Voltar | ||
FORMAS
DISCURSIVAS E CULTURAIS COLOCADAS EM JOGO NO TEXTO FICCIONAL: ENTRE AS LEITURAS
PROPOSTAS E AS LEITURAS PRODUZIDAS
Vilma de Sousa - Instituição: Faculdade de Educação da UFMG – Programa de Pós-Graduação em Educação Que o autor primeiro, isto é, a dimensão
pessoal do autor, se faça mudo é pois condição
mesma da escrita. Para que as vozes do texto falem, um silêncio
deve ser ouvido. Esse silêncio, como já vimos, se refere
àquilo que, em relação à estrutura do texto,
poderia ser identificado à pessoa do autor e aos destinatários
reais ou primeiros. O presente trabalho tem como objetivo confrontar uma proposta de leitura do texto de Luís Fernando Veríssimo, intitulado D. Leonor, produzida a partir dos conceitos de “posição do sujeito”, e de “discurso do outro”, com comentários de leitura de um grupo de leitores empíricos. O texto em análise é uma narrativa ficcional curta, classificada habitualmente como crônica, gênero de discurso polimorfo, que tanto pode se aproximar das matérias noticiosas e interpretativas dos jornais e revistas, quanto delas se afastar pelo apelo ao imaginário, ao humorístico ou ao lírico. É provável que, pelo tema e pela forma – trata-se de um recorte do cotidiano familiar –, o texto tenha inicialmente circulado em um jornal diário, em caderno e sessão destinada a matérias assinadas. Nosso acesso ao ele se deu, porém, no livro Novas comédias da vida privada, coletânea de crônicas cujo título pressupõe a publicação de comédias anteriores. Para leitores familiarizados com os gêneros e as formas de circulação dos textos, as expressões comédias e vida privada assim como a assinatura do autor, Luis Fernando Veríssimo, apontam para uma leitura na chave das interpretações críticas da vida cotidiana familiar contemporânea. Este estudo compreende basicamente duas partes, além da introdução e da conclusão. A primeira procura identificar de que modo o texto em foco desnaturaliza e articula, na instância ficcional, as formas e as vozes recorrentes no discurso familiar e no discurso publicitário, produzindo uma imagem dialética e condensada, que critica a imagem e nossas maneiras de vê-la. A segunda investiga a compreensão e as pressuposições de seis leitores jovens das classes populares acerca do objetivo comunicativo do texto, do pacto de leitura por ele proposto e de seu meio original de circulação. Na conclusão, levantamos hipóteses acerca da possível influência de fatores subjetivos e culturais sobre as leituras produzidas. Uma proposta de leitura: a heterogeneidade dos discursos e as múltiplas “posições de sujeito” Segundo Johnson, o conceito de “posição do sujeito” é “um insight fascinante, especialmente quando aplicado às imagens visuais e ao filme” (JOHNSON, in SILVA, 2004, p. 85). Apesar de admitir que esse conceito continua problemático e ambíguo (“trata-se de um conjunto de competências culturais ou, como o termo implica, de alguma ‘sujeição’ necessária ao texto?”), o autor o considera produtivo na medida em que oferece “uma nova perspectiva a partir da qual o trabalho feito pela câmera pode ser analisado”. Afirmando que a câmera “não se limita a apresentar um objeto”, mas “nos posiciona relativamente a ele”, o autor observa que “certos tipos de textos (os textos “realistas”) naturalizam os meios pelos quais esse posicionamento é atingido, produzindo um insight duplo de grande força”: por um lado, tornam “processos inconscientemente sofridos (e fruídos) abertos à análise explícita”; por outro, “propiciam a conexão entre a análise das formas textuais e a exploração das interseções com as subjetividades dos leitores” (JOHNSON, in SILVA, 2004, p. 85-86). A partir das sugestões do autor, procuraremos fazer uma análise das posições de leitura oferecidas pelas formas de apresentação dos discursos e pela estrutura narrativa do texto, considerando não só a possibilidade de analogia entre o papel da câmera no texto fílmico e o do narrador no texto verbal, mas a peculiaridade de o texto em análise colocar em evidência o “olho da câmera” que vê a protagonista, D. Leonor, e – supõe-se – assim se deixaria ver pelas demais personagens e pelo leitor virtual. Considerando que o texto em foco neste trabalho encena diante do leitor o caráter triádico da interação, operaremos em nossa análise com a concepção dialógica de Bakthin. Segundo o autor, a interação é um drama que envolve não apenas os dois atores representados pelo locutor e pelo interlocutor, mas também uma terceira personagem, representada pelo já dito, substrato constitutivo da língua estabilizada, sem a qual a comunicação não seria possível porque teria de ser reinventada a cada nova interação. Esse terceiro vértice da interação corresponde ao lugar do Outro no discurso que produzimos. Conforme assinala Marília Amorim, o dialogismo como conceito operante na análise dos textos implica a compreensão de que, no interior de um mesmo enunciado de um mesmo locutor, podem estar presentes duas ou mais vozes, o que equivale a dizer “a presença de dois ou mais contextos de enunciação para uma mesma palavra enunciada” (AMORIM, 2004, p. 139-140). Para organizar nossa análise, acompanharemos, de um lado, as “posições de sujeito” na instância das personagens, consideradas sujeitos internos aos mundos discursivos representados; de outro, as estratégias de constituição do locutor-narrador, compreendido como sujeito do texto ficcional e figura do discurso que concede a palavra às demais. Partiremos do pressuposto de que aos locutores-personagem e ao locutor-narrador correspondem diferentes posições de sujeito capazes de suscitar compreensão responsiva tanto por parte dos interlocutores-personagens, internos ao mundo representado, quanto do interlocutor previsto como leitor virtual e, em última instância, dos leitores empíricos. Passemos, então, à leitura do texto, reproduzido
na íntegra no final deste trabalho. O título e os enunciados
iniciais criam, no leitor, a expectativa de que o texto vai se construir
como um recorte de cenas da vida familiar. A expressão de repente
anuncia a irrupção do acontecimento central da narrativa:
o estranho discurso incorporado pela mãe, Dona Leonor. O espaço textual representa metonimicamente o lugar social de D. Leonor, uma mulher casada, de classe média urbana, que se move no ambiente doméstico. Ao incorporar o conjunto ordenado de lugares vazios que constituem o esquema anúncio televisivo de produtos de consumo para uso doméstico, a personagem traveste-se em protagonista que o (re)produz, preenchendo seus vazios com referências a produtos supostamente em uso no dia-a-dia de sua família. O deslocamento e a condensação de scripts de esferas discursivas distintas, paradoxalmente “adequados” e “inadequados” à interação, explicitam e colocam em crise as convenções e ideologias que sustentam e naturalizam tanto o discurso familiar (incluam-se nesse discurso os papéis sociais atribuídos aos membros da família) quanto o publicitário. Para o marido e os filhos, essa crise se traduz como estranhamento do comportamento de D. Leonor, o que suscita a alusão à necessidade, sempre adiada, de levá-la ao médico. Para o leitor previsto pelo texto, a irrupção do discurso publicitário, característico do circuito produção-consumo, no espaço e tempo em que seria esperado o discurso familiar teria – supõe-se – o efeito de explicitar e desnaturalizar as convenções e ideologias de ambos os discursos, assim como os meios técnicos da televisão. Quando dona Leonor se dirige à platéia invisível, o marido e os filhos são designados como não-pessoas, como ele, ela, eles, ainda que estejam presentes no contexto da interlocução. Dona Leonor é quem está em posição de falar, portanto, é pessoa; ela, porém, não interage com os filhos e o marido, e sim com a platéia ou a câmera invisível para a qual se volta ao anunciar os produtos. Encenam-se e sobrepõem-se, assim, diante do leitor diferentes posições de sujeito: a do telespectador-modelo dos anúncios publicitários, em especial a mulher dona-de-casa que assiste a esses anúncios; a do enunciador-anunciante dos produtos para a mulher e o lar; a da mulher que assume o papel de mãe e dona-de-casa. Ironicamente, cada interpelação de D. Leonor à câmera (ou da câmera a D. Leonor) corresponde a uma intervenção “adequada” tanto ao que se espera de um anúncio publicitário quanto a um dos papéis a que ela incondicionalmente aderiu: dona-de-casa, esposa, parceira sexual do marido, mentora de nutrição, saúde e higiene da família, mediadora das interações intersubjetivas da família.. Entrando por inteiro no figurino dos papéis de gênero atribuídos tradicionalmente à mulher, ela se transforma na protagonista-espectadora-consumidora-modelo dos anúncios televisivos de produtos para o lar: eletrodomésticos, alimentos, produtos de limpeza, de higiene e estética pessoal. Tal como a geladeira que anuncia como o “ponto de encontro da casa”, o lugar onde “todos encontram tudo o que procuram”, D. Leonor é uma “Supergel Espacial, a cabetudo”. Cama, mesa, banho é o título que Veríssimo dá a uma outra crônica do mesmo volume, publicada na seção Encontros & Desencontros. Nela, uma jovem que acabara de se casar volta para casa dos pais, decepcionada com o marido porque “ele raspa a manteiga em vez de cortar e aperta a pasta de dentes pelo meio” (VERISSIMO, 1996, p.42). As palavras que servem de título a essa crônica topicalizam, de forma admirável, o mundo da mulher doméstica de classe média urbana, encarnada aqui por dona Leonor. Tragada pelo papel de servir e satisfazer aos filhos e ao marido, a personagem iguala-se aos produtos que a família consome. Paradoxalmente, só ganha visibilidade e atenção no momento em que se torna porta-voz do discurso publicitário. Um sujeito de enunciação que incorpora radicalmente a voz e o desejo do Outro, portanto um sujeito destituído de subjetividade torna-se o centro de atenção da família. Wittgenstein sustenta que nossos jogos de linguagem, (linguagem compreendida como parte de uma atividade, de uma forma de vida) estão imersos na totalidade de uma formação cultural ou social e interligados a atividades não-lingüísticas, devendo ser compreendidos dentro desse contexto. (WITTGENSTEIN, in GLOCK, 1998, p.174). De forma análoga, para Bakhtin, a utilização da língua efetua-se na forma de enunciados orais ou escritos cujo conteúdo temático, estilo e construção composicional são marcados pela especificidade da esfera da atividade humana em que são utilizados. Assim, embora cada enunciado considerado individualmente seja único, cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, o que dá origem aos gêneros do discurso. No texto de Veríssimo, a subversão dos esquemas de correlação previstos entre “forma de vida” e “atividade discursiva” tem o efeito de explicitar a inumanidade do discurso como formação autônoma que, animada de sua própria vida, tem a capacidade de ocupar as subjetividades, de se auto-engendrar e se reproduzir ao infinito. Fazem parte da memória coletiva contemporânea as narrativas verbo-visuais da publicidade televisiva, em que a câmara focaliza uma cena de interação familiar – por exemplo, uma família de classe média, alegre e saudável, usando determinada marca de margarina em sua refeição matinal. Nesse tipo de anúncio, o olho da câmera estabelece o lugar de onde o expectador deve contemplar a cena. À semelhança de uma terceira pessoa que, como voyeur, contempla o grupo interagindo, o telespectador é um ele, um terceiro excluído, alguém que não foi designado como interlocutor do diálogo. O acabamento do enunciado se dá pelo deslocamento de uma das personagens (ou pela intervenção de outra voz) que, destacando-se do contexto de interação familiar, assume o ponto de vista do enunciador-anunciante e interpela diretamente o telespectador-destinatário por meio do paradigma do tu ou do você. A simulação – cena da família à mesa, de homem fazendo barba no banheiro, de mulher na cozinha, por exemplo, – se desfaz, deixando seu efeito de exemplo a ser imitado. Reverbera no imaginário do público o efeito de sentido decorrente das associações entre o produto e estereótipos ideológicos de saúde, satisfação, status, felicidade familiar. No momento em que a palavra é endereçada ao expectador, a situação de interação virtual encenada no anúncio se enlaça com a interação entre anunciante e destinatário. Num processo de compreensão responsiva, esse ouvinte/espectador real vai aceitar ou não o lugar que lhe é designado por seu interlocutor. No texto de Veríssimo, dona Leonor, numa espécie de alucinação, desliza para dentro do anúncio e passa a interagir com o olho invisível da câmera, que não é outro senão o olho do enunciador-anunciante. Dissolvem-se, assim, os limites entre o real e o virtual, e a personagem, incorporando o discurso publicitário, desloca-o para o espaço “real” da convivência familiar. As convenções discursivas desse tipo de anúncio já foram de tal forma automatizadas pelos telespectadores que, na comunicação televisiva, não lhes causa estranheza a interrupção da simulação e a sobreposição ou hibridização de contextos e discursos heterogêneos. Parece-nos que o texto de Veríssimo, ao mostrar a a hibridização de contextos, desnuda para o leitor as convenções discursivas do gênero. O texto funciona como o espelho a que dona Leonor se dirige para anunciar a marca da pasta de dente usada por Jorginho, seu filho, como metáfora da tela iluminada da tevê. Além do espelho, está a platéia; aquém, o olho invisível da câmera que enquadra o anúncio. Produzido em circunstâncias culturais complexas, os gêneros midiáticos, assim como os gêneros ficcionais seriam, conforme a distinção bakhtiniana, gêneros secundários, formados a partir da absorção e transformação dos gêneros primários constituídos em circunstâncias de comunicação verbal espontânea (AMORIM, 2004, p. 107-114). Ao incorporar discursos de diferentes esferas de atividades, sejam eles primários ou secundários, o discurso ficcional propõe a desautomatização de nossa percepção acerca desses mesmos discursos, revelando a produção de sentidos e de sujeitos na cultura. Inserida no cotidiano, a réplica do gênero publicitário reproduzida pela personagem provoca um efeito de estranhamento. No plano do mundo representado, o deslocamento de um gênero secundário – o discurso publicitário – para a esfera de atividade típica de um gênero primário – o discurso familiar – torna vazios de sentido para seus interlocutores (o marido, o filhos) os enunciados de dona Leonor. Rompe-se a fonte do sentido que, segundo Bakhtin, está na conexão com o contexto imediato e com o contexto mediato dos discursos socialmente constituídos. Além do efeito humorístico, esse deslocamento é revelador em pelo menos duas dimensões: na da compreensão das relações entre as atividades humanas e as atividades lingüísticas que lhe dão voz sob a forma de modos de dizer convencionais e na revelação da onipresença do Outro nas enunciações individuais. Aquilo que na interação triádica da mídia passa despercebido ao expectador situado fora da cena é denunciado como simulacro de interação, como convenção. Uma dona Leonor saída da tela da tevê invade a cena familiar com o discurso publicitário, colocando em evidência o caráter de simulacro do discurso interativo encenado no espaço virtual da televisão. Ao mesmo tempo, a ruptura da interação familiar por um olhar que se volta para fora da cena doméstica, torna visíveis as convenções do próprio discurso familiar. O movimento de estilhaçamento é, pois, duplo e dialético. Exatamente ao se tornar simulacro que se apropria e reproduz um discurso que não é seu e cujo sentido se reduz ao repetível dos gêneros publicitários, D. Leonor, antes uma figura invisível na cena familiar, se torna visível aos olhos dos filhos e do marido e dá visibilidade às convenções do discurso familiar. Os efeitos de sentido produzidos na instância do mundo representado são urdidos pelas estratégias de enunciação e textualização usadas pelo locutor-narrador. Como enunciado único, a narrativa ficcional tem um narrador e um leitor virtual que, construídos discursivamente pelo autor, coexistem e interagem. Segundo Silviano Santiago, nas narrativas contemporâneas,
Na primeira parte do texto de Veríssimo, a posição
do narrador é análoga à da câmera na comunicação
imagética da televisão e do cinema. Apagando-se na narrativa,
o narrador a transforma em uma série de tomadas de cena, de flashes
que se sucedem diante do leitor a partir de um ponto de vista externo.
Atua como o câmera-man que faz o olhar do leitor-espectador saltar
de uma cena para outra no espaço doméstico, construindo
essas cenas com citações em discurso direto. Na medida em
que o olhar do narrador se desloca para acompanhar a personagem-título,
arrasta junto o olhar do leitor, tal como o faz a câmera invisível
que comanda o espetáculo da televisão. Enquanto o discurso
de Dona Leonor é apresentado como discurso citado, o do marido
e dos filhos é sucintamente relatado e modalizado pelo locutor-narrador,
que o pontua com discretos comentários avaliativos das atitudes
e reações das personagens diante de dona Leonor, como mostram
os destaques a seguir: À fala de D. Leonor, repleta de promessas das felicidades do consumo, se contrapõe um discurso familiar lacônico, vazio de interação, já que as demais personagens não estabelecem comunicação efetiva com a mãe. No texto de Veríssimo, o uso de diferentes processos enunciativos de construção das personagens produz o efeito de sentido de contraposição paradoxal entre o cheio e o vazio. A ausência de interação efetiva entre os membros dessa família-modelo – as interações se reduzem a breves interpelações interrompidas dos filhos e do marido a D. Leonor e à conferência secreta entre o marido e os filhos, da qual ela não participa – engendra um duplo questionamento: de um lado, do vazio do discurso familiar, fundado na estereotipia de papéis; de outro, dos mecanismos ideológicos do discurso publicitário que, mediado pela televisão, invade, hegemônico, o espaço familiar. A esse duplo questionamento, acrescenta-se ainda o efeito tragicômico da caricatura do que poderíamos descrever como efeitos da leitura acrítica dos anúncios sobre os sujeitos. Consideramos que, como narrativa ficcional, o texto de Veríssimo traz em si uma proposta de leitura: quer fazer o leitor deslizar por três dimensões: da poltrona em que, como telespectador, assiste a comerciais de TV protagonizados por mulheres que vendem produtos de uso no lar, para o espaço da convivência familiar cotidiana e para o lugar do virtual de leitor crítico que lhe foi destinado pelo autor. Ao leitor crítico solicita-se que olhe o olho da câmera que o olha. O espaço textual se desdobra em pelo menos três dimensões: o de simulação do “real” da convivência familiar, o de simulacro das imagens virtuais mediatizadas pela televisão e o de refração do “real” da sociedade de consumo. Essas três dimensões, sem fronteiras nítidas, deslizam umas sobre as outras, mantendo a tensão ente as diferentes vozes que nelas coexistem e interagem. A fala caricatural e aparentemente sem sentido de dona Leonor revela e encobre diferentes discursos, refratando dialeticamente tanto o absurdo de se imaginar que os leitores-espectatores sejam apenas receptáculos dos textos, quanto a ilusão de negar que os discursos sejam constituidores de ideologias e subjetividades. Permanecem, pois, os questionamentos sobre o poder do olho invisível da câmera. Em que medida o discurso publicitário da mídia tem o poder de modelar as subjetividades? Seriam os leitores-espectadores meros recebedores passivos desses discursos? Se assim fosse, todos nós nos transformaríamos em figuras como D. Leonor... Ou será que a invasão da subjetividade pelo discurso hegemônico da mídia só se dá na co-ocorrência de outras condições sociais e subjetivas? No caso das subjetividades femininas, em que medida a mídia tem participado da construção cultural da categoria de “gênero”? Veriam os leitores leigos, sem preparo técnico especial, “o olho da câmera”, revelado pelo texto de Veríssimo? Sentir-se-iam eles desafiados a se perguntar “que texto este?” Tomando o texto, tal como sugere Johnson, como ”corporificação
da vida subjetiva das formas sociais, (JOHNSON in SILVA, 04, p. 75), ou
seja, “como um material bruto a partir do qual certas formas podem
ser abstraídas”, percebe-se que o jogo de uma interlocução
proposta e recusada é reiterado até o final, quando reverbera
a possibilidade de uma transformação futura. Quem sabe o
marido e os filhos não vão se acomodar à nova situação,
já que ela traz vantagens a todos? Pode ser que a intenção
de levar a mulher ao médico seja eternamente adiada e que todos
entrem no jogo e passem a contracenar com D. Leonor, assumindo o papel
de consumidores consumidos pelos produtos e felicidades anunciadas. Ou
não. Ao representar o diálogo interno do marido, o narrador
se coloca no entrelugar de quem ironiza os efeitos do olho invisível
da câmera, metonímia da mídia que vem transformando
cada um de nós em voyeurs do espetáculo da vida e do consumo
e, ao mesmo tempo, em objeto do olhar dessa câmera. Paradoxalmente,
aquilo que vemos na tela da televisão também nos olha e
nos cinde: D. Leonor não está lá mais, mas não
importa – talvez há muito ela já tivesse desaparecido,
identificada com os produtos e serviços domésticos. Paradoxalmente,
a câmera para a qual D. Leonor dirige seu olhar e que a torna visível
aos olhos dos filhos e do marido encena sua morte como ser dotado de subjetividade.
Afirmando que o olhar do outro representa uma região importante
no estabelecimento das relações de alteridade, Marília
Amorim lembra que, para Vernant, “o olhar da Górgona é
aquilo que torna o homem presa de seu outro radical” (AMORIM, 2004,
p.102). Ao leitor supostamente previsto pelo texto, vamos agora contrapor as vozes de leitores empíricos que, depois de ler individualmente o texto, foram entrevistados e tiveram suas respostas e comentários gravados e transcritos. Nossas perguntas iniciais diziam respeito às posições de sujeito assumidas por esses leitores. Colocar-se-iam eles no lugar do leitor previsto pelo texto? Participariam da desconstrução dos anúncios publicitários da televisão? Entrariam em interlocução com as personagens? Enfim, de que forma entrariam na interlocução proposta pelo texto, como interpretariam o pacto de leitura por ele proposto, seu objetivo comunicativo e forma de circulação? Johnson nos adverte sobre as dificuldades de passar do
“leitor no texto” para o “leitor na sociedade”,
afirmando que esse movimento corresponde a “passar do momento mais
abstrato (análise das formas) para o objeto mais concreto (os leitores
reais, tais como eles são constituídos socialmente, historicamente,
culturalmente), o que implica a capacidade para lidar com uma massa de
determinações coexistentes, as quais agem em níveis
muito diferentes.” (TADEU, 2004, p. 87) Segundo o autor, a dificuldade
em tratar a leitura não como recepção ou assimilação,
mas como sendo, ela própria, um ato de produção discursiva
implica considerar que, na vida cotidiana, Apesar dos riscos mencionados por Johnson, procuraremos,
a partir de suas sugestões, depois de relatar as leituras produzidas
pelos sujeitos da pesquisa, levantar hipóteses sobre as variáveis
subjetivas e culturais que teriam participado da produção
de sentido. Iniciemos pelas condições em que a leitura se
produziu e por um rápido perfil desses sujeitos. O texto foi apresentado em uma folha impressa, com o título,
mas sem o nome do autor e sem a referência à fonte de onde
fora extraído. O grupo foi esclarecido de que se tratava de uma
pesquisa sobre leitura e leitores e de que ninguém deveria se preocupar
em acertar ou errar, mas apenas em responder às perguntas que lhe
seriam feitas, expressando o que tinham compreendido do texto. Foi também
explicado aos participantes que as respostas seriam gravadas e a razão
desse procedimento. Cada leitor foi solicitado a ler, individual e silenciosamente
o texto e, em seguida, a responder oralmente, em separado, a algumas perguntas.
Os entrevistados não ouviram as respostas uns dos outros e foi-lhe
solicitado que não trocassem idéias sobre o texto. As entrevistas
foram orientadas, basicamente, pelas seguintes perguntas. Relato comentado das entrevistas Entrevista 1 Entrevista 2 Suposições sobre a forma de circulação
e sobre o pacto de leitura proposto pelo texto Suposições sobre a forma de circulação
e sobre o pacto de leitura proposto pelo texto Suposições sobre a forma de circulação
e sobre o pacto de leitura proposto pelo texto Conclusão Consideremos que os leitores poderiam assumir diante do texto três posições básicas: (1) interlocução com a voz de uma (ou mais) personagem para endossá-la; (2) interlocução com a voz de uma (ou mais personagem) para contestá-la; (3) interlocução com a voz do sujeito da enunciação, o narrador ficcional. O balanço das leituras produzidas pelos sujeitos entrevistados mostra que nenhum deles chegou a entrar em interlocução com o sujeito da enunciação, ou seja, nenhum dos leitores percebeu claramente o efeito crítico intencionalmente buscado pelo enunciador ficcional. Ao deslocar o gênero anúncio publicitário veiculado pela televisão para o contexto da interação familiar, o sujeito da enunciação, num tom humorístico e irônico, estaria convidando o leitor a se colocar no entrelugar dos discursos, na posição crítica de um observador que revela o olho da câmera que nos vê. Apenas a entrevistada 6 se aproximou dessa percepção, mas contrapôs ao discurso consumista o discurso moralista de crítica ao consumo. Nenhum dos leitores compreendeu a presença da câmera como metáfora da mídia e de seu poder de penetrar em nossa subjetividade. Estariam as subjetividades contemporâneas incorporando o fascínio do olhar do outro, construído pelo olho da câmera que mitifica o objeto? Por que não se indagaram sobre o lugar de onde provém o que eles recebem como anúncio publicitário televisivo? Ou como texto verbal de ficção? Chama atenção o fato de que três dos sujeitos pesquisados (os do sexo masculino coincidentemente) tenham considerado o texto como um enunciado inacabado, difícil de compreender, insuficiente para provocar-lhes uma atitude responsiva. É possível que essa avaliação decorra da pouca familiaridade com a narrativa contemporânea, construída como recorte do cotidiano, e da limitação em ativar conhecimentos prévios para completar as lacunas dos textos, o que nos leva a levantar a hipótese de que esses jovens podem estar presos ao cânone do texto narrativo com princípio, meio e fim explicitamente marcados e à concepção de leitura como decifração do enunciado. Outro aspecto interessante foi o fato de que todos os leitores entrevistados tenham entrado em interlocução com a personagem-título; cinco, procurando compreender e justificar seu comportamento; apenas um (a leitora mais nova) contrapôs a esse discurso, outro – o de desidentificação entre felicidade e consumo –, ainda assim parece tratar-se de uma contraposição frágil, não-articulada com o final irônico e aberto proposto pelo sujeito de enunciação do texto. Dentre os leitores que se identificaram com a personagem título, apenas uma leitora percebeu, ainda que de viés, a denúncia dos estereótipos de gênero – a mulher-mãe transformada em produtos e serviços do lar – e inferiu que o objetivo comunicativo do texto seria mostrar ao leitor a importância de interagir de fato com as pessoas da família, especialmente com a mãe, que é sempre esquecida. Ou seja, tal como a outra leitora, inclinou-se para uma leitura no tom de avaliação moral e afetiva. Fica-me a pergunta sobre a força do título no encaminhamento da leitura. Obteríamos o mesmo resultado se o texto fosse apresentado sem título ou com outro título ou se tivesse sido explicitada a fonte e o nome do autor? Teríamos resultados diferentes se o texto fosse apresentado a leitores adultos? Outro ponto a destacar: nenhum dos leitores interpretou
o discurso de dona Leonor como deslocado ou sem sentido, mas como sintoma
de um não-dito, de uma palavra oculta, fortemente relacionada com
a busca de identidade, de bem-estar e de visibilidade dentro da família.
Para esses leitores, mais que o discurso explícito da personagem-título,
importou o sentido de seu ato de dizer, o que poderia revelar a interlocução
desses sujeitos-leitores com a posição de gênero da
mulher dentro da família. Mas por que a empatia com esse discurso
de quase-lamento da mulher? Observe-se que ele está presente tanto
na leitura dos rapazes quanto no das garotas. DONA LEONOR |
||
Voltar |