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PRESENÇA
DE MITOS GREGOS NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL: UM ESTUDO SOBRE AS ADAPTAÇÕES
MODERNAS DO MITO DE HÉRCULES
Juliana de Souza - Faculdade de Educação
- Universidade Estadual de Campinas - FE /UNICAMP
Introdução
Nos últimos anos, temos observado, nas editoras
e escolas brasileiras, um aumento do interesse pelo conjunto de narrativas
que chamamos de “mitologia grega”. Encontramos, no mercado
editorial, diversas adaptações de mitos gregos para crianças
e jovens, e, nas escolas, professores propondo leituras e ciclos de pesquisa
e trabalhos com personagens como Zeus, Deméter, Hades, Psiquê,
Eros, Afrodite.
A intensificação desse interesse pela mitologia grega nos
traz questionamentos, a respeito não apenas do porquê tratar
da mitologia em obras destinadas ao público infantil, mas sobretudo
a respeito de como se trata a mitologia nestas obras. Nesse sentido, esse
trabalho, uma pesquisa de mestrado em andamento, se propõe a analisar
as versões antigas e modernas do mito de Hércules. A escolha
desse mito como objeto de pesquisa é motivado tanto pelo interesse
na narrativa heróica, já que os mitos referentes aos heróis
antigos ocupam boa parte das adaptações mitológicas
infanto-juvenis, quanto pela quantidade e variação dessas
narrativas que focalizam a figura de Hércules.
Héracles ou Hércules? – a figura do
herói na Antigüidade.
Para analisarmos as adaptações modernas
de Hércules, temos que perseguir as “origens” desse
herói. Ora, ninguém sabe ao certo quando surgiu a figura
de Hércules e o ciclo de narrativas que estão em torno do
seu nome. O que sabemos é que os registros mais antigos que mencionam
a existência desse herói – como as poesias de Homero
e Hesíodo, poetas gregos que viveram, respectivamente, nos séculos
VIII e VII a. C. – o nomeiam como Héracles, e não
Hércules, sendo este o nome dado pelos romanos, que se apropriaram
e difundiram muito na cultura grega.
O nome grego, Héracles, traz também um importante dado sobre
a história do herói. Composta dos radicais Hera, nome da
deusa olímpica, esposa de Zeus, e Kléos, que significa glória,
o nome grego Heraklês significa “o que fez a glória
de Hera”. Inclusive, há referências que mostram que
o herói só recebeu esse nome depois de realizar um ciclo
de 12 trabalhos impostos pela deusa. Antes disso, ele é chamado
de Alkéides, Alcides, o neto de Alceu, nome proveniente de Alké,
que significa “força em ação, vigor”.
Os poemas arcaicos gregos descrevem Héracles como um semi-deus,
que, após inúmeros e sofridos trabalhos, conquistou a imortalidade,
casando-se com Hebe, a deusa grega que personifica a Juventude:
“É
Heracles, filho de Zeus, que vou cantar,
o maior – e muito – entre os homens da terra,
aquele que, na Tebas de belos coros, Alcmena
pôs no mundo, depois de unir-se ao Crônida de nuvens sombrias.
Primeiro ele errou sobre a terra e o mar imenso, e sofreu;
Mas ele triunfou, de tanta bravura, e sozinho, executou
Muitos trabalhos audaciosos, sem igual. Agora,
Ao contrário habita feliz, de hoje em diante, a mansão
Do Olimpo nevado, e tem por esposa Juventude de belos tornozelos.
Salve, Senhor, filho de Zeus! Dê-me virtude e riqueza.
“Alcmena
gerou a força de Héracles
unida em amor a Zeus agrega-nuvens.
(...)
A Hebe,
o filho de Alcmena de belos tornozelos
Valente Héracles após cumprir gemidosas provas
No Olimpo nevado tomou por esposa veneranda,
Filha de Zeus grande e Hera de áureas sandálias;
Feliz ele, feita a sua grande obra, entre imortais
Habita sem sofrimento e sem velhice para sempre.”
Tanto no
poema homérico quanto no poema hesiódico, o destino imortal
de Héracles, o herói que mesmo sendo filho de Zeus tem de
passar por inúmeras provas para alcançar a eternidade “sem
sofrimento e sem velhice”, é simbolizado com seu casamento
com Hebe, a Juventude, que, por ser filha de Hera, atesta a trégua
da deusa e sua glorificação pelos grandes feitos do herói.
Cientes, pois, dos significados atrelados aos nomes que esse herói
recebeu nas tantas narrativas sobre seus feitos, e de seu destino de sofrimentos
que resulta na imortalidade, surge a indagação do por que
esse ciclo de trabalhos significa a “glória de Hera”,
o que automaticamente nos remete ao nascimento do herói. Héracles
é filho de Zeus e Alcmena, neta do herói Perseu. Ela, casada
com Anfitrião, esperava que o marido voltasse da guerra contra
os Tafos (a qual ele havia empreendido para vingar a morte dos irmãos
de Alcmena) para consumar o casamento. Antes que Anfitrião voltasse,
Zeus se metamorfoseia, assumindo a aparência de Anfitrião,
e se deita com Alcmena, fazendo com que uma noite se prolongue em três.
Nessa longa noite, Héracles é concebido.
Hera, a deusa esposa de Zeus, é referida nas narrativas antigas
como ciumenta, irada contra as amantes e os filhos adulterinos de Zeus.
Por isso, ela vai fazer de tudo para destruir Héracles. A começar
por impedir que ele se torne rei de Micenas: quando Zeus anunciou que
o primeiro descendente seu que nascesse desde então seria o rei,
ela ordenou a Ilítia, deusa dos partos, que apressasse o nascimento
do filho de Estênelo, descendente de Perseu. Essa criança
nasceu de 7 meses, e foi chamada de Euristeu, enquanto o filho de Alcmena
nasceu de 10 meses. Portanto, Euristeu tornou-se rei de Micenas, e terá
um importante papel nas narrativas dos grandes feitos do herói:
será ele que, inspirado pela deusa Hera, imporá ao herói
os famosos 12 trabalhos, como é mencionado no canto XIX da Ilíada:
“O
próprio Zeus poderoso, que os deuses e os homens supera,
em suas malhas se viu de uma feita, no dia em que a esposa
Hera, conquanto mulher, o enganou com sutil artifício.
Foi quando Alcmena, de insigne beleza, à luz dar deveria
Héracles forte no burgo de Tebas de belas muralhas.
Zeus, exultante, dirige-se a todos os numes, e fala:
‘Deuses eternos e deusas, agora atenção prestai todos
ao que eu vos digo e no peito me ordena falar-vos o espírito.
As Ilitiias, que as dores do parto presidem, hão de hoje
À luz trazer refulgente um varão que vai ter o comando
Sobre os vizinhos, por ser de uma estirpe que de mim se origina’.
Com solapada intenção, Hera augusta lhe disse, em resposta:
‘Tenho certeza de que não tenciona fazer o que dizes.
Mas, se, em verdade, assim pensas, Olímpio, é preciso jurares
Que há de comando exercer sobre todos os povos vizinhos
O alto varão que entre os pés de mulher a cair vier, acaso,
Desde que seja da estirpe que tu, claro Zeus, engrandeces’.
Sem suspeitar-lhe a dolosa intenção, fez a jura solene
Zeus poderoso, do que lhe adviria, depois, muito dano.
Hera, de um salto, baixou das cumeadas do Olimpo nevoso,
A Argos da Acaia de belhas mulheres chegando, onde estava
A venerável consorte de Esténelo, o nobre Perseida.
De sete meses estava ela grávida; a deusa lhe trouxe
O filho à luz, apesar de imaturo, e cessar fez de pronto
As dores fortes de Alcmena, detendo as cruéis Ilitiias.
Tudo isso pronto, voltou para o Olimpo e falou a Zeus grande:
‘Zeus pai que os raios dominas, notícia especial quero dar-te:
já veio à luz o varão que será dos Argivos
o chefe,
filho de Esténelo, o nobre Perseida, a saber, Euristeu.
É de teu sangue e, assim, digno de ser dos Argivos o chefe’.
Dor muito aguda Zeus na alma sentiu, ao ouvir a notícia. (...)
Muito, depois, suspirava Zeus pai, quando via o dileto
Filho nos duros trabalhos que o forte Euristeu a ele impunha.”
Há
episódios que mencionam que Hera tentara, antes dos “trabalhos”,
destruir o herói, que demonstrava força descomunal desde
a mais tenra infância. Enviou ao berço do menino duas venenosas
serpentes que ele esmaga com as próprias mãos, para surpresa
de Anfitrião. Há registros também, em mitógrafos
antigos como Apolodoro, da força e ira incontroláveis de
Heracles. Na adolescência, ele recebeu a educação
típica dos jovens gregos na Antiguidade: aprendeu a conduzir bigas,
a manejar o arco, o dardo, a decifrar as letras e a tocar a lira. Entretanto,
Héracles demonstra indisciplina e descontrole ao ser repreendido
por Lino, seu professor de música, que o herói mata a golpes,
com a própria lira. Temeroso que isso viesse a acontecer novamente,
Anfitrião envia o filho para o campo, para cuidar do gado. A desmesura
do herói não se manifesta apenas na força, mas também
na libido: na primeira façanha do herói, a caça e
morte do leão de Citerão, nas terras do rei Téspio,
Héracles, aos 18 anos, por 50 noites seguidas, fecunda cada uma
das 50 filhas do rei, das quais nascem as tespíades. Retornando
do reino de Téspio, mais um episódio que menciona a violência
incontrolada do herói: ao encontrar mensageiros do rei de Orcômeno,
Ergino, que vinham cobrar um tributo de cem bois que Tebas lhe pagava
anualmente, Héracles os agrediu, cortando seus narizes, orelhas
e mãos, e, pendurando-os ao redor do pescoço dos mensageiros,
mandou-os de volta para dizer que aquela era a paga do tributo. Por conta
desse episódio trava-se uma guerra entre Tebas e Orcômeno,
em que Hércules derrota este último. Grato, o rei de Tebas,
Creonte, deu-lhe em casamento sua filha Mégara. Com ela, o herói
teve muitos filhos (há variações quanto ao número
exato, de 3 a 8 filhos, conforme a fonte do mito).
Será sobre tais filhos que Hera tentará nova vigança
sobre Héracles. A deusa lançou sobre o herói a ánoia,
a demência, um louco furor que fez com ele se lançasse, descontrolado,
sobre seus próprios filhos, matando-os a flechadas e lançando
fogo sobre eles. Quando recupera a razão, o herói repudia
sua esposa, e dirige-se ao Oráculo de Delfos, onde indaga a Apolo
como purificar-se de tão hediondo crime. A pitonisa lhe responde
que ele deve colocar-se a serviço de seu primo Euristeu. Ele lhe
teria sugerido uma série de trabalhos penosos, praticamente impossíveis
de serem realizados por qualquer mortal. Grande parte das versões
sobre o ciclo de trabalhos de Héracles menciona 12 provas, embora
alguns mitógrafos, como Apolodoro, só cite 10. São
eles:
• Matar
um leão monstruoso (filho de Ortro, irmão da Esfinge, da
Quimera e da Hidra de Lerna, todos monstros célebres na mitologia
grega) cuja pele era invulnerável, e que devastava a região
da Neméia;
• Matar a Hidra de Lerna, serpente aquática que habitava
o pântano de Lerna, e que tinha várias cabeças, uma
delas imortal e as demais, quando cortadas, multiplicavam-se em duas.
Para esse trabalho, Héracles cortou as cabeças do monstro,
cujas feridas iam sendo imediatamente queimadas por seu sobrinho Iolau,
para que as cabeças não renascessem. Héracles aproveita
o veneno da Hidra e embebe suas flechas nele, tornando-as ainda mais poderosamente
mortais;
• Capturar e trazer vivo, ao rei de Micenas, um monstruoso javali
que vivia na montanha de Erimanto, na Arcádia;
• Capturar e levar a Euristeu a corça de Cerinia, uma corça
sagrada, que tinha pés de bronze e cornos de ouro, pertencente
à deusa Ártemis. Por ser o animal ágil e veloz, o
herói teve de perseguí-lo por um ano;
• Exterminar aves gigantescas e antropófagas que habitavam
em torno do lago Estinfale. Nesse trabalho, o herói recebe a ajuda
de Hefesto, que, a pedido de Atena, fabrica castanholas de bronze, que,
com seu barulho, faz com que as aves saiam de seus abrigos nas florestas,
para que o herói possa acertá-las com suas flechas envenenadas;
• Limpar os estábulos de Áugias, rei de Elis e dono
de um imenso rebanho, cujo esterco se acumulava há 30 anos. O herói
pede a Áugias, como paga da tarefa, um décimo do rebanho,
com o que o rei concorda, por considerar impossível que Héracles
o consiga realizar sozinho. A tática do herói foi desviar
o curso dos rios Alfeu e Peneu para dentro dos estábulos, fazendo
com que a força das águas removesse tamanha sujeira. Áugias
se recusa a cumprir sua promessa e Héracles, reunindo posteriormente
um exército na Arcádia, invade Elis e mata o rei Áugias,
entregando o trono ao príncipe Fileu, que testemunhara a seu favor.
• Capturar e trazer vivo a Micenas o touro de Creta, que o deus
Posídon havia criado e enfurecido quando o rei Minos, encantado
com a beleza do animal, não quis sacrificá-lo ao deus.
• Capturar e levar para Argos as éguas de Diomedes, feras
antropófagas que eram alimentadas com a carne de estrangeiros.
Após lutar com Diomedes e vencê-lo, Héracles lança-o
como alimento a seus próprios animais, o que os apaziguou e permitiu
que ele os conduzisse até Micenas.
• Conseguir, para oferecer a Admeta, filha de Euristeu, o cinturão
de Hipólita, rainha das Amazonas. Héracles teria sido acompanhado
de voluntários, entre eles, Teseu. Ao chegarem a Temiscira, pátria
das Amazonas, Hipólita concorda em entregar o cinturão,
mas Hera disfarça-se em amazona e suscita uma batalha entre eles,
na qual Héracles mata a rainha, pensando ter sido traído
por ela. Outra versão diz que o herói teria feito prisioneira
Melanipe, irmã de Hipólita, e esta concordou em entregar-lhe
o cinturão em troca de sua liberdade.
• Apossar-se do rebanho do monstro Gerião, neto de medusa,
um gigante de três cabeças localizadas num corpo tríplice
até os quadris. O rebanho de bois vermelhos, situado na ilha de
Eritia, era guardado pelo pastor Euríton e pelo cão Ortro,
de três cabeças. O herói teve, para isso, de matar
o cão com sua clava e, em seguida, o pastor, e, para atravessar
o oceano com o rebanho, usou uma imensa Taça, fornecida por Hélio,
o deus sol, que tinha sido ameaçado pelo herói.
• Descer ao mundo dos mortos, e trazer Cérbero, o cão
de três cabeças, cauda de dragão e dorso repleto de
serpentes, guardião do reino das sombras. Hades, senhor dos mortos,
concorda que ele o capture, contanto que não usasse nenhuma de
suas armas convencionais e não o ferisse. Héracles quase
sufoca o cão, que se rende e deixa-se conduzir até Micenas.
• Levar a Euristeu as maçãs de ouro, guardadas por
um dragão de cem cabeças, que ficavam no jardim das Hespérides,
as três ninfas do poente. Para isso Héracles teve de descobrir
o caminho para o jardim, informação esta que apenas o velho
Nereu possuía. Este metamorfoseia-se em várias seres, para
não informar o herói, que, segurando-o, obriga-o a contar
a ele a localização da árvore das maçãs
de ouro. Chegando lá, pediu a Atlas, o titã que sustentava
a abóboda celeste sobre os ombros, que colhesse para ele as maçãs,
que ele ficaria em seu lugar. Atlas aceita, mas declara que ele mesmo
levará as maçãs a Euristeu. Fingindo concordar, Héracles
lhe pede que segure a abóboda mais um instante, para que ele pusesse
uma almofada nas costas. O titã não desconfia e, quando
o herói se vê livre, vai embora com as maçãs
de ouro, e entrega-as a Euristeu.
Esses trabalhos
não tem uma ordem específica, nem tempo quantitativo determinado.
Além do ciclo acima descrito, há também as chamadas
“gestas secundárias”, aventuras diversas, atreladas
ou não aos 12 trabalhos. Além de outras aventuras, são
também mencionadas outras mulheres na vida de Héracles:
Dejanira, Íole e Onfale. Segundo a versão mais conhecida
do mito, Dejanira seria a responsável pela morte do herói:
teria dado ao marido, acreditando ser isso um sortilégio para que
ele não a esquecesse, uma túnica envenenada. O herói,
sentindo a túnica colar-lhe nos membros e queimar-lhe a carne,
teria feito uma pira no monte Etna, onde, tendo seu corpo queimado, foi
arrebatado por Zeus e levado para o Olimpo, onde transformou-se num deus,
cultuado entre os mortais.
Narrativa
heróica antiga e literatura infantil: encontros e desecontros.
De um modo
geral, as narrativas destinadas ao público infanto-juvenil que
adaptam o mito de Héracles, se concentram no ciclo dos 12 trabalhos.
Entretanto, a maneira de apresentar os episódios do mito varia.
Há autores que tentam reproduzir diversos episódios da vida
do herói de maneira canônica, ou seja, conservando certa
fidelidade com a tradição dessas narrativas, e há
autores que recontam o mito, re-inventando-o.
A primeira adaptação do mito de Héracles para a literatura
infantil brasileira foi Os Doze Trabalhos de Hércules, de Monteiro
Lobato, publicada em 1944 (atualmente publicada pela editora Brasiliense).
Em conjunto com O minotauro (1939), a obra apresenta aos pequenos leitores
uma imagem bastante idealizada da Grécia Antiga, através
das fantásticas viagens (através do pó de pirlimpimpim)
que para lá fazem os habitantes do Sítio do Picapau Amarelo.
Tais viagens são motivadas por D. Benta, que fala às crianças
sobre o herói grego Hércules, de sua origem e aventuras.
Durante sua “estadia” na Antiga Grécia, Emília,
Pedrinho e Visconde convivem com Hércules e ajudam o herói
a realizar seus 12 trabalhos, e, nos intervalos entre um e outro trabalho,
os personagens narram vários episódios da mitologia grega.
Esse livro é um bom exemplo de re-invenção do mito
– ao invés de seguir a narrativa canônica, tradicional,
dos mitos relacionados ao herói, o autor recria várias situações,
uma vez que insere nos episódios a interferência das crianças,
principalmente de Emília, posta como “cérebro do herói”,
já que é ela quem tem as idéias que solucionam os
problemas de Hércules.
De Lobato até a literatura infantil contemporânea muitas
coisas mudaram. Considerado por muitos como um dos “fundadores”
de nossa literatura infanto-juvenil, Lobato faz parte de um contexto em
que a literatura infantil atrelava-se exclusivamente à questão
da leitura da criança. Hoje, a literatura infantil não só
faz parte dessa preocupação, como também se associa
ao brinquedo, ao entretenimento. Por isso, nas adaptações
modernas, temos uma grande preocupação com o formato do
livro, com suas ilustrações, com materiais com os quais
a criança possa interagir.
Um exemplo disso é a Os doze trabalhos de Hércules, de Cristina
Marques (Editora Leitura). Publicado em 2002, o texto de Cristina Marques
não apresenta a situação de enunciação
das aventuras do herói, presente na adaptação de
Lobato, e sim se constitui a “pura” narrativa dos doze trabalhos.
Sequer a origem divina de Hércules é ressaltada a princípio,
sendo colocada como motivação para os doze trabalhos a inveja
de Euristeu pela força e coragem de Hércules. Temendo que
o herói lhe roubasse o trono, o rei tenta matá-lo expondo-o
a tarefas perigosas. Há apenas menção de cada um
dos 12 trabalhos, ou seja, são relatados de maneira muito breve,
sem um desenvolvimento narrativo como o de Lobato: a maioria do espaço
das páginas em tamanho A4, numa edição em capa dura,
é reservado para ilustrações grandes e coloridas.
Há uma quantidade enorme de adaptações que circulam
atualmente no mercado editorial brasileiro (infelizmente não podemos
tratar de todas nessa comunicação), mas, certamente, são
nas publicações que exibem a marca Disney que mais se evidencia
a ligação entre a narrativa para crianças e o entretenimento.
Tais publicações, geralmente, reproduzem, de maneira mais
que sucinta, a narrativa (ou partes) de um desenho animado em longa metragem,
produzido pela Walt Disney Pictures, em meados da década de 90.
A adaptação da Disney apresenta muitas variações
do mito tradicional de Hércules. Primeiramente, o herói
é apresentado como um deus, pois é filho de Zeus e Hera,
não de Alcmene. Assim sendo, a vingança de Hera não
se configura como motivo para os trabalhos. Hércules era treinado
pelo sátiro Filoctetes, que sonhava preparar um herói que
se tornasse célebre.O perseguidor de Hércules é Hades,
que quer destruir Hércules e usa para isso Meg, uma moça
que tinha “vendido sua alma” a Hades e, para recuperá-la,
aceita seduzir o herói e destruí-lo, mas se apaixona por
ele.
Esses três exemplos de adaptação do mito de Hércules
para obras infanto-juvenis são interessantes, pelas variações
que apresentam do mito tradicional, para pensarmos na figura do herói
representada pela narrativa heróica antiga e pela narrativa moderna
infanto-juvenil.
Junito Brandão, em seu terceiro volume de Mitologia Grega, analisando
a etimologia da palavra herói, ressalta que o significado dela
seria “aquele que nasceu para servir, o guardião, o defensor”.
Segundo a morfologia dos mitos heróicos gregos, o herói
é um ser sobre-humano, nem deus nem mortal, que tem um nascimento
complicado e crescimento maldito. Após sobreviver às adversidades,
ao sair da infância, será preparado para sua grande missão:
instaurar a ordem. A narrativa heróica grega remete a um tempo
primitivo em que não havia uma ordem instituída. A missão
do herói grego, através de sua luta, e sobretudo, através
de sua morte, é estabelecer a ordem. A narrativa heróica,
numa análise profunda, pode ser considerada como um grande ritual
iniciático, em que se coloca em xeque a civilização
humana – o estabelecimento do auto-controle do homem e da ordem
coletiva, enfim, a “humanização do mundo”, a
educação.
Nesse sentido, a morte é um aspecto fundamental do mito heróico.
Através da morte trágica do herói se estabelece um
culto que o eterniza, e que faz da narrativa dos seus feitos uma referência
para a posteridade. Celebravam-se na Grécia os valores guerreiros
dos heróis, o que implicava ao culto heróico uma importância
cívica, principalmente em períodos de guerra, em que acreditava-se
que o herói protegia sua pólis natal. A morte do herói
não só se justifica no culto cívico e na afirmação
da sobre-humanidade do herói, como reforça seu caráter
de servidor e instaurador da ordem. Uma vez que sua luta para a instauração
da ordem, seu serviço, é finito, não há mais
sentido para sua vida, e a morte trágica o leva a seu derradeiro
destino: a glória, que significa a eternidade para a guerreira
sociedade grega arcaica.
Após esse breve esboço sobre o mito heróico na cultura
grega, podemos traçar hipóteses sobre os diferentes valores
atrelados ao herói nas narrativas modernas. Se considerarmos o
significado de “herói” que Junito Brandão depreende
da etimologia da palavra, podemos questionar o papel de “servidor”
do herói grego, enquanto “estabelecedor da ordem”,
nas adaptações modernas. Se a narrativa heróica vem
de um tempo primitivo, qual seu sentido na sociedade pós-industrial
em que já existe uma ordem estabelecida?
O herói da narrativa moderna expressa freqüentemente, ao invés
do estabelecimento da ordem, uma luta contra a ordem já estabelecida,
da qual o resultado é o fracasso niilista ou uma realização
no plano pessoal. Não existe uma vitória no plano coletivo,
e uma modificação da ordem coletiva, o que seria um reestabelecimento
da ordem. Nesse ponto, inclusive, a figuração da morte do
herói na narrativa moderna configura-se como fracasso, e não
como glória.
O que acontece na apropriação do mito heróico pela
narrativa moderna é uma aproximação do herói
grego ao herói moderno. Em muitas adaptações, percebemos
uma ênfase à luta do herói, cujos motivos pessoais
são evidentes, e não motivações coletivas.
Desses motivos pessoais, destaca-se o amor, mola propulsora de tantas
narrativas modernas de massa. É obvio que o hiero gamos, o casamento
do herói na narrativa grega, está em seu destino, mas não
se configura como fim principal de sua luta, conforme dá a entender
diversas adaptações modernas de mitos heróicos, como
o já citado desenho produzido pela Disney. Nele, a narrativa não
se centra nos 12 trabalhos, e as motivações para as lutas
de Hércules giram em torno do amor, e da busca de celebridade.
Aliás, esse é um ponto, sem dúvida, bastante singular
entre as adaptações. Se o herói, nas mais diversas
culturas, personifica uma série de qualidades exaltadas por uma
sociedade, Hércules acaba se tornando, em plena Grécia Antiga,
um “herói midiático”, uma vez que sua fama tem
todos as características das “celebridades pop” contemporâneas
– e isso claramente nos remete a uma imagem de herói da nossa
contemporânea sociedade capitalista. Mas o herói abre mão
de tudo o que conquistou, pelo amor. Com isso, constatamos que o mito
apresenta características da narrativa romântica trivial,
em que o amor muitas vezes se configura como mola propulsora de todos
os fatos, além de apresentar valores atrelados à figura
do herói que são muito diversos dos valores do mundo grego
antigo.
Outra questão presente na transposição de temas e
valores modernos para narrativas heróicas antigas é o maniqueísmo
presente, por exemplo, na adaptação de Cristina Marques,
na qual percebemos a oposição dos personagens Hércules
e Eristeu, na figuração da luta do bem contra o mal, assim
como o vemos na adaptação da Disney, na oposição
Hércules e Hades. Além disso, é também interessante,
na adaptação de Lobato, a imagem de herói representada
por Hércules: a força bruta em detrimento da inteligência.
O herói grego é associado a um esteriótipo de atleta
moderno – em que se enxerga a dicotomia corpo/mente que não
existia no imaginário grego. Além disso, a ação
dos personagens do Sítio na realização dos trabalho
também colocam em questão a heroicidade de Hércules,
sua distinção entre os mortais (areté), que fica
comprometida, uma vez que ele executa os trabalhos apenas pela força,
mas não conseguiria sem a ajuda das crianças, já
que não possui inteligência.
Por fim, percebemos freqüentemente, nas adaptações
contemporâneas de mitos antigos, uma supressão de temas como
a violência, a sexualidade e a morte do herói. O desfecho
da narrativa com o casamento ou simplesmente com a vitória aproxima
o mito ao happy end da narrativa moderna, que muito agrada ao público,
preocupação fundamental da indústria cultural. Além
disso, percebemos que tais narrativas, destinadas ao público infanto-juvenil,
transformam a figura de Hércules num “herói bonzinho”,
de forma alguma mencionando a hybris, ou seja, a desmesura, o descontrole
que caracteriza o herói nas narrativas gregas, nem tampouco a longa
conquista do controle e da ordem do mundo. Ou seja, o sentido educativo,
que atribuímos à narrativa heróica no mundo antigo,
perde-se. Resta-nos indagar qual o sentido educativo vem sendo atrelado
aos heróis antigos nas adaptações modernas, e quais
valores da nossa sociedade contemporânea estão presentes
na chamada “mitologia grega para crianças”. |
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