Cássia Geciauskas Sofiato - Faculdade de
Educação da Pontifícia Universidade Católica
de Campinas, PUC – Campinas;
Lucia Helena Reily - Faculdade de Ciências Médicas / CEPRE
– UNICAMP e da Faculdade de Educação da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, PUC – Campinas.
Introdução
Para que serve um dicionário? Uma pessoa que desconhece a linguagem
em funcionamento poderia supor que o dicionário seja a chave de
uma língua, e que aquele que estiver de posse do dicionário
poderá decifrar e dominar a língua. Na realidade, aprender
uma língua utilizando um dicionário é uma estratégia
equivocada, porque os sentidos são constituídos em estruturas,
na interação social, não em fragmentos lexicais isolados.
No entanto, quando uma língua não tem uma forma escrita
de registro, o aprendiz se beneficia muito de um dicionário, onde
poderá consultar palavras isoladas, ampliando seu vocabulário.
Em nossa atuação docente no ensino de língua de sinais
para alunos universitários, temos buscado disponibilizar uma variedade
de dicionários, apostilas e manuais ilustrados, para que os alunos
possam conhecer os recursos existentes para finalidade didática.
Indicadas como fontes bibliográficas, as obras servem primordialmente
de apoio para o estudo e para tentativas autônomas de produção
dos mais variados itens lexicais. Desenhos, fotografias e formas híbridas
são os recursos instrucionais e ilustrativos utilizados nos dicionários
de sinais que se mostram fonte valiosa para consulta e para ensinar o
usuário a realizar os sinais pertencentes à língua
de sinais.
Ao observar os alunos de cursos de língua de sinais consultando
tais obras, percebemos suas dificuldades em decifrar a forma correta (convencionalizada
pelos surdos) de realizar os sinais apresentados nos verbetes, conforme
as ilustrações. Sem a mediação anterior, sem
passar pelo processo de demonstração/imitação,
é muito difícil acertar, no caso de alguns ítens.
Percebemos que a comunicabilidade das imagens instrucionais não
é tão transparente quanto os autores pretendem.
Se os verbetes para sinais da Libras não são auto-explicativos,
o que estaria atrapalhando? Seria a dificuldade de desenhar as mãos?
Representar a tridimensionalidade? O movimento? A representação
da expressão facial e corporal que acompanha o sinal e complementa
o sentido? Para chegar em algumas respostas, mergulhamos numa pesquisa
histórica na busca das primeiras tentativas de coletar os sinais
e amestrá-los na forma de publicação.
Ensaios históricos de produção de
dicionários de sinais em mosteiros medievais
É provável que alguma forma de linguagem gestual sempre
foi usada entre surdos, toda vez que houve agrupamento de pessoas que
necessitassem de forma não oral de comunicação. No
entanto, a sistematização e o registro gráfico e
descritivo de sinais surgiu pela primeira vez na história da humanidade
no contexto da constituição da vida monástica na
Idade Média (Reily e Reily, 2003). Na virada do século V,
duas ordens monásticas foram criadas: 1) a oriental, que baseou
seu modo de viver nas Regras de São Basílio (São
Basílio Magno, c. 370) e 2) a ocidental, que seguia as Regras de
São Bento (São Bento, c.500). Ambas instituíram o
Voto do Silêncio, para auxiliar os religiosos a manter um clima
de reflexão e oração durante todo tempo, para levar
a atitudes de subordinação, e também para criar uma
barreira que impedisse a entrada de palavras mundanas. Nas comunidades
beneditinas, o ócio era combatido; todos trabalhavam, então
uma linguagem sinalizada surgiu como alternativa de comunicação
nas tarefas cotidianas. Reily e Reily (2003) deduziram que as formas de
alfabeto manual foram inventadas no contexto do scriptorium, no desempenho
das escrituras (cópias) de textos (os evangelhos e outros textos
bíblicos, breviários, saltérios, hinários,
textos clássicos, além de documentos não religiosos
como títulos de propriedade, doações, testamentos,
documentos de contabilidade da abadia) e outros que eram empregados para
acompanhar a liturgia pelos monges copistas. Para finalidade didática
(para ensinar os noviços) e com enfoque missionário, para
transmissão a outros mosteiros que iam aflorando, listas de sinais
foram registradas e copiadas nos Scriptoriae. Durante os saques, guerras
civis, e perseguições religiosas da Alta Idade Média
e Renascimento (Reforma e Contra-Reforma), e posteriormente por conta
da Inquisição, muitos manuscritos foram queimados, mas alguns
exemplares das listas de sinais monásticos sobreviveram, conforme
coletânea publicada por Umiker-Sebeok e Sebeok (1987). Existem também
listagens ainda em uso em mosteiros Trapistas, pois as ordens Cistercienses,
fundadas no final do século XI buscaram viver a Regra de São
Bento na autenticidade dos preceitos originais (Os Cistercienses: Documentos
Primitivos, 1997).
Segundo Eriksson (1993), o primeiro registro monástico de sinais
de que se tem notícia é da autoria do Venerável Bede
(672-735), reconhecido pela história eclesiástica da nação
inglesa (The Ecclesiastical History of the English Natio and the lives
of St. Cuthbert & the Abbots, c. 737). O volume De computo vel loquela
digitorum contém a mais antiga figura de numerais romanos representados
nos dedos. O monge sugeriu que os numerais também poderiam representar
letras.
O Monasteriales Indicia é um dos dicionários de sinais monásticos
em inglês arcaico aos quais tivemos acesso, re-editado por Banham
(1991), com tradução para o inglês moderno. Trata-se
de um documento escrito ainda no século X, provavelmente, e apresenta
127 sinais acompanhados de descrições verbais dos movimentos
manuais. Alguns são acompanhados de ilustrações no
original. Percebe-se que o sinal de leigo, por exemplo, é parecido
com o sinal para Homem na Libras atual.
Verbete 126 – “O sinal para leigo é que pega-se no
queixo com toda a mão, como se estivesse pegando na barba”
(tradução nossa).
Na sua publicação, Eriksson (1993) lista outros manuscritos
monásticos, entre os quais temos os que seguem:
? O Thesaurus Artificiosae Memororiae, de Cosmas Rosselius, monge franciscano
de Florença, em publicação póstuma datada
de 1679, contendo cinco pranchas ilustradas e mostrando três variações
de alfabetos unimanuais. Nas três versões, é evidente
a tentativa de criar configurações manuais parecidas com
as letras gráficas.
? A obra De Furtivis Literarum Notis criado pelo italiano Giovanni Battista
della Porta, (1535-c. 1610) e publicado em 1563, que propõe associar
letras a partes do corpo, utilizando o apontar, assim Auris (orelha) =
A; Barba = B; Caput (cabeça) = C; Dentes = D, e assim por diante.
Pelo que se sabe, este recurso não foi utilizado na educação
de surdos, mesmo porque os religiosos não aprovavam o apontar para
partes do corpo.
? A pequena obra Refugium Informorum, por el Padre Fray Melchior de Yebra,
foi publicado postumamente. O autor era o frade franciscano espanhol Fray
Melchior de Yebra (1526-1586), e produziu o manuscrito contendo 6 páginas
de ilustrações de posições manuais, muitas
das quais são parecidas com as grafias das letras. Nos países
do sul da Europa, o uso da escrita manual era comum nos mosteiros, praticada
na confissão, e com pacientes moribundos.
Nota-se, no entanto que nenhum desses manuscritos e publicações
citados por Erikkson chega a ser propriamente um dicionário, pois
todos trazem sinais manuais das letras do alfabeto ou numerais, e não
palavras/ verbetes. Apesar disso, servem para mostrar que as posições
manuais são passíveis de representação figurativa
e leitura quando a posição é estática, sem
movimento. Os problemas de desenho e interpretação da imagem
começam quando entram: 1) o movimento, 2) configurações
manuais complexas e 3) expressão facial complementar.
As tentativas de criação de manuais ilustrados
para educação de surdos
Existe uma grande lacuna na literatura sobre como os sinais monásticos
ganharam passagem do contexto religioso para o contexto da educação
dos surdos. Podemos especular com base científica que os sinais
monásticos e principalmente o alfabeto manual foram aproveitados
nos trabalhos pioneiros de educação de surdos realizados
pelo monge Pedro Ponce de Léon (c. 1520-1584), mas os registros
do seu método se perderam na Espanha, onde os conflitos civis e
religiosos foram particularmente violentos, como evidencia Plann (1997).
O próximo trabalho publicado, Reducción de las letras y
arte para enseñar hablar a los mudos, foi da autoria de Juan Pablo
Bonet (1620), mas suspeita-se que ele se apoiou, quiçá até
plagiou, as imagens do alfabeto manual de Yebra; Bonet não tinha
nenhum compromisso com a educação; era mercenário
e trabalhou alguns poucos anos ensinando o filho surdo da família
que fora servida anteriormente por Ponce de Leon. Bonet apresenta o trabalho
como sendo original; não reconhece a contribuição
da igreja, nem tampouco do monge. Seu livro não é um dicionário,
mas seguindo a tradição monástica, contém
um alfabeto manual, que mais tarde foi parar na mão do Abade Charles
Michel de L’Épée, e por intermédio de Huet,
que estudou no Instituto de Meninos Surdos de Paris fundado pelo abade,
acabou chegando ao Brasil em meados do século XIX.
No percurso histórico da educação do surdo, diversas
metodologias foram criadas, como maior ou menor ênfase na oralidade.
No Século XVIII, em pleno iluminismo, havia um forte interesse
na aprendizagem pelos sentidos, e com isso afloraram soluções
envolvendo sentidos gustativos, visuais e gestuais como compensação
da ausência da audição. O abade Charles Michel de
L’Épée, fundador da primeira escola para alunos surdos
em Paris a partir de 1776, por exemplo, investiu nos sinais, que ele considerava
a língua natural do surdo. Para aproximá-la da gramática
francesa, criou um sistema de sinais metódicos. Não chegou
a publicar um dicionário, embora tenha se esforçado neste
sentido, segundo Rée (2000). Sua metodologia inclui descrições
verbais que exemplificam os complementos gestuais adicionados aos sinais
simples para indicar a função gramatical do sinal. Sicard,
que o seguiu no Instituto de Meninos Surdos de Paris na virada do século
XIX, também enfrentou o desafio de representar os sinais visualmente,
mas deixou a tarefa sem conclusão, como seu antecessor. O próximo
a aventurar-se foi Bébian, que criou o alfabeto mimográfico.
Este educador resolveu registrar também as expressões faciais,
dividindo o rosto em oito regiões, e assinalando uma curva de formato
diferente para cada uma. Foi mais uma proposta que não teve êxito.
Valade resolveu assumir o projeto em 1850, elaborando um dicionário
descritivo da linguagem natural, projeto abandonado por Bébian
vinte anos antes. Valade considerava a escrita mimográfica absurda
e as notações de Bébian muito confusas, segundo Rée
(2000). O trabalho de Valade consistia num dicionário de sinais
manuais, que trazia uma lista de palavras-chaves em francês, cada
uma seguida de uma descrição verbal dos sinais gestuais
naturais correspondentes. Eram adicionados, onde necessário, “syrmographs”,
ou desenhos de traços estilizados, nos quais momentos sucessivos
na execução de um sinal eram sobrepostos numa única
imagem. Este foi mais um projeto de dicionário de sinais abandonado.
As iniciativas de produção de dicionários e manuais
de língua de sinais são inibidas em 1888 quando os representantes
dos vários países no Congresso de Milão assinaram
declaração estabelecendo o método oral puro como
mais eficaz na educação e instrução de surdos.
A partir de então, a metodologia oralista passou a imperar na Europa
e nas Américas, do final do século XIX até 1960 ,
coibindo também a produção de dicionários
de sinais para trabalhar com os surdos.
É por isso que, no Brasil houve um grande intervalo entre o primeiro
dicionário do surdo Flausino da Gama, ex-aluno do Instituto Nacional
de Educação de Surdos no Rio de Janeiro, (Iconographia dos
Signaes dos Surdos-Mudos), em 1875 e o segundo dicionário, publicado
por Oates em 1969. A inspiração para o projeto de Flausino
foram as estampas do surdo Pellisier, professor de Paris, que ele entendia
como um meio de os “falantes” conversarem com os surdos. Flausino
era um hábil desenhista, e conseguiu levar a cabo o projeto depois
de aprender a técnica da litogravura. Explicou seus objetivos na
introdução de sua obra:
“Vulgarisar a linguagem dos signaes, meio predilecto dos surdos
mudos para manifestação dos seus pensamentos. Os pais, os
professores primários, e todos os que se interessarem por esses
infelizes, ficarão habilitados para os entender e se fazerem entender”
(Flausino, 1875:2).
Em 1969, foi lançado o segundo dicionário brasileiro por
iniciativa do missionário americano Padre Eugênio Oates,
pertencente à Congregação Redentorista. Nas suas
viagens pelo país, interessou-se pela situação dos
surdos e aprendeu a língua de sinais, dando início a uma
pesquisa sobre a “comunicação natural” que havia
entre eles. Percebeu que havia diferenças lexicais nos sinais dos
surdos de diversas regiões do Brasil, por isso elaborou o manual
Linguagem das Mãos, com o intuito de ajudar os surdos brasileiros
a se entrosarem na sociedade, promovendo melhora na vida social, educacional,
recreativa, econômica e religiosa (Oates, 1989).
O livro de Oates começa com a datilologia, seguida de 1258 sinais.
Os sinais são apresentados um a um, por meio de fotografias, e
trazem um pequeno texto que descreve como o sinal deve ser realizado.
A tradição Iconográfica da língua
de sinais brasileira
Os materiais selecionados para a análise foram editados na região
sudeste do Brasil e a escolha das obras está relacionada à
sua representatividade junto às comunidades surdas brasileiras
da região. Produzidos em diferentes momentos históricos,
são considerados por pesquisadores como referências na área
da surdez.
Sabemos que muitos dicionários de língua de sinais que foram
produzidos são resultado de uma coletânea de sinais efetuada
por pessoas direta ou indiretamente envolvidas com a área. Assim
sendo, a pesquisa realizada pelos autores foi um aspecto relevante para
a escolha dessas obras. Outro fator preponderante foi a escolha do suporte
para a representação visual da língua de sinais por
parte do ilustrador.
Em termos de estrutura, as obras selecionadas também apresentam
algumas outras características em comum: um destaque para a informação
visual, a seleção de conteúdos lexicais que farão
parte da obra, o uso de textos complementares com o objetivo de esclarecer
ao leitor uma série de questões relacionadas à surdez,
o destaque às histórias de vida de surdos, entre outros.
Analisamos as seguintes obras:
? Iconographia dos Signaes dos Surdos Mudos de Flausino José da
Gama (1875);
? Linguagem das Mãos de Eugênio Oates, (1989);
? Linguagem de Sinais da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e
Tratados, (1992);
? Comunicando com as Mãos de Judy Ensminger, (1997);
? Meus Primeiros Sinais de Paulo Favalli, (2000) e
? o Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilingue: Língua
de Sinais Brasileira de Fernando C. Capovilla e Walkíria D. Raphael,
(2001).
As obras analisadas de línguas de sinais trazem em sua maioria,
a ilustração pictórica ou a fotografia referente
ao significado do sinal representado e, além disso, verificamos
a presença da representação quirêmica, que
corresponde à forma como o sinal é realizado, passo a passo.
Geralmente trazem ainda o verbete correspondente em português para
situar e orientar o leitor. Com o uso dessas estratégias, pretende-se
ensinar a língua da comunidade surda.
Em todas as obras escolhidas, verificou-se a escolha de dois tipos de
suportes para a representação da língua de sinais:
o desenho naturalista e a fotografia. Para que a realização
de uma obra de língua de sinais possa se efetivar, é necessário
a escolha de um profissional competente que realize a ilustração
do material, respeitando todas as características intrínsecas
a essa língua espaço-visual, pois além da liberdade
poética conferida a cada um durante a preparação
da obra, tem que se levar em conta a objetividade deste tipo de trabalho:
o desenho de uma informação estabelecida por uma convenção.
Trata-se da criação de uma imagem instrucional e como tal
essa deve cumprir a finalidade a que se propõe: transmitir uma
informação . Parece-nos que este é um aspecto que
ainda merece cuidados na produção de materiais de línguas
de sinais. Tal afirmação baseia-se na avaliação
da qualidade dos materiais produzidos, que em alguns casos não
cumprem com o objetivo principal, que seria o de ensinar a língua
de sinais sem a ajuda de um mediador, Alguns apresentam um aspecto rudimentar
e pouco profissional, devido ao cuidado insuficiente no uso de técnicas
específicas para a sua elaboração e à falta
de valorização de aspectos estéticos. A qualidade
das imagens é um aspecto que merece mais atenção
por parte dos autores e ilustradores, pois a imagem em si é um
elemento essencial neste tipo de publicação.
Verificamos também uma série de dificuldades relacionadas
à representação das configurações de
mãos. De acordo com Stokoe, as configurações de mãos
dizem respeito à forma que a(s) mão(s) assume(m) ao realizar
um determinado sinal. Alguns ilustradores optam por desenhar ou fotografar
as mãos vistas conforme a posição que elas assumem
ao serem sinalizadas, outros já preferem desenhá-las sob
um outro ângulo de visão que facilite o aprendizado do sinal
e isso constitui um impasse para o leitor, se ele tiver acesso a vários
materiais ao mesmo tempo. Sem a presença de um mediador, é
difícil saber qual é a posição correta para
a produção manual do sinal. Algumas letras são mais
difíceis de serem identificadas devido à forma como são
representadas, a saber: o “T”, o “Q”, o “H”
e o “F”.
Alguns ilustradores desconhecem a importância atribuída à
“localização das mãos”, termo utilizado
por Fernandes (2003), ou o local de onde incidem os sinais. Muitas vezes,
o enquadramento escolhido não destaca as mãos e as partes
do corpo que deveriam estar em evidência durante a realização
de determinados sinais. Além disso, o uso da expressão corporal
e facial também deveria ser salientado, uma vez que são
elementos intrínsecos que reforçam o sentido durante a produção
dos sinais. Pudemos perceber que em algumas das obras analisadas esse
aspecto também não é valorizado. Observamos “cortes”
na cabeça ou em outras partes do corpo do modelo e o uso de expressões
que não condizem com o que está sendo representado ou até
mesmo a ausência delas. Através das obras, pudemos verificar
também que os ilustradores não contam com um espaço
amplo onde possam representar os sinais. Na maioria das vezes, as imagens
não são valorizadas quanto ao tamanho e apresentam-se muito
espremidas. O espaço utilizado tem que ser dividido com outras
formas de representações gráficas, tais como as legendas,
e as descrições do movimento.
O uso de legendas está sempre presente nas obras estudadas e têm
a finalidade de explicar ao leitor a forma de realização
dos sinais associada à imagem que geralmente aparece junto. A associação
da imagem e da legenda é vista como uma solução neste
tipo de material. O leitor que teve acesso à linguagem escrita
pode se beneficiar com tal recurso se a imagem não bastar para
ele conseguir fazer o sinal apresentado, mas não podemos afirmar
que a referida estratégia garante a realização eficaz
dos sinais por todos. E no caso das pessoas que não são
alfabetizadas, que é a realidade de muitos surdos? Sabemos que
o acesso à língua será limitado também devido
a este fator.
Encontramos ainda uma série de dificuldades relacionadas à
representação do movimento presente em muitos sinais. Esse
aspecto é também um desafio para ilustradores experientes
e, como nos aponta Gombrich (1999), este é um obstáculo
para os profissionais que trabalham com imagens instrucionais. Essa tarefa
torna-se difícil porque os ilustradores têm que transformar
os fluxos de movimentos presentes na realização dos sinais
numa seqüência de posições fixas. Passar do plano
tridimensional para o plano bidimensional exige o uso de técnicas
próprias da área do desenho e da fotografia. Neste caso,
as soluções encontradas pelos ilustradores ou fotógrafos
de materiais de línguas de sinais estão relacionadas ao
uso de elementos visuais que, acoplados à imagem, teriam a finalidade
de elucidar a direção e a qualidade do movimento. Para isso,
setas são incluídas em muitas ilustrações
e fotografias e também desempenham o papel de vetores, tentando
indicar a direção que se deve obedecer para que se realize
corretamente o sinal. Mas existem também outros recursos que são
incorporados à imagem com a finalidade de demonstrar a movimentação,
quando necessário: “curvinhas”, “ziguezagues”,
“círculos” e desenhos de trajetória de movimento
com o uso do pontilhados.
Alguns ilustradores apresentam como estratégia uma seqüência
de imagens que revelam a evolução do movimento durante a
produção de um determinado sinal. Gombrich (1999) salienta
que esses profissionais devem aprender a isolar os blocos e mostrar a
ação do melhor ângulo durante a representação
de uma seqüência. As várias soluções utilizadas
tentam minimizar o desafio do ilustrador frente ao movimento, mas nem
sempre são bem sucedidos durante a interpretação
dos sinais e a tentativa de execução dos mesmos. A sistematização
dessas pistas gráficas por meio de uma legenda no início
do volume auxiliaria o leitor a interpretar a instrução
pretendida. Entre as obras brasileiras analisadas, apenas o Dicionário
Enciclopédico Trilingue: Língua Brasileira de Sinais de
Capovilla e Raphael (2001) teve o cuidado de incluir este tipo de explicação
para o leitor.
Discussão
Quase a totalidade dos dicionários foram elaborados por ouvintes,
que acabam fazendo as escolhas que dizem respeito à estruturação
e organização dos mesmos, baseados em suas experiências
com outros dicionários apresentados em sua modalidade de língua,
a língua oral.
Não obstante termos Flausino (1875) como precursor da iconografia
brasileira, a presença do surdo durante a elaboração
das obras, quando ocorre, é tímida e não proporciona
uma mudança significativa na sua apresentação, pois
a constituição dos materiais continua seguindo o padrão
utilizado para a língua de modalidade oral. Não podemos
negar que existem obras brasileiras dessa natureza de autoria de surdos,
mas como pudemos observar, a forma de elaboração dos referidos
materiais também tem como referência os diversos dicionários
criados pelos ouvintes. Desta forma, parece-nos que existe uma tradição
em elaborar dicionários seguindo os modelos de estrutura já
existentes, tarefa iniciada por Flausino em 1875 no Brasil e perpetuada
até os dias de hoje. Se os surdos fossem autores ou ilustradores,
e estivessem à frente da elaboração dos diversos
materiais de língua de sinais existentes, sem a influência
dos paradigmas estipulados pelos ouvintes, talvez a sua forma de estruturação
fosse totalmente diferenciada. O tratamento dado à informação
visual e a forma de indexar o léxico obedeceriam a outros critérios
de organização, por causa da facilidade de raciocínio
em outras linguagens por meio de suas experiências visuais.
A elaboração de obras impressas de línguas de sinais
é um problema que vem sendo demonstrado desde as primeiras formas
de representação dessa língua ao longo da história.
E diante disso, alguns estudiosos da área e até mesmo instituições
que se dedicam ao trabalho educacional de surdos decidiram enfrentar essa
dificuldade de forma “inovadora”, mediante a elaboração
de dicionários virtuais, geralmente em forma de CD Rom. O uso de
tal tipo de recurso para a representação da língua
de sinais favorece alguns aspectos relacionados aos parâmetros que
constituem a língua, tais como: a melhor visualização
das configurações de mãos exigidas para a realização
do sinal desejado; a ênfase da expressão facial e corporal
durante a realização de um determinado sinal; a compreensão
da trajetória do movimento necessário a alguns sinais; a
“localização das mãos” que fica mais
evidenciada, pois existe uma cena da qual o modelo faz parte, embora se
evidencie apenas a região da cabeça, do pescoço e
do tronco.
Mas, apesar de todo aparato tecnológico, algumas pessoas ainda
têm dúvidas na hora de realizar os sinais de acordo com o
modelo apresentado. Ademais, o uso desse tipo de recurso só será
possível se a pessoa interessada tiver acesso a um computador compatível
com as exigências dos programas utilizados. Sabemos que, infelizmente,
esse fator também é determinante ao acesso à língua,
pois muitas pessoas e muitos ambientes educacionais não contam
com esse recurso. Além do mais, em determinadas situações,
o uso do material impresso em forma de dicionário, manual ou livro
é mais prático, devido à facilidade de transporte,
rapidez durante o manuseio pela busca do sinal e por ser financeiramente
mais acessível.
Conclusão
O intuito deste estudo não foi o de desconsiderar as inúmeras
tentativas de representação da língua utilizada pelos
surdos, mas mostrar os fatores que impedem um melhor aproveitamento por
parte dos leitores que se apóiam em obras destinadas ao ensino
de tal língua.
Sabemos que a criação de um material dessa natureza é
uma tarefa exigente, que envolve muitos cuidados relativos ao tratamento
da informação que se deseja transmitir, que nesse caso é
visual. Os fatores que interferem diretamente na iconografia da língua
de sinais merecem atenção especial por parte dos envolvidos
com a questão da representação pictórica ou
os que utilizam a fotografia como suporte. Sabemos que, em outras áreas
do conhecimento, o uso das imagens em materiais impressos ou multimídia
também é bastante corrente, e que muitos ilustradores, quando
se deparam com desafios relativos à questão da representação
por uma série de impedimentos, buscam formas de se aperfeiçoarem,
para realizarem o trabalho da maneira mais adequada possível. Isso
deveria ocorrer também quando os materiais impressos de língua
de sinais fossem lançados, pois vemos que muitas vezes as pessoas
que participam da elaboração desses materiais não
conhecem em profundidade a área da surdez e muito menos as características
da língua de sinais, língua espaço-visual, com estrutura
e funcionamento próprios.
A despeito de todas as questões apontadas e discutidas neste estudo,
estamos diante de um problema de difícil solução.
De um lado, existe ainda a necessidade de produção de materiais
de língua de sinais na forma de material impresso, e, de outro,
o processo de registro dessa língua numa dimensão visual
e quiro-articulatória é altamente complexa.
Concluímos que ainda faltam estudos específicos na área
e tentativas mais assertivas de representação, baseadas
em enfrentamento do desafio e capacidade de inovação. A
intersecção com outras áreas do conhecimento, mais
especificamente a contribuição que as Artes Visuais podem
fornecer seria um grande passo para a melhoria deste material imprescindível
para a educação de surdos.
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