntas e o espaço pontilhado para as respostas.
Para a discussão, a ficha, através da voz do médico,
traz um fragmento narrativo alusivo às práticas médicas
do aborto: “A natureza precisa de certos peixes e aves de status
du-vidoso, a sociedade precisa do médico que faz esta prática
da Medicina”. A discussão solicitada revela o caráter
preconceituoso e condutor do assunto em direção à
moral vigente, fechando os sentidos em uma dada direção,
não deixando abertura para discus-são de tema tão
polêmico. Observe-se ainda nessa ficha:
“SUGESTÃO
PARA REDAÇÃO”
Refletindo sobre a vida de Jana ou de alguém que você conhece
e que passou por problemas semelhantes, faça uma redação
defendendo ou não o “Direito de escolha da mulher”.
Embora abra uma perspectiva dialógica, o imperativo “Faça
uma redação defen-dendo ou não” evidencia o
controle da produção de sentido, abrindo forte brecha para
direcionar a interpretação no sentido do conservadorismo.
Como terceira amostra, escolhi o livro Se ele vier... de Janaína
Vieira. A obra foi editada em 2001, mas sua ficha não apresenta
um caráter diferente daquele presente nas fichas anteriores. Apresentando
novamente exercício de análise, dessa vez de caracterís-ticas
físicas do espaço e dos personagens, não há
muito espaço para a análise do tema da gravidez precoce.
Uma das questões apresentadas ressalta a intenção
do autor sobre destinar a obra “para todas as jovens que conhecem
ou já conheceram as dificuldades da gravidez na adolescência”.
A gravidez precoce aparece como um problema a ser solu-cionado, caracterizada
como uma verdadeira “epidemia” dos tempos atuais, que deve
ser detida. Embora esta afirmação apareça no cabeçalho
da ficha, a pergunta feita não diz respeito a ela, mas à
percepção das personagens sobre a gravidez. Nesta ficha,
o aborto é contemplado como um questionamento maior, ao ser contextualizado
na obra, por meio de duas personagens com posições antagônicas:
uma, mantendo a gravidez, e outra fazendo o aborto; há também
a sugestão de alguns sites para pesquisa e informa-ção,
com a referência clara de que “não é necessário
formar opinião”.
Em prospecção:
outras possibilidades
Pode-se constatar
o quanto o material apresentado distancia-se do caráter proble-matizador
a que se propõe, investindo em uma concepção de leitura
como ato passivo, abrangendo tanto o professor quanto o aluno. Assim,
não é reconhecida a posição do leitor como
um construtor de sentidos, um sujeito em interação com o
texto. O argu-mento editorial que sustenta essa produção
recai na falta de tempo do professor e na necessidade de fornecer a ele
subsídios e respostas para avaliação de desempenho
na leitura.
Não há lugar, portanto, para a leitura prazerosa, a leitura
libertadora, a que alude Elizabeth Serra.
Outros materiais, no entanto, como O menino que brincava de ser, de Georgina
da Costa Martins, aponta em seu suplemento ao professor, novas perspectivas,
sugerindo atividades que apresentam preocupação com a contextualização,
abordando a discussão das relações de gênero,
fugindo da proposta tão comum de pergunta/resposta, apontada nas
obras anteriores. De igual maneira, a proposta de trabalho do livro O
gato que ama-va Girl, de Antônio Pádua e Silva, em que a
entrevista com o autor, na primeira parte do suplemento, anuncia a riqueza
da obra, e o exercício de análise do texto visa situar os
fatos e os personagens na trama, havendo espaço para resposta pessoal.
À parte de “En-riquecimento e Integração”
apresenta um painel de possibilidades a serem exploradas pelo professor,
desde a proposta de pesquisa sobre drogas e doenças sexualmente
transmissíveis até a discussão de informações
veiculadas pela mídia e pelo senso co-mum. Evidencia-se, nesse
material, o investimento na posição do leitor ativo, em
intera-ção com a proposta textual.
Longe de esgotar a discussão, o presente trabalho – como
também a pesquisa so-bre a qual me debrucei por um tempo, e que
pretendo retomar –, conta com rico materi-al, a ser ainda analisado.
Retomamos palavras de Bartolomeu Campos de Queirós para nossa reflexão:
“‘Viver sem esperança é como ter casa sem janela’,
escreveu meu avô com letra miúda, perto da fechadura”.
Encontro à inquietação que me moveu durante a elaboração
deste trabalho, a au-sência, quase completa da ressignificação
nas propostas das fichas de leitura. Questio-no-me, então: como
levar, em uma obra para jovens, um material para mediação
de lei-tura sem nenhum questionamento ou esperança?
Referências
Bibliográficas:
ALVES, Marlene
Del Guerra. Vivendo o amor. São Paulo: Lê, 1994.
AZEVEDO, Guila. Grávida, ao quatorze anos ? São Paulo: SCIPIONE,
2001.
BATAILLE, G. A literatura e o mal. Porto Alegre: L&PM, 1989, p. 9.
BRAZ, Júlio Emílio. Anjos no aquário. São
Paulo: Atual, 1992.
CHARTIER,Roger. Aventura do livro: do leitor ao navegador. São
Paulo: UNESP, 1998, p. 103
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis:
Vozes, 2004, p.264.
DORIN, Lannoy. Sem olhar para traz. São Paulo: Editora do Brasil,
s/d.
LACERDA, Nilma. Presença de uma ação. Rio de Janeiro,
PROLER, p. 11
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DCL, 2000.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Por parte de pai. Belo Horizonte:
RHJ, 1995, p. 12.
SERRA, Elizabeth D’Angelo (org.). Trinta anos de literatura para
crianças e jovens: algumas leituras. Campinas: ALB, 1998, p. 89.
SILVA, Antônio de Pádua e. O gato que amava girl. São
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THOMPSON, John B. A mídia e modernidade: uma teoria social da mídia.
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VIEIRA, Janaína. Se ele vier. São Paulo: SARAIVA, 2001. |
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