Maria Tereza Goudard Tavares – UERJ/FFP
( Orientadora)
Rosane dos Santos Torres – UERJ/FFP ( bolsista)
Introdução
O presente trabalho é resultado parcial de pesquisas
desenvolvidas pelo Núcleo de pesquisa e extensão “Vozes
da educação: memória e história das escolas
de São Gonçalo”, que desde de 1996 se dedica, na Faculdade
de Formação de Professores/ UERJ, a promover uma recuperação
da história e da memória da educação gonçalense.
Nesse esforço contínuo, os projetos desenvolvidos em conjunto
por professores/as, alunos/as e comunidade escolar, vêm colaborando
substancialmente na reflexão e discussão das práticas
educativas, nas suas diversas temporalidades.
A dinâmica espaço-temporal das práticas educacionais
presentes no município de São Gonçalo (RJ) na contemporaneidade
requer uma leitura atenta de seu passado. Se trata, pois, de não
ignorarmos os diferentes momentos históricos ( que certamente apresentam
um contexto particular ), mas, ao contrário, tentarmos identificar
suas marcas nas gerações futuras. E, através desse
diálogo, possibilitar que o passado interaja com o presente para
, juntos, nos ajudarem a escrever a história da educação
gonçalense.
No liame das rupturas e continuidades, como esclarece Clarice Nunes, “a
contribuição da história para o enfrentamento dos
problemas educacionais contemporâneos é justamente afirmar
que escolhas foram feitas e, diante delas, que futuros foram apagados”
. É certo que no retorno a essa memória, não revivemos
suas experiências, apenas a interpretamos, isto é, fazemos
uma leitura interessada que é sempre passível de traições.
E é no esforço de recontá-la que ficamos diante do
limite que distingue a lembrança do esquecimento.
Entendemos pois, que nos lançando nas rugosidades do passado, torna-se
possível compreender com mais radicalidade o presente. Este presente,
não como um lugar estável, resultante de um passado igualmente
estável e único, que se descobre e se recupera. Mas, como
paisagem passageira e movediça, marcada pelos vários passados
reconstruídos aqui pelo trabalho cuidadoso da pesquisa, da memória
e do exercício imaginativo.
Nesse sentido, o passado interage com o presente e, juntos, nos ajudam
a escrever a historia da educação gonçalense.
Pensar na educação gonçalense, característica
do século XIX, é, antes de tudo, “ouvir as vozes do
passado”, não com uma postura saudosista, de retorno àquelas
experiências, no sentido de revivê-las, mas na compreensão
atenta das pistas que as mesmas nos deixaram. Contudo, antes de iniciarmos
tal desafio, faz-se necessária uma breve exposição
da história do município, tal como de suas contradições,
especificidades, lutas e, mesmo, de sua identidade ( as quais estão
presentes dentro do contexto sócio-político da província
do Rio de Janeiro e do Império como um todo ).
São Gonçalo: um lugar, uma história
Quando localizamos nosso estudo no município de São Gonçalo,
nos defrontamos com um conjunto de relações que excedem
os limites físicos do território. Encontramo-nos diante
de teias de relações, que fazem do local um espaço
de excelência; entendido não apenas nas fronteiras visíveis
do espaço, mas no conjunto de práticas sociais que se dinamizam
e atravessam os vários níveis da ação humana.
Esta cidade, que atualmente pertence à região metropolitana
do estado do Rio de Janeiro, remonta seu passado ao período colonial
brasileiro, já no século XVI; período em que se realizaram
doações de sesmarias e a implantação das primeiras
fazendas. De acordo com Rui Aniceto N. Fernandes (s/d), a origem do nome
São Gonçalo teria relação com a capela que
fora construída por Gonçalo Gonçalves, a qual trazia
o nome do santo de devoção deste sesmeiro português.
Sem nos determos na discussão que envolve tal escolha, nem no debate
que gira em torno da construção de sua identidade local,
destacamos que na história dessa construção, a tensão
com Niterói sempre fora uma marca presente. Fato é que “numa
das versões mais difundidas da origem da cidade destaca-se a sua
emancipação de Niterói e não a sua fundação”.
Debates e rivalidades à parte, o século XIX apresenta-se,
assim, como um período privilegiado, não somente para avaliarmos
esses embates , mas também – ou principalmente – para
discutirmos o contexto sócio-político no qual dialogavam
as transformações pelas quais a sociedade imperial passava
(sobretudo a partir da segunda metade do oitocentos) com os “avanços”
verificados na freguesia de São Gonçalo, no mesmo período.
De acordo com o historiador Ilmar Rohloff de Mattos, em um livro que se
tornou um clássico da literatura imperial, O tempo saquarema, era
aquela uma sociedade onde cada indivíduo desempenhava um papel
social. Nos critérios de então, eram considerados indicadores
de cidadania, os princípios de liberdade e propriedade . Nesse
caso, estavam claramente excluídos os escravos, mesmo os nascidos
em terras brasileiras. Como se vê, o reconhecimento como “cidadão”
não se dava por uma “identidade local” , mas por padrões
sócio-econômicos.
Nas palavras de Mattos, “ (...) os escravos não eram considerados
pessoas, não tinham reconhecida a capacidade de praticar atos de
vontade. Estes compunham o mundo do trabalho; encarnavam uma visível
oposição aos “verdadeiros” cidadãos dentro
de uma sociedade marcada pelas cicatrizes das relações excludentes
herdadas do período colonial, ainda no século XIX, o Brasil
imperial era marcado como um império e três mundos...
Aqui se define um aspecto importante de nosso trabalho, que nos faz dialogar
com as redes hierárquicas presentes naquela sociedade e localizarmos
nosso olhar, não tanto na província do Rio de Janeiro (
que, na discussão dessa pesquisa, não é mais a corte
do Império, já que pelo ato adicional de 1834, a cidade
do Rio de Janeiro fora desvinculada da província ), mas na freguesia
de São Gonçalo. Há de se frisar, é certo,
que essas questões não são isoladas; ao contrário.
Elas fazem parte de um mesmo contexto, o qual estará na base de
interpretação das relações e práticas
educacionais que compõem a memória gonçalense e que
tanto nos interessam.
A memória e a educação: um olhar
sobre São Gonçalo no século XIX
Em princípios do século XIX, mais precisamente
em 1834, através do ato adicional, a instrução pública
primária ficara a cargo das províncias. A estas caberia
o papel de legislar sobre a instrução da população
e regulamentar os locais em que a mesma seria promovida. Nesse caso, foram
os relatórios de província nosso grande foco documental
na realização dessa pesquisa. Contamos também com
os estudos parciais realizados por Haidée da Graça F. Figueiredo
e Antônio Caetano, sobre a educação em São
Gonçalo em fins do século XIX , o que em grande medida nos
ajudou a desenvolver um olhar mais interessado sobre a organização
das escolas e uma reflexão mais ativa sobre as questões
de seu cotidiano.
Segundo Figueiredo e Caetano (s/d), a instrução pública
em São Gonçalo começou a ganhar notoriedade somente
a partir de 1868, obtendo um crescimento que consideramos expressivo,
sobretudo a partir da década de 1880. Mas, paralelo a esse dado,
verifica-se que, embora tenha havido um gradual aumento no número
de matrículas em relação ao decênio anterior,
em toda a província, os números apresentados nas estatísticas
demonstram que tal crescimento não atingia a totalidade da população
livre em idade escolar.
Essa tendência pode ser verificada também na freguesia de
São Gonçalo, onde os índices de matrícula
e aprovação são significativamente baixos: em dezembro
de 1867, enquanto na turma masculina houve apenas uma (1) aprovação,
dos vinte e nove (29) matriculados; na turma feminina esse número
sobe para dois (2), das vinte e uma (21) alunas com matrícula nessa
escola. O que fica salientado nesses relatórios, a partir desses
números, é que, além das matrículas serem
expressivamente pequenas, daqueles que freqüentavam, poucos conseguiam
ser aprovados.
Seguindo essa mesma dinâmica, na década de 1870, percebe-se
que, ainda que fosse imputado um esforço na ampliação
dos quadros da instrução em toda a província do Rio,
os índices de aproveitamento raramente atingiam a totalidade dos
alunos. A equivalência nesse sentido, correspondia não à
regra, mas à exceção.
Mesmo que com variações, esses números são
ainda bastante expressivos em 1882: das sete escolas apresentadas no Quadro
de matrícula e freqüência nas escolas públicas
para o sexo masculino da província do Rio de Janeiro, referente
à freguesia de São Gonçalo, apenas três ( Colubandê,
Rocha e Porto da Ponte ) apresentaram aprovação entre os
alunos matriculados ( e com freqüência ).
É certo que um conjunto de fatores contribuiam para a manutenção
desse quadro. Se considerarmos a própria disposição
física da freguesia, verificaremos que as longas distâncias
que separavam as escolas de seus possíveis usuários não
devem ser descartadas como um dos fatores de impedimento. Além
do que, havia uma tendência dos pais estarem mais preocupados em
manter seus filhos nos afazeres domésticos e/ou em tarefas que
ajudassem na renda familiar. Particularmente no caso das moças,
de acordo com os padrões sociais e morais oitocentistas, não
era “necessário” investir em sua instrução,
pois sua tarefa primeira era o casamento e a maternidade. Cabia-lhes somente
o bom desempenho no papel de boas mães e esposas, sempre dóceis
e obedientes.
Há que se observar também a explicação dada
pelos contemporâneos para essa questão. Analisando os questionários
distribuídos aos professores pela Diretoria Geral de Instrução
Pública, a partir de 1885, Figueiredo e Caetano (s/d) constatam
que muitos professores consideravam como fatores determinantes, os lastros
de epidemia que ocorriam ocasionalmente, as dificuldades de deslocamento,
a falta de incentivo dos pais, além da ausência de uma legislação
que fizesse do ensino, algo obrigatório.
Acompanhando o crescimento no número das escolas nas últimas
décadas do século XIX, nota-se que tal evolução
era seguida pelo discurso de identificação da qualidade
na educação como um resultado direto da presença
de bons professores no magistério. A ênfase na definição
da carreira como uma vocação ( o que pressupõe, portanto,
que nem todos estariam aptos a exercê-la ), corrobora a premissa
de que o ensino estava mais ligado à figura do professor ( no indivíduo
), do que à escola propriamente dita.
Além do que, as escolas não possuíam um local específico
para funcionar. “Elas eram encontradas em casas que podiam ser um
imóvel pertencente ao governo provincial ou alugada por este.”
Porém, muito freqüentemente, os professores lecionavam em
suas próprias casas, destinando um dos cômodos para tal fim.
Nos mesmos questionários distribuídos pelo DGIP, os autores
encontraram relatos de que as salas eram mobiliadas com certa diversidade
de utensílios, tais como mesas, cadeiras , armários para
livros e tinteiros.
Nesse ambiente, os alunos aprendiam suas primeiras letras, recebiam noções
gerais de gramática, história sagrada, leitura, adições
e subtrações e costura ( no caso das meninas ). Para tanto,
essas escolas caracterizavam-se por um intenso controle dos alunos, tanto
de sua rotina diária quanto dos conteúdos que eram estudados.
Daí, a aplicação de castigos e a distribuição
de cartões semanais por bom comportamento.
Fato que chama atenção é a forte presença
do ensino religioso, enfatizando-se o estudo da doutrina católica
e a recitação de orações diárias. Não
é inválido dizer , no entanto, que a reafirmação
da religiosidade era uma constante nessa sociedade, tão impregnada
pelos valores cristãos. Daí a persistência em um modelo
de ensino, ainda sob forte influência religiosa – apesar de
o mesmo não estar sob tutela da Igreja.
Como argumenta Hebe de Castro,
(...) a continuidade da união entre a Igreja e
o Estado imperial e o reconhecimento do catolicismo como religião
oficial dispensariam por quase todo o século a adoção
do registro civil como forma de identificação legal do cidadão
brasileiro e de garantia de seus direitos civis ( inclusive no que dizia
respeito ao direito de propriedade consubstanciada nos procedimentos de
herança ou matrimoniais).
Logo, se deduz a grande influência que o poder
temporal impunha àquela sociedade, herdeira das tradições
e práticas sociais excludentes e hierarquizadas reminescentes do
período colonial. Sua abrangência não se limitava
aos padrões da conduta moral, mas atingia os diversos níveis
da ação humana. Tanto é que, na descrição
dos materiais distribuídos entre julho de 1869 e 30 de junho de
1870, na província do Rio de Janeiro, não faltariam materiais
de caráter religioso:
Foram distribuídos pelas escolas de instrução
primária (...) 11,261 exemplares de livros e compendios, sendo
de Gramatica 1,071, de Historia sagrada 1,114, de Contos de Schmid 1,170,
de Cathecismos de doutrina 1,202, de cathecismos de agricultura 351, de
systema metrico 572 (...)
O uso desses materiais ilustram a nossa afirmativa de
que a organização e a utilização diária
do tempo escolar nas escolas gonçalenses do final do oitocentos,
fundamentavam um programa de ensino baseado numa educação
cristã, religiosa. Porém, com o progressivo fortalecimento
do movimento republicano e com a ampliação da discussão
acerca da importância da instrução escolar, vai-se,
paulatinamente, estruturando uma representação de que a
construção de espaços específicos para a escola
era imprescindível para uma ação eficaz junto ao
povo, em especial, às crianças. Essa representação
indicava o êxito daqueles que defendiam a superioridade e a especificidade
da educação escolar, diante de outras estruturas sociais
de formação e socialização, como a família
e a igreja. Tal representação é articulada na confluência
de diversos fatores; dentre os quais podemos elencar os de ordem político-cultural,
pedagógico, cientifico e administrativo.
No Brasil, segundo Mattos (1994), a educação escolar, ao
longo do século XIX vai progressivamente, assumindo as características
de uma luta do governo do Estado contra o governo da casa. Nestes termos,
a educação gonçalense no século XIX vai sendo
simbolicamente, e materialmente separada da esfera doméstica. E
esse esforço implicava em afastar esse modelo escolar, também,
das tradições culturais e políticas a partir das
quais o espaço doméstico, familiar se organizava e era assimilado.
Diante desse quadro, o que se verifica a partir da década de 1880,
é um aumento vertical no quantitativo dessas escolas. Incorporando
as transformações políticas e sociais experimentadas
nos anos finais do oitocentos imperial brasileiro, a freguesia gonçalense
tornar-se-ia município e levaria para os primeiros anos republicanos
os números representantes dos avanços e rupturas, embates
e peculiaridades com que hoje se defronta a tentativa de leitura de um
passado que, mesmo recorrendo aos registros, sempre será mais uma
interpretação dessa história.
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