Fabiana Fator Gouvêa Bonilha, mestranda
do Instituo de Artes da Unicamp; <fbonilha@iar.unicamp.br>
Patrícia de Almeida Stella, graduanda da Faculdade de Educação
Física da Unicamp, bolsista do Serviço de Apoio ao Estudante
da Unicamp;
Deise Tallarico Pupo <dtpupo@unicamp.br>
Sílvia Helena Rodrigues de Carvalho
Introdução
As pessoas com deficiência visual adotam estratégias
peculiares através das quais realizam uma “leitura de mundo”,
e através das quais têm acesso à informação
e ao conhecimento. O uso do Braille consiste em uma das principais ferramentas
utilizadas por essas pessoas. O Braille consiste em um sistema polivalente,
de modo que os mesmos caracteres possam representar diferentes códigos.
Dentre essas linguagens, encontra-se a Musicografia Braille, que, por
sua vez, constitui um instrumento fundamental no processo de formação
musical dos cegos.
Sabe-se que as pessoas com deficiência visual possuem uma grande
inserção na área da Música. Existe, inclusive,
um pensamento bastante difundido segundo o qual os deficientes visuais
tendem a ser bem-sucedidos na área musical, caso se dediquem ao
estudo dessa manifestação artística. Tal raciocínio
se apóia na tendência desses indivíduos a possuírem
habilidades ligadas, sobretudo, à percepção e memória
musical.
Deve-se notar que, as pessoas desprovidas de visão recorrem a outros
sentidos, sobretudo à audição, para que possam perceber
o ambiente que as cerca de forma eficaz e adequada. E isso pode justificar
em parte o grande interesse delas pela música.
Através de um estudo realizado por Belin (2004), buscou-se investigar
se a superioridade das habilidades auditivas das pessoas cegas ultrapassava
o domínio da orientação espacial. Para tanto, os
sujeitos foram submetidos a uma tarefa que envolvia habilidades musicais
específicas.
A partir desse estudo, concluiu-se que as pessoas cegas desde a primeira
infância tiveram um desempenho muito superior à performance
dos indivíduos pertencentes aos outros dois grupos na atividade
proposta.
Encontrou-se, assim, uma correlação negativa entre a idade
em que os indivíduos ficam cegos e o nível de desempenho
nessa tarefa. Isso pode ser explicado considerando-se que, na infância,
há uma maior plasticidade do cérebro, em relação
às idades mais avançadas.
Assim, uma vez que, de maneira geral, a capacidade auditiva seja mais
amplamente desenvolvida por essas pessoas, a música, por conseguinte,
acaba se tornando uma rica fonte de expressão para elas.
Nesse sentido, Figueira (2002) aponta que, ao longo da história,
podem ser encontrados inúmeros exemplos de pessoas com deficiência
visual que se dedicaram à Música e que obtiveram reconhecimento
nessa área.
Considerando a arte como um instrumento de inclusão social, o autor
cita diversos casos em que os deficientes visuais se fizeram presentes
em manifestações artísticas distintas, dentre as
quais a música aparece como predominante.
Oliveira (1995), também discorre sobre o papel que a música
desempenha na vida das pessoas deficientes visuais. Em seu trabalho, ele
se utiliza da memória de quatro músicos cegos e, dessa forma,
reconstrói suas histórias de vida, à luz do pensamento
de Deleuze. Em sua análise dos depoimentos colhidos, o autor considera
que a música aparece como um eixo condutor dos relatos de vida
dos sujeitos, e assim, afirma o papel dessa arte na construção
da identidade desses indivíduos.
Deve-se notar que, muito freqüentemente, são realizados trabalhos
a partir das inter-relações entre a arte e as pessoas com
deficiência, mas, em geral, neles a arte desempenha apenas um papel
terapêutico, tendo em vista a promoção do desenvolvimento
afetivo e social do indivíduo. Esse enfoque restringe o acesso
ao conhecimento por parte do deficiente e impede que ele se legitime enquanto
artista.
Faz-se necessário, desse modo, que as pessoas com deficiência
visual tenham acesso a uma formação musical qualificada,
que lhes permita desenvolver suas potencialidades. Para tanto, conforme
defende Smaligo (1998) torna-se imprescindível que seja oferecida
a essa população a possibilidade de acesso ao sistema de
leitura e escrita musical criado especificamente para seu uso.
Esse código de notação musical, que é universalmente
adotado por pessoas cegas, denomina-se Musicografia Braille. Seus primeiros
fundamentos foram criados, em 1828, pelo próprio Louis Braille
(1809 - 1852), inventor do sistema de escrita destinado a deficientes
visuais, segundo biografia editada pela Unesco (1975). Antes disto, os
estudantes cegos aprendiam a ler música através de um sistema
em que a simbologia da notação em tinta era impressa em
alto relevo. Esse sistema, evidentemente, impedia que os alunos tivessem
uma leitura fluente, assim como dificultava o processo em que eles próprios
pudessem escrever música.
Tem-se registro de que, em 1829, foi realizada a primeira edição
da obra intitulada "Método de palavras escritas, Músicas
e canções por meio de sinais, para uso de cegos e adaptados
a eles". Desde então, foram realizadas diversas adaptações
e melhorias ao código musical, até que se chegasse aos padrões
concebidos na atualidade.
Apesar do empenho constante na consolidação da Musicografia
Braille, deve-se notar que o ensino dessa notação sempre
foi muito pouco difundido, sobretudo devido à falta de pessoas
capacitadas para ensiná-la, devido à grande escassez de
materiais didáticos e partituras produzidas. Tendo em vista a grande
demanda pelo acesso a esse conhecimento, conforme já apontado,
faz-se necessário que tal situação se reverta. Para
tanto, as bibliotecas possuem um papel fundamental, no que se refere à
implantação e manutenção de acervos didático-musicais
voltados às pessoas com deficiência visual.
Nessa perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo Investigar aspectos
referentes ao ensino da notação musical em Braille para
pessoas com deficiência visual e produzir um acervo de partituras
transcritas para o Braille, mediante o uso de ferramentas tecnológicas
que se prestam a esse fim.
A consecução desse objetivo só é possível
graças à existência do Laboratório de Acessibilidade,
localizado na Biblioteca Central da Unicamp. Trata-se de um espaço
dotado de recursos humanos e materiais, os quais conferem ao pesquisador
que tenha alguma deficiência, plena autonomia na aquisição
e construção do conhecimento.
2-Materiais e métodos
Para a concretização desse trabalho, estão
sendo utilizados alguns softwares disponíveis no Laboratório
de Acessibilidade da Biblioteca Central. São eles:
-Braille Music Editor: Programa que atua como um editor de Música
em Braille, dispondo de um sintetizador de voz. Ele transforma o teclado
do computador em um teclado Braille, em que o usuário pode digitar
caracteres de Musicografia. Assim, as teclas referentes às letras
fdsjkl. Posteriormente, ele processa esses dados e os apresenta em linguagem
musical. Convém ressaltar que o contato com esse software foi fruto
de uma busca por recursos tecnológicos eficazes, e que no momento,
a Unicamp possui apenas uma versão demonstrativa dele.
Segundo informações colhidas no site http://www.dodiesis.com
o programa possui diversos outros recursos, impossíveis de serem
utilizados na versão demonstrativa. Esses recursos adicionais se
referem, por exemplo, à possibilidade de escrita de partituras
em diferentes disposições bem como à possibilidade
de se transpor trechos musicais cromáticas e diatonicamente.
-Finale 2003: Software amplamente utilizado pelas pessoas videntes para
digitalização de partituras. Ele possui uma interface com
o Braille Music Editor, através de um Plug-in, que possibilita
a exportação e importação de arquivos.
-Jaws: Programa produzido pela empresa Freedom Cientific que atua como
um leitor das telas do Windows, por meio de um sintetizador de voz.
-Winbraille: Programa que possibilita a conversão de arquivos em
formato TXT para um formato composto por caracteres Braille. Por meio
desse software, os arquivos podem ser impressos nesse sistema de escrita.
Mediante o uso dessas ferramentas, foram criados e testados procedimentos
que viabilizassem a produção de partituras em Braille.
Eles se referem à digitalização e edição
das partituras, bem como à conversão e impressão
das mesmas em Braille, de forma que se tenha buscado otimizar os recursos
disponíveis, a fim de que se garantisse um melhor aproveitamento
deles.
Os procedimentos foram criados e testados a partir dos seguintes critérios:
Critério 1: Optou-se pela utilização de ferramentas
tecnológicas especialmente confeccionadas para a produção
de partituras em Braille.
Critério 2: Buscou-se criar procedimentos em cuja aplicação
os deficientes visuais tivessem uma maior autonomia possível.
Critério 3: A aplicação desses métodos requer
a participação de pessoas videntes com um menor grau de
especialização possível. Assim, uma pessoa com um
conhecimento mínimo de leitura musical em tinta, poderia digitalizar
uma partitura e convertê-la para o Braille.
O trabalho conta com a participação de bolsistas do SAE
(serviço de Apoio ao Estudante), da Unicamp, que realizam a digitalização
de materiais impressos em tinta.
3- Resultados
A partir desses procedimentos, está sendo produzido
e catalogado um acervo de partituras digitalizadas e passíveis
de impressão. Estabeleceu-se como prioridade a produção
de músicas brasileiras, devido ao plano de serem realizados intercâmbios
com instituições internacionais, em que se pretende trocar
o material produzido.
Segue, em anexo, uma planilha com os títulos e os respectivos compositores
das obras já produzidas.
4 – Conclusão
Deve-se considerar que, na atualidade, o sistema Braille,
de maneira geral, atravessa uma crise, em função dos avanços
tecnológicos que, por sua vez, criam novas alternativas de acesso
à informação e ao conhecimento. Belarmino (2001),
denomina esse processo como "desbrailização",
e aponta para a necessidade de que se resgate a importância desse
sistema de escrita para a vida das pessoas com deficiência visual.
Segundo a autora, existem atualmente pessoas que, convictamente, se colocam
como "antagônicas"ao Braille, classificando-o como um
sistema fechado, anti-social, e de difícil compreensão para
quem vê. Mas felizmente há, por outro lado, aqueles que aparecem
como defensores dessa escrita, e que compreendem a dimensão dos
ganhos tidos por aqueles que a dominam.
Certamente, a Musicografia Braille se insere no mesmo contexto dessa crise.
E talvez, a pequena difusão desse sistema, a faça mais acentuada
em relação ao Braille genérico. Por um lado, há
os que imaginam que os avanços da tecnologia trarão novas
possibilidades de acesso a informações musicais, de forma
que isso leve à extinção de um sistema de escrita
que julgam tão complexo. Por outro lado, há os que apostam
no uso da tecnologia como um instrumento disseminador e ampliador da Musicografia
Braille, sendo esta uma notação já oficializada.
O presente trabalho se encontra em consonância com essa Segunda
linha de raciocínio, e, nesse sentido, visa propagar o conhecimento
acerca da notação em Braille. Acredita-se que tal proposta
possui relevância social e científica, tendo em vista a grande
demanda pelo desenvolvimento e ampliação desta área.
Referências
BELARMINO, J. As novas tecnologias e a "desbrailização":
mito ou realidade? In: SEMINÁRIO NACIONAL DE BIBLIOTECAS BRAILLE,
2., João Pessoa, 07 a 11 de maio de 2001. Disponível em:
http://intervox.nce.ufrj.br/~joana/textos/tecni08.html Acesso em: 06/06/2005
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Especial. Grafia Braille para a língua portuguesa. Brasília,
2002. [Publicação em Braille].
FIGUEIRA, E. A presença da pessoa com deficiência visual
nas artes. Rede Saci, 2002. Disponível em: <http://www.saci.org.br/index.php?modulo=akemi¶metro=4574>
Acessado em: 02/06/2004.
OLIVEIRA, F. C. S. Histórias de um aprendizado: os signos de Deleuze
nos relatos de vida de músicos cegos. Belo Horizonte: UFMG/ Faculdade
de Educação, 1995. Dissertação (Mestrado).
SMALIGO, M. A. Resources for helping blind music students. Music Educators
Journal, v. 85, n.2, p 23-
VENTURINI, J. L; ROSSI, T. F. O. “Louis Braille. Sua vida e seu
sistema”. 2 ed. São Paulo, 1978.