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  DISCURSO E PRÁTICA PEDAGÓGICA DE LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS

Samuel Ronobo Soares - Universidade Estadual de Maringá (PG - UEM)
Geiva Carolina Calsa - UEM
Mirian Hisae Yaegashi Zappone - UEM

Introdução

Recentes estudos evidenciam uma grande defasagem do ensino de leitura em todo o país. Esse fato se deve, segundo Travaglia (1995) e Bagno (2002), ao ensino puramente estrutural da língua materna. As aulas de leitura e compreensão textual servem para análise lingüística, o que não permite ao leitor buscar os diferentes sentidos dos textos e realizar pontes com sua realidade. Ao ser utilizada desta maneira, a leitura serve apenas como instrumento para a realização de exercícios algorítmicos e repetitivos de análise lingüística, que não enfatizam práticas leitoras diferenciadas, ou seja, não consideram a leitura que os alunos realizam fora de escola. Nesse sentido, torna-se um metido de ensino estrutural e mecânico, o qual concebe a leitura como ato de decodificação de palavras e reconhecimento do pensamento do autor textual.
Pesquisas oficiais revelam que a educação no Brasil apresenta um baixo desempenho em várias áreas do conhecimento, principalmente em compreensão textual e língua materna. O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – SAEB (Inep, 2001), que focalizou o desempenho dos alunos em Língua Portuguesa (leitura e compreensão textual), revelou que o ensino de leitura nas escolas brasileiras não tem permitido aos alunos se beneficiar do processo de escolarização.
Entre os alunos que chegam à quarta série do Ensino Fundamental, 59% não desenvolveram habilidades e competências elementares de leitura e compreensão textual (levantar e verificar hipóteses); e 22% se encontram em um estágio considerado muito crítico, ou seja, não desenvolveram habilidades de leitura e não foram alfabetizados adequadamente para realizarem uma leitura “competente”. Apenas 4,4% dos estudantes obtiveram um desempenho considerado adequado, segundo os critérios dos Parâmetros Curriculares Nacionais (Quadro 1).

Quadro 1. Tabela dos resultados obtidos pelos alunos de 4ª série na prova de Língua Portuguesa

Estágio

População

Percentual

Muito crítico

819.205

22,2

Crítico

1.356,237

36,8

Intermediário

1.334,838

36,2

Adequado

163,188

4,4

Avançado

15,768

0,4

Total

3.689,237

100,0

Fonte: Qualidade da educação: uma nova leitura do desempenho dos alunos de 4ª série do Ensino Fundamental. MEC/Inep/Daeb.
Além disso, os resultados divulgados pelo Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM –referentes ao ano de 2003, revelam uma diferença acentuada entre o desempenho dos estudantes de escola pública e privada. Estudantes da rede pública obtiveram média de 37,52 pontos, enquanto os alunos da rede particular de ensino registraram média de 70,41 pontos nos exames de língua portuguesa. O rendimento dos alunos da rede pública foi quase a metade dos alunos da rede privada de ensino (UOL educação, 2003).
Os dados relativos ao rendimento do ensino fundamental e médio evidenciam o agravamento dos problemas educacionais brasileiros ao longo dos níveis de escolarização. Para alguns estudiosos, como Foucambert (1997) e Leffa (1996), uma das causas desse fenômeno em Língua Portuguesa reside no fato do ensino brasileiro basear-se, apesar dos avanços metodológicos e da literatura variada, em um ensino estrutural dessa disciplina. Com isso, o aluno não desenvolve habilidades que lhe seriam úteis para a compreensão e produção textual.
Nos últimos anos, os aspectos didáticos do ensino de leitura e de língua materna têm sido tema de pesquisas e debates por parte de pesquisadores das áreas de lingüística textual e psicolingüística. Atualmente, para que um indivíduo seja considerado um leitor eficiente são levados em conta dois níveis de exigência: a) que seja usuário da leitura, e neste papel seja competente no uso da língua; b) que seja crítico, reflexivo e independente na realização desta atividade (Inep, 2001). Com essas novas exigências, surgem, também, novas perspectivas pedagógicas. Conforme muda o foco dado ao conteúdo escolar, a função do professor também passa por transformações e novas perspectivas de ensino são traçadas: a função do professor como transmissor de conhecimentos, agora toma rumos diferenciados. A partir dessa abordagem, espera-se que, na escola, os alunos desenvolvam habilidades lingüísticas e de funcionamento da língua nos vários contextos discursivos em que podem estar presentes.
As propostas dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de Língua Portuguesa (Brasil, 1998), no que diz respeito à compreensão textual, enfatizam o papel do professor no ensino de procedimentos de leitura. Este tipo de ensino envolve a aquisição de conhecimentos sobre tipologias textuais, estratégias de leitura e aplicação dessas habilidades nas práticas sociais dos alunos, bem como a ativação de conhecimentos prévios de duas naturezas distintas: vivências do indivíduo como leitor; e esquemas relativos à estrutura dos textos e seus componentes (elementos textuais e contextuais) dos textos. Nessa abordagem didática, o professor tem como incumbência ensinar os procedimentos de leitura, dentre outros conteúdos, em conjunto com a capacidade reflexiva do aluno.
Segundo os documentos oficiais, o texto não é portador de um único sentido, e sim uma unidade comunicativa e significativa, que permite ao leitor atribuir sentidos. A partir dessa caracterização, ele abarca vários significados e seu ensino não pode corresponder a um estudo meramente estrutural, como se apresentasse apenas uma leitura possível. Uma vez que o ensino de leitura implica uma nova postura tanto do aluno quanto do professor, considerou-se importante investigar como os professores de Língua Portuguesa e de História da fase final do ensino fundamental – oitava série – abordam a compreensão de textos informativos. Além de apresentar sua própria percepção como leitores, também foram destacadas suas verbalizações sobre como ensinam compreensão textual, ou seja, qual é a concepção de leitura que fundamenta sua prática e quais as estratégias utilizadas em sua atividade de ensino de leitura.

Abordagens de leitura: professores, alunos e ensino

As abordagens de leitura vigentes no país são muito variadas, mas podem ser caracterizadas e sumarizadas em quatro vertentes principais: leitura estrutural, leitura e autoritarismo, leitura e discurso e leitura cognitivo-processual. Elas apresentam características específicas que revelam uma visão pedagógica sobre como os textos devem ser abordados e a função do leitor e do professor nesta atividade.

Leitura estrutural

Ainda encontrada em práticas pedagógicas e em livros didáticos atuais, esta concepção de leitura compreende o ato de ler como um processo meramente decodificativo. A leitura serve para ler palavra por palavra, sem que haja um esforço maior por parte do leitor para inferir outros aspectos que permeiam o texto. Essa linha teórica concebe a linguagem como reflexo do pensamento e estabelece uma relação direta entre linguagem e pensamento. Não considera os aspectos sociais, históricos e ideológicos que a leitura pode abarcar.
O professor adota uma concepção de texto e de leitura com um significado fechado, uno e acabado, e considera a compreensão textual como a compreensão do pensamento do autor. Não abarca as vivências e histórias de leitura que os leitores podem oferecer ao texto, uma vez que para essa concepção o único sentido está nos parágrafos e nas frases que o compõe: “(...) para escrever bem, temos de atender a três funções básicas: produzir uma resposta, tornar o pensamento comum aos outros e persuadir” (Blikstein, 1987, p. 23).

Leitura e autoritarismo
Apresenta uma abordagem crítica da leitura: o conhecimento de mundo e as experiências dos alunos, ou seja, seus conceitos prévios de leitura, são fatores importantes para a produção e construção de sentidos de um texto. O leitor, neste contexto, torna-se sujeito do ato de ler, pois atribui sentido ao texto, e não apenas age como um receptor de idéias. Nessa visão, são vários os processos que envolvem o ato de ler, e esses não se esgotam apenas na decodificação de palavras, mas expandem-se para uma compreensão do mundo e, acima de tudo, da realidade. Segundo Freire (2001, p.11), a “compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto”.
Esta abordagem de leitura implica uma prática educacional que envolve outras instâncias, como o âmbito social, histórico e ideológico do texto, pois pode contribuir para a compreensão e a relação do leitor com o meio social. Essa concepção destaca o caráter político da atividade de compreensão textual, uma vez que a reflexão extrapola os limites referenciais do texto e os relaciona com experiências, vivências lingüísticas e outras. O leitor, como sujeito construtor de sentidos, seria levado a tomar partido e agir criticamente perante o texto. Pode-se afirmar que esta prática de leitura, ao implicar uma percepção crítica do lido e do ato de leitura como expressão da realidade, contribui para a emancipação do leitor, edificada por meio da conscientização do modelo ideológico e social em que está inserido.
Na escola, a função do professor seria a de mediação entre o indivíduo e o conhecimento. Deve assumir uma posição política e ideológica, tanto no discurso quanto na prática pedagógica. Entretanto, esta vertente do ensino de leitura não é utilizada com freqüência na escola, que continua privilegiando, como afirmado anteriormente, uma abordagem decodificadora da leitura.

Leitura e discurso
A perspectiva da Análise do Discurso, do mesmo modo que a concepção crítica de Paulo Freire, concebe a leitura como produção de sentidos realizada a partir de elementos textuais e contextuais do discurso. Essa vertente relaciona instâncias pedagógicas, lingüísticas e sociais, pois, em seu ponto de vista, o ato de ler implica processos cognitivos, psicolingüísticos e discursivos. A leitura é considerada um instrumento libertador das práticas sociais dominantes e sua função é, também, a de desvelar o reducionismo existente na instituição escolar e na sociedade, que concebe o texto como propagador de idéias.
Desta perspectiva, ao valorizar apenas a linguagem verbal e a escrita em detrimento das outras formas de linguagem com as quais o leitor está em contato, a escola não permite a interação dessas formas de linguagem consideradas não legítimas, valorizando apenas o que o aluno lê no ambiente escolar, e nunca o que lê fora dela. A escola não incorpora em suas práticas pedagógicas outros tipos de linguagem e de leitura produzidos pelos indivíduos ao longo de sua história como leitores.
Essa abordagem de leitura, centrada no âmbito do discurso, propõe uma prática pedagógica em que os professores, ao reorganizar o currículo, promovam experiências pessoais de leitura por parte dos alunos. A situação das escolas, muitas vezes precária, não permite enfatizar a multiplicidade de sentidos que um texto possui, sendo a atividade de compreensão dominada pelo único sentido que o texto pode oferecer: “O ensino de leitura pode, dependendo das circunstâncias pedagógicas, colocar a ênfase tanto na multiplicidade de sentidos quanto no sentido do dominante” (Orlandi, 1988, p. 46).

Leitura cognitivo-processual

Essa perspectiva de leitura, denominada interacionista, aborda a complexidade de compreensão e aquisição de conhecimentos por meio da leitura. O texto é considerado um articulador de saberes, capaz de favorecer a formação do leitor por meio da ativação dos conhecimentos adquiridos anteriormente e do enriquecimento do caráter humanístico e criativo dos indivíduos.
O ato de ler é considerado um processo de reflexão sobre o próprio conhecimento que leva o leitor a uma percepção das relações existentes entre o texto e o seu contexto de produção e de leitura. Dessa forma, não se constitui apenas um ato social entre dois sujeitos, leitor e autor textual, mas sim, um processo de interação, que implica objetivos e práticas socialmente determinadas. O processo de interação leitor-autor, segundo Kleiman (1997), possibilita a materialização de significados e intenções dos integrantes desse processo que é o ler.
Nesse processo, a ativação dos conhecimentos prévios é de fundamental importância, pois é com eles que o leitor relaciona os conteúdos apresentados no texto. Antes e durante o processo de leitura, os conhecimentos já existentes – armazenados na memória de longo prazo (MLP) – relacionam-se aos novos conteúdos do texto, funcionando como esquemas assimiladores que facilitam sua compreensão. A dificuldade de compreensão textual, seja por resistência do próprio conteúdo do texto ou devido a existência de lacunas conceituais por parte do indivíduo, são corrigidas pelo sistema cognitivo por meio de processos acomodativos.
Os esquemas prévios do leitor permitem a assimilação dos itens lexicais do texto e, por conseguinte, a realização de inferências sobre o seu tema. Em conjunto com a estrutura textual e os elementos implícitos, os itens lexicais favorecem a compreensão do texto como um todo coeso e coerente.
Segundo Kleiman (1997), a compreensão textual é favorecida por três tipos de conhecimento do leitor: o lingüístico, o textual e o conhecimento enciclopédico ou de mundo. É mediante a reciprocidade e ativação desses esquemas de conhecimento que o leitor constrói o sentido do texto. Os conhecimentos lingüísticos situam-se para além da verbalização e abrangem regras gerais da língua. A identificação e a significação de determinados vocábulos mórficos e léxicos, bem como a estrutura sintática, precedem o ato de leitura e, conseqüentemente, a compreensão textual. Para a autora, os componentes co-textuais ou lingüísticos são propriedades inerentes e internas aos textos que materializam o significado dos mesmos e estabelecem a coerência textual. O conhecimento textual ou estrutural do texto é formado pelas relações que o leitor estabelece entre os elementos formais (lingüísticos, sintáticos, morfológicos) e entre estes e o contexto. Refere-se, também, ao conhecimento das variedades textuais e das diversas modalidades de discurso que cada uma das tipologias apresenta.
Sobre o processo de compreensão textual, Kleiman (1997) e Solé (1998) destacam também a importância dos objetivos e expectativas do leitor, enfatizando o caráter individual da leitura. Ao traçar propósitos claros, ele ativa seus conhecimentos prévios e os projeta sobre o texto que lê. Entretanto, no âmbito escolar, os objetivos seguidos pelos alunos em geral são os do professor e, em decorrência disso, os significados possíveis do texto e a realidade dos alunos são desprezados. Diferentemente da perspectiva interacionista, no ambiente escolar “a atividade de leitura é difusa, muitas vezes se constituindo apenas em um pretexto para cópias, resumos, análise sintática e outras tarefas do ensino de língua” (Kleiman, 1997, p. 30).

Ensino de procedimentos de leitura

O ensino padronizado ou formal de conteúdos, observado nas instituições escolares, não condiz com a proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de Língua Portuguesa (Brasil, 1998). Conforme os documentos oficiais, a escola deve oferecer aos alunos um ensino reflexivo, um pensar sobre o conteúdo que está sendo aprendido: é o chamado processo de tomada de consciência. Nesse processo, o professor cumpre o papel de favorecer a reflexão dos alunos sobre o seu pensamento e suas ações.
No que se refere ao processo de leitura, é considerada fundamental a reflexão sobre a organização dos procedimentos de leitura adotados pelo aluno, ou seja, sobre os passos que escolheu para realizar a tarefa. Essa prática de ensino envolve recursos metodológicos específicos como, por exemplo, estratégias e técnicas de ensino, que possibilitem aos alunos recorrer aos conhecimentos prévios e, a partir de então, ampliá-los e aproximá-los de um conhecimento mais elaborado.
Solé (1998) define procedimentos como um conjunto de ações ou etapas organizadas e orientadas para a realização de um objetivo específico, uma tarefa ou uma situação problema. Os procedimentos estão intimamente relacionados aos conhecimentos conceituais dos indivíduos e envolvem um saber fazer, um agir sobre o objeto de conhecimento. Considerada uma prática interacionista, na qual o leitor é agente do processo, e não apenas um decodificador de códigos lingüísticos, a leitura exige a aprendizagem e o exercício de procedimentos específicos. Esses procedimentos estão presentes nos três momentos da compreensão textual: antes da leitura (ativação de conhecimentos prévios, estabelecimento de previsões e levantamento de hipóteses); durante a leitura (verificação das previsões e hipóteses levantadas); depois da leitura (elaboração de resumos e identificação do tema e idéias principais).

Desenvolvimento do estudo

Os dados deste trabalho são resultados parciais de um projeto de Iniciação Científica que investiga as concepções de leitura de professores e alunos do Ensino Fundamental. O projeto contou com a participação de dois professores de língua portuguesa. O procedimento adotado foi entrevista individual de caráter semi-dirigida. As entrevistas abarcaram aspectos principais do desenvolvimento de uma aula de leitura, como objetivos, direcionamento, importância do texto para a turma e para a formação do leitor, ensino de procedimentos e critérios de seleção dos textos. Neste artigo, serão abordados os dados relativos às entrevistas dos professores de Língua Portuguesa da 8a série: a verbalização sobre sua proficiência como leitores e a descrição de como ensinam aos alunos a compreensão de textos informativos.

Resultados parciais
A partir dos pressupostos teórico-metodológicos da abordagem interacionista (Kleiman, 1997; Solé, 1998), considera-se leitor eficiente aquele capaz de exercer um papel ativo na tarefa de compreensão textual. No processo de interação com o texto, o leitor deve utilizar vários tipos de conhecimentos, como os textuais e os co-textuais. Nas entrevistas, ao descrever sua atuação como leitores, um professor da disciplina de Língua Portuguesa verbalizou o uso de conhecimentos textuais em sua prática efetiva de leitura, a fim de favorecer uma melhor compreensão textual e reconhecer que tipo de texto está lendo.

P.P.2: Em um primeiro momento eu faço uma primeira leitura, depois eu vou compreender e ver se trata-se de um texto literário. Depois eu vejo qual é o tema do texto e se é literário mesmo.


Pode-se observar que, em uma primeira leitura, o professor procura encontrar evidências textuais que facilitem a identificação do texto como literário, para que possam levantar hipóteses sobre a tipologia e a temática do texto. Denominou-se este procedimento leitura de reconhecimento do texto.
Ao descrever a maneira como ensinam a compreensão de texto literário, o professor demonstra a preocupação em ensinar os mesmos procedimentos que utilizam como leitores. Em relação ao primeiro momento da leitura – leitura de reconhecimento do texto – procura incentivar o aluno a pesquisar sobre o tema textual em fontes diferentes e por meio de formas discursivas diversificadas. Salientam a importância do suporte ou veículo do texto para a compreensão textual, pois ele permite um melhor engajamento na compreensão leitora. Com este objetivo, os professores procuram destacar também as marcas contextuais e ideológicas presentes no texto. Embora transpareça nas respostas do professor o predomínio de uma visão discursiva da leitura, observou-se que alguns procedimentos verbalizados são similares a uma visão interacionista-processual, como a preocupação com a ativação de conhecimentos prévios, a elaboração de hipóteses e a intertextualidade fatores fundamentais para a compreensão textual. Esses aspectos são ilustrados pela fala do professor de língua portuguesa (P.P.1).

P.P.1: Bom, eu peço para fazerem uma leitura simples. Depois a gente vai até uma revista, um jornal. Trabalho com gênero. (...). se é revista, a revista “Veja”, que está publicado determinada reportagem. Qual é o editorial da revista? A que grupo ela pertence, que editorial ela pertence? Estaria ligada a que tipo de classe social? Qual é a Postura da “Veja” diante da política? Qual é a tiragem? Quantos exemplares?

Após o primeiro momento de leitura, o professor, na condição de leitores, disse grifar palavras que não entende e buscar no dicionário seu significado. Denominou-se este segundo procedimento de leitura de identificação dos elementos textuais, pois, nesta etapa, a leitura serve para identificar os elementos desconhecidos considerados fundamentais para a compreensão.
Observou-se nas verbalizações de todos os professores entrevistados que, além de utilizar essa estratégia como leitores, procuram ensiná-las aos alunos. Esta conduta sugere que, para eles, os conhecimentos lingüísticos são importantes na compreensão de textos. Estudos de Kleiman (1997) mostram que esses conhecimentos, também co-textuais, servem para o reconhecimento de marcas lingüísticas deixadas pelos autores ou moldadas pela estrutura que os textos apresentam. As verbalizações de dos professores (PP1 e PP2) exemplificam o uso deste tipo de procedimento em seu processo de leitura e na prática pedagógica.

P.P.1: Vou assinalando o que não entendi, uma palavra que eu não saiba o significado.

P.P.2: Grifo as partes mais importantes, mando eles pesquisarem palavras diferentes e depois uma leitura de revisão.

Vale destacar os entrevistados, chamaram a atenção para o fato de que conhecer a língua portuguesa é importante para compreender textos. Disseram acreditar que os conhecimentos lingüísticos e textuais ensinados pela instituição escolar podem contribuir para uma melhor compreensão textual.
Como terceiro momento do processo de leitura, constatou-se a preocupação de todos os professores em buscar um entendimento global do texto, fixar o que haviam lido e verificar a pertinência e adequação das informações transmitidas pelos textos (sentidos e valores). Denominou-se esta etapa do processo de leitura de resgate do texto, que tanto pode envolver elementos textuais e lingüísticos, como também contextuais. Ela pode ser observada nas verbalizações indicadas abaixo:

P.P.2: (...) sanando todas essas dúvidas eu compreendo a mensagem desse texto e ai eu vou ver se essas informações são verdade.

P.P.2: (...) a gente faz a leitura, entende o que está escrito, analisa o porquê. Tem que entender como foi produzido, ai você vai entender melhor o que está escrito, não é puro e simplesmente o que está escrito no papel. Tem outros significados, outros valores. Só que não estão explícitos, estão implícitos. Só eles entendendo a origem para poder entender plenamente a informação.

Em todas as etapas de leitura verbalizadas pelos professores, observou-se que os conhecimentos prévios são considerados elementos fundamentais para a compreensão de um texto. Todos os entrevistados afirmaram que acionar conhecimentos sobre o autor textual, a época em que foi escrito o texto e seu contexto social, econômico e cultural facilitam a compreensão dos textos. Do mesmo modo que a perspectiva interacionista de leitura, os professores consideram que a compreensão textual depende da bagagem de leitura e de contextualização histórica dos leitores. A verbalização dos professores (P.P.1 e P.P.2) mostra a importância desse tipo de conhecimento para a compreensão textual.

P.P.1: Você tem que ver com o contexto histórico que ele foi produzido. Então você tem que estudar as características do autor, a que público o autor escreveu o texto, a que tipo de público ele pretendia escrever.

P.P.2: Ela [a leitura] exige conhecimento, cada vez que você vai lendo vai adquirindo conhecimento. (grifo nosso).

A análise das verbalizações sobre a prática pedagógica mostra que tanto os professores de Língua Portuguesa adotam procedimentos que englobam tipos de conhecimentos considerados necessários para o entendimento de um texto literário. Todos verbalizaram aspectos relativos à abordagem interacionista da leitura. Afirmaram seguir etapas como: leitura silenciosa, leitura oral e destaque das partes mais importantes do texto, com a finalidade de facilitar a compreensão textual dos alunos. Entre os entrevistados, um professor de Língua Portuguesa (P.P.2) verbalizou com clareza as atividades que envolvem as práticas anteriores à leitura. Ele afirmou apresentar o texto de forma que os alunos possam levantar hipóteses e objetivos para a realização da leitura. Procura contextualizar o texto para o surgimento de debate sobre o tema tratado e, além disso, afirmou ensinar o procedimento de verificação das hipóteses emitidas pelos alunos na fase anterior da leitura do texto.

P.P.2: Normalmente, em um primeiro momento, eu coloco o título no quadro, O que este título lembra você? Eles vão falando e eu vou colocando no quadro. (...) depois eu distribuo o texto para eles, eles vão ler, vão ver se as palavras que eles leram está de acordo com o texto ou não. Tem que ter uma conversa informal antes, falando dos acontecimentos, do que aconteceu.

A verbalização do outro professor de língua portuguesa (P.P.2), em oposição a esse procedimento, apesar de considerar os aspectos lingüísticos importantes para a compreensão textual, parece estar mais próxima da concepção decodificadora da leitura. Os procedimentos que ele disse adotar não permitem aos alunos extrapolar os conhecimentos sobre o texto. Partindo de uma abordagem interacionista de leitura, o conceito de leitura desse professor pode ser considerada algorítmica. Apesar de ensinar as estratégias que visam destacar partes importantes do texto, o que corresponderia à uma abordagem interacionista, pôde-se observar que elas servem como um recurso para a avaliação da compreensão textual. O professor pareceu adotar uma postura estruturalista e não conceber a leitura como um instrumento de produção de sentido, mas sim como um instrumento para aplicação de provas.

P.P.2: Eu leio com eles. Peço para que eles grifem parte por parte e por último eu peço para eles passarem no caderno as partes mais grifadas e depois em casa eu peço para eles lerem pelo menos mais duas vezes em casa para a prova.


Conclusões parciais

Uma visão geral dos procedimentos verbalizados pelos professores revelaram três grandes etapas para a realização da leitura. Como leitores, eles organizaram momentos distintos, aqui denominados: primeira leitura ou leitura de reconhecimento (identificação do gênero textual e verificação de informações e referentes textuais); segunda leitura ou leitura de identificação (grifo de palavras e elementos não conhecidos, procura no dicionário, destaque ou anotação de aspectos mais importantes do texto); terceira leitura ou leitura de resgate (fixação melhor do que foi lido, recuperação de informações e do significado global do texto.
Embora todos os entrevistados tenham verbalizado essas três etapas, cada um deles descreveu métodos diferenciados e individualizados para realizá-las. A existência dessas etapas de leitura não implica que haja uma ordem fixa para sua execução ou que elas esgotem todos os procedimentos utilizados pelos professores na atividade de compreensão textual. Os dados sugerem que eles se preocupam em executar uma seqüência geral de estratégias para compreender textos informativos.
Ao verbalizar como ensinam a compreensão de textos literários, os professores manifestaram uma visão de leitura interacionista e discursiva. Disseram considerar importantes para esse processo a contextualização do texto escrito, bem como o suporte em que se encontra, com a finalidade de estabelecer e ativar os esquemas prévios dos alunos sobre o tema. Pode-se citar como exemplo da abordagem interacionista de leitura, a fala de um dos professores de Língua Portuguesa (P.P.2) quando disse ensinar os procedimentos que os alunos podem realizar antes e durante a leitura. Segundo Solé (1998), o ensino dessas estratégias contribuem significativamente para a melhoria do processo de leitura, pois permitem ao leitor abandonar, selecionar e avaliar determinados procedimentos que não favorecem a compreensão textual.
Contudo, é importante destacar que apesar dos professores verbalizarem procedimentos pessoais e de ensino similares a essas abordagens de leitura, não significa, que sua prática de sala de aula se efetive desta maneira. A verbalização desses procedimentos indica que os professores têm notícia das propostas mais recentes para o ensino de leitura, mas não necessariamente que as coloquem em prática. Além disso, tendo em vista a dificuldade de leitura que os alunos continuam apresentando nos exames oficiais de aprendizagem – SAEB (Inep, 2001) e ENEM (UOL Educação, 2003), segundo os quais o desempenho em compreensão textual continua alarmante, pode-se concluir que esse tipo de conteúdo não esteja sendo ensinado ou que a metodologia empregada na escola não esteja adequada aos objetivos da disciplina de Língua Portuguesa.
Os dados desta pesquisa indicam a existência de uma provável contradição no sistema educacional brasileiro: de um lado, professores que tiveram acesso à literatura especializada e demonstram, em suas verbalizações, conhecer os procedimentos de leitura fundamentados em uma concepção interacionista e discursiva; e de outro, a manutenção de um desempenho extremamente baixo dos alunos na atividade de compreensão textual. Partindo desta observação, acredita-se que esta contradição pode ser explicada, em parte, pela persistência de práticas pedagógicas baseadas em uma concepção estrutural da leitura, que não valoriza os aspectos reflexivos e sociais da aprendizagem da língua.

Referências


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BLIKSTEIN, I. Técnicas e comunicação escrita. 2ª ed., São Paulo: 1987.

FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. – 41a ed. – São Paulo: Cortez, 2001.

FOUCAMBERT, J. A criança, o leitor e a leitura. Porto alegre: Artes Médicas, 1997.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. Relatório Saeb 2001 – Língua Portuguesa. Brasília, 2002.
KLEIMAN, A. B. Texto e Leitor: aspectos cognitivos da leitura. 5ª ed. Campinas, SP: Pontes, 1997.

LEFFA, V.J. Aspectos da leitura. 1ª ed. Porto Alegre: Sagra: DC Luzzatto, 1996.

ORLANDI, E. P.. Discurso e Leitura. 3ª ed., São Paulo: Cortez, 1988.

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília, DF: MEC/DEF, 1998.
SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6ª ed. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1o e 2o graus. São Paulo: Cortez, 1995.

UOL. UOL Educação. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/educacao/especiais/ult1811u12.jhtm>. Acesso em: 21 nov. 2003.

 
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