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CONCEPÇÕES
PRESENTES NA PRÁTICA DOCENTE SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA
E DO ADOLESCENTE
Aline de Mello Dias – Universidade do Estado
do Rio de Janeiro/UERJ1 O presente texto é fruto da pesquisa “As
demandas produzidas na relação entre o conselho tutelar
e a escola”, desenvolvida em parceria entre a Universidade Federal
Fluminense e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, visando colocar
em análise as práticas do conselho tutelar e da escola sobre
a garantia dos direitos da criança e do adolescente. Para tanto,
o projeto, iniciado em 2002, tem levantado, em prontuários dos
conselhos tutelares de Niterói e de São Gonçalo,
os seguintes dados: II A produção da escola como espaço de normalização A escola emerge no contexto do surgimento da sociedade
industrial, contribuindo com a produção de modelos condizentes
com a sociedade moderna que, aos poucos, vão se tornando hegemônicos.
No sentido de afirmá-los, a escola adota padrões disciplinadores,
exercendo uma prática controladora que, fundamentalmente, não
é imposta pelo uso da força física, mas pelo exercício
da coerção e, em especial, da rotulagem dos indivíduos. “O professor, ao sentir-se superior às massas ignorantes, não admitirá suas formas de vida familiar, higiênica, nem, evidentemente, educativa. Não se produz, em decorrência, uma relação de igualdade, de entendimento e reforço entre ‘família’ e escola, mas a escola põe-se em marcha para suplantar a ação socializadora destas mesteirais classes abordadas em uma perspectiva fundamentalmente negativa. Tudo isto contribui a que os discursos pedagógicos e médicos dirigidos a tais classes adotem essencialmente a forma de proibições enquanto que, pelo contrário, para as classes abastadas tenham um sentido positivo, significativo. Desenvolvem-se, assim, práticas médico-pedagógicas que cumprem funções diferenciadas desde o ponto de vista social.” (Álvarez-Uría e Varela, 1991, pág 27) É
importante salientar que os pais normalmente eram, e ainda são,
responsabilizados pelas tentativas de normalização fracassadas
da escola, na medida que, quando a escola não consegue controlar
os alunos, ou seja, não consegue enquadrá-los nas normas
sociais condizentes aos padrões hegemônicos, se recorre a
agentes externos ao meio escolar, como o conselho tutelar, a fim de responsabilizar
a família. “...não podem ser mentirosos livros cuja publicação foi autorizada por reis e que são lidos com prazer por grandes ou pequenos, celebrados por ricos e pobres, letrados e ignorantes, plebeus e cavaleiros”. (Cervantes, 2005, p.75) Em outras
palavras, o que se pode inferir é que a hierarquia representa um
poder, que opera no processo de produção de indivíduos
subordinados, produzindo status, seja pela condição de nobreza,
como na antiga sociedade feudal, seja pela condição burguesa,
na atual sociedade capitalista. III As práticas pedagógicas e os direitos da criança e do adolescente Da consulta aos prontuários do conselho tutelar de Alcântara registramos as seguintes como demandas mais freqüentes provindas da escola: requisição de certidão de nascimento, mudança de turno, problemas de aprendizagem, violência e comportamento. O conteúdo dos prontuários mostrou-nos que a escola se comunica com o conselho tutelar para pedir encaminhamentos para alunos indisciplinados, para alunos considerados com problema de aprendizagem ou para aqueles que a escola considera que precisam de atendimento especializado (médicos, psicólogos, etc.). Algumas dessas demandas são produzidas pela própria relação pedagógica e, portanto, fazem parte da rotina escolar, não sendo casos excepcionais. Nessa medida, chamou-nos a atenção que problemas de aprendizagem, de disciplina escolar, de dificuldades de relacionamento dentro da escola cheguem ao conselho tutelar, para que este resolva pontualmente cada um deles. Certamente, a nossa leitura dos fatos, face os prontuários do conselho tutelar, difere tanto daquela que a equipe pedagógica manifesta ao recorrer ao conselho tutelar, como da que os conselheiros compartilham ao encaminhar particularmente cada caso, reconhecendo a demanda como sua. De uma perspectiva reivindicativa, a idéia que vem à tona é que a escola teria que ter condições para enfrentar tais problemáticas ou, se necessário apoio externo, a ela caberia o encaminhamento aos órgãos adequados. Se a escola sistematicamente vive tensões e não encontra recursos para enfrenta-las, será que não seria atribuição do corpo docente e dos agentes escolares, de maneira geral, levar o caso à sua respectiva estrutura pedagógica para que a rede de educação se equipe devidamente? Um bom exemplo para instrumentalizar esta discussão é a demanda por certidão de nascimento. Chegam ao conselho tutelar inúmeros pedidos de certidão, sabendo-se, de antemão, que não é o conselho que as emite. O que ele faz é derivar o pedido ao devido órgão, onde a família recomeçará, mais uma vez, a fazer o mesmo pedido. Se a certidão de nascimento é uma condição para se matricular na escola, se a escola é obrigatória e se no Rio de Janeiro é comum as pessoas chegarem à escola sem o registro de nascimento, será que a própria área da educação não teria que provocar o enfrentamento desse entrave, que por ora é administrado de forma desgastante e onerosa para uma população já pauperizada? Ir, vir, solicitar, esperar, pagar passagem, deixar as atividades para enfrentar burocracias..... todo um desgaste que se multiplica quando um órgão não se sente responsabilizado por um elemento que é fundamental para se tenha acesso a ele. A mesma lógica liberal que individualiza, que especializa, que hierarquiza, que fragmenta é a que impede que um fato seja lido de forma imanentemente correlata a outro. Fatos completamente correlacionados que são percebidos de forma dissociada, da mesma forma que se dissocia a disciplina da criança na escola do contexto pedagógico, indicam leituras que desagregam e desmobilizam, buscando no outro as possíveis soluções e despotencializando, assim, o espaço pedagógico. Atrasos, problemas de relacionamento envolvendo alunos e problemas de aprendizagem são casos que, sistematicamente, chegam ao conselho tutelar, como se este fosse um departamento pedagógico a mais da estrutura educacional. Parece que a escola não tem sido capaz de construir mecanismos de enfrentamento a questões como estas que fazem parte do seu cotidiano e que, agora, também são parte da rotina do conselho. No entanto, talvez possamos buscar algumas ferramentas para analisar esta prática, que tem se tornado freqüente em Alcântara. Se retomamos a história da produção da escola como espaço de disciplinarização e controle, talvez possamos pensar que uma vez que os seus mecanismos já não produzem os efeitos que lhe foram atribuídos, ela mesma não consegue se reconhecer e acaba por buscar outros espaços mais eficientes nessa tarefa. As evidências do sentido da escola estão em todas as suas estruturas. Foucault traz a arquitetura como uma delas quando percebe que trata-se de uma arquitetura facilitadora da vigilância: “... uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista..., mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado - para tornar visíveis os que nela se encontram;...um operador para a transformação dos indivíduos: agira sobre aquele que abriga, dar domínio sobre seu comportamento..., oferece-los a um conhecimento, modifica-los." (Foucault, 1987, p.144) A escola e a educação passam a ser minuciosamente planejadas tanto para tornar seus alunos apenas conhecedores dos conteúdos necessários ao seu nível social, como também para que se internalize o chamado fracasso como sendo próprio do indivíduo. Podemos perceber, através dos prontuários abertos por “problema de aprendizagem” que, muitas vezes, o caso é trazido pela escola como se o aluno fosse o único culpado por não aprender, por falta de esforço pessoal ou por sua condição socioeconômica. “A classe como condição social, com regras próprias, regras essas que podem ser mudadas está perdida de vista. As “capacitações” de alguém determinam a sua situação.” (Sennet, 1988, p. 327-328) A dificuldade de aprendizagem, em alguns casos, são tratadas como questão psicológica, como podemos ver nos prontuários do conselho tutelar, quando solicitado em anexo acompanhamento psicológico, sem que haja qualquer indicação de que o caso esteja relacionado com as práticas educacionais. Pois, quando o professor se depara com a dificuldade de aprendizagem do aluno, ele tende a legitimar que esse fracasso deriva dos possíveis problemas psicológicos do aluno ou de problemas de “desestrutura familiar”. Mas, não se questiona quanto à sua atuação docente, e a toda a falta de assistência por parte do Estado. Os efeitos de tais práticas são explicados por Costa quando diz que: “A normalização das condutas e sentimentos operam em outro nível. Ela procede de forma oposta, despolitizando o cotidiano e inscrevendo nas micropreocupações em torno do corpo, do sexo e do intimismo psicológico.” (Costa, 1978. p. 17) O mesmo
ocorre com os problemas de comportamento que a escola encaminha ao conselho.
O fato de serem encaminhados principalmente casos isolados pode significar
que a escola tem no Conselho tutelar um órgão disciplinar,
que teria maior autoridade para encaminhar ou mesmo punir os casos com
os que ela não está conseguindo lidar. “Vigilância permanente sobre indivíduos por alguém que exerce sobre eles um poder – mestre-escola, chefe de oficina, médico, psiquiatra, diretor de prisão – e que, enquanto exerce esse poder, tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de construir, sobre aqueles que vigia, a respeito deles, um saber.” (Foucault, 1996, p.88) O discurso
“lugar de criança é na escola” vem quase sempre
acoplado à idéia de que devemos ocupar todo o tempo ocioso
da criança. Ora, se nos lembrarmos aqui das lições
do filósofo-historiador Michel Foucault, veremos que um controle
produtivo sobre o uso do tempo aliado ao controle da distribuição
do espaço, que ocorre com a perda do trânsito livre, torna-se
um dos principais dispositivos usados no processo de disciplinarização
dos corpos. No mundo do capital, o tempo deve ser utilizado produtivamente
na preparação do indivíduo para sua inserção
no mercado formal de trabalho, busca-se extrair um máximo de eficácia
produtiva em um mínimo de tempo através do processo de docilização
dos corpos. "Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar 'as disciplinas'" (Foucault, 1987, p.126). A disciplina possui, portanto, um caráter preventivo, atuando não apenas em momentos específicos, mas de diversas formas e em diferentes espaços. A teia disciplinar estava presente no olhar do professor, nos seus gestos, na lembrança dos feitos memoráveis dos heróis nacionais, no controle do corpo (higiene, educação física), do tempo (do relógio, da pontualidade), do espaço (localização dos colégios, das classes, dos pátios, dos banheiros) e de tantos outros recursos disciplinares pulverizados no ambiente escolar. Esse controle disseminado, característico da disciplina, segundo Foucault: "implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos" (Foucault, 1987, p.126). De acordo com Foucault, a disciplina exerce um poder sobre os corpos que permite ampliar significativamente sua produtividade e utilidade. Para este autor "a disciplina fabrica corpos submissos exercitados, corpos 'dóceis'. Segundo ele, "O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico: o exame." (Foucault, 1987). Antes de tudo, porém, disciplina importa numa série de mecanismos simples, práticos e baratos que apresentam diversas vantagens sem onerar o sistema, sendo, por esse motivo, muito lucrativos. Talvez pudéssemos registrar entre os lucrativos efeitos dos mecanismos de disciplinarização escolares, a sua intervenção nas famílias. Estas passam a ser, ao mesmo tempo que colocadas como aliadas da escola, alvo das normas disciplinares. Através de seus filhos elas também são controladas, sendo-lhes exigida responsabilização pelos seus membros. Não por acaso também vão “pedir socorro” ao conselho tutelar, mesmo em se tratando de situações produzidas dentro do espaço escolar. A leitura da relação de direitos presente na prática docente chega à família como uma ordem e esta, sem elaborar outra concepção sobre os direitos relativos à educação, chega ao conselho tutelar para que lhe ajude a “resolver” os problemas que se apresentam como uma dificuldade particular para que os seus filhos ingressem ou permaneçam na escola. IV Demanda da família ao conselho tutelar em relação à escola De acordo
com os dados coletados podemos observar que a família recorre ao
conselho tutelar para resolver problemas de comportamento de crianças
e adolescentes na escola. Entendemos que esta pratica é efeito
de uma política educacional que não consegue resolver os
problemas inerentes à escola em seu espaço e acaba por recorrer
ao conselho tutelar. As mães chegam com as seguintes queixas em
relação a seus filhos: “estão sem limites”,
“fazem bagunça na sala de aula”, “se recusam
a freqüentar a escola” ou “faltam aulas para namorar”,
“não respeitam os professores”. Elas recorrem ao conselho
tutelar na expectativa de que o conselheiro resolva o “problema
de comportamento” de seus filhos. “A fim de assegurar a ordem pública, o Estado se apóia diretamente na família jogando indissociavelmente com o seu medo do descrédito público e com suas ambições privadas. Isto tudo se passa segundo um esquema de colaboração muito simples, o Estado diz às famílias: mantende vossa gente nas regras da obediência às nossas exigências, com o que, podereis fazer deles o uso que vos convier e, se eles transgredirem vossas injunções, nós vos forneceremos o apoio necessário para chamá-los à ordem.” (Donzelot, 1980, p. 51) No caso do
acesso à escola a família denota o seu desespero particular
por conseguir uma vaga para seus filhos, mesmo que tenha que cair nas
malhas do comércio da educação, sem recursos para
tanto. No conselho tutelar de Alcântara é enorme a quantidade
de casos de inadimplência na escola particular. Isto indica que
muitas famílias não têm escola pública ou não
confiam nela e que recorrem à rede particular, sem conseguir manter
o contrato comercial com o estabelecimento. Nesses casos a família
vai ao conselho para liberar a documentação escolar e poder
levar o aluno para a rede pública de ensino, mas o faz a partir
de uma lógica individualizada, sentindo-se culpada pela falta de
dinheiro. Não é discutida por ela ou pelo conselho a falta
de escolas públicas no município, o que expressa a falta
deste tipo de discussão em todas as instâncias nas quais
a família circula. A falta de pagamento por um serviço essencial
como o é a escola acaba sendo vista como falta de responsabilidade
da pessoa que coloca o filho numa escola particular sem condições
para efetuar o pagamento. “...ataca a escola pública a partir de uma série de estratégias privatizantes, mediante a aplicação de uma política de descentralização autoritária e, ao mesmo tempo, mediante uma política de reforma cultural que pretende apagar do horizonte ideológico de nossas sociedades a possibilidade mesma de uma educação democrática, pública e de qualidade para as maiorias. Uma política de reforma cultural que, em suma, pretende negar e dissolver a existência mesma do direito à educação. Poderíamos inclusive ir mais além, aventando a hipótese de que esta ruptura do sentido atribuído ao direito à educação constitui precondição que garante (ou, ao menos possibilita) o êxito das políticas de cunho claramente antidemocrático e dualizante. Na medida em que o neoliberalismo realiza com êxito sua missão cultural, pode também realizar com êxito a implementação de suas propostas políticas. Em outras palavras, o neoliberalismo precisa – em primeiro lugar, ainda que não unicamente – despolitizar a educação, dando-lhe um novo significado como mercadoria para garantir, assim, o triunfo de suas estratégias mercantilizantes e o necessário consenso em torno delas.” (Gentilli, 1995, pág.244) Á medida que a família é colocada como responsável por garantir a escolarização de seus filhos e faltam equipamentos públicos, se recorre ao comércio da educação, tornando-a um serviço acessível aos que podem pagar por ela. Logo, esta concepção da escola como comércio acaba por reforçar a idéia de que a família deve ser capaz de suprir a necessidade de seus membros, impedindo uma postura reivindicativa por políticas públicas em favor da garantia dos direitos. Bibliografia CERVANTES,
Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Rio de Janeiro, Revan Ed., 2004.
Tradução e adaptação de Ferreira Gullar. |
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