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ESTUDO
DO PROCESSO DE ATRIBUIÇÃO DE SIGNIFICADOS SOBRE OS SERES VIVOS
POR CRIANÇAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL A PARTIR DOS DESENHOS
E FALAS PRODUZIDOS PARA REPRESENTAR PEQUENOS ANIMAIS DURANTE O DESENVOLVIMENTO
DE UM PROJETO NA CRECHE OESTE
Celi Rodrigues Chaves Dominguez – FE/USP
Silvia Frateschi Trivelato - orientadora – FE/USP
Objetivos e contextualização da pesquisa
Nossa pesquisa de doutorado tem a finalidade de investigar
e compreender como se dá o processo de construção
de significados sobre seres vivos, quando os conhecimentos acerca do assunto
são mediados por adultos. Para isto, acompanhamos o desenvolvimento
de parte do projeto “Pequenos Animais” por um grupo de crianças
de quatro anos na Creche Oeste localizada no campus da USP em São
Paulo.
Foram gravadas algumas rodas de conversa, realizadas anotações
em caderno de campo e coletados desenhos produzidos pelas crianças.
A produção de alguns destes desenhos foi acompanhada por
meio de registro em vídeo e as falas das crianças durante
esta produção foram transcritas.
Apresentaremos, neste trabalho, uma análise preliminar dos desenhos
realizados por quatro crianças que interagiram durante esta produção.
Este episódio ocorreu três meses depois do início
do projeto, momento em que as crianças já estavam bastante
familiarizadas com o assunto.
Para o desenvolvimento do projeto, a educadora propôs atividades
muito diversificadas para as crianças tais como: conversas na roda,
consultas a livros, leitura de histórias infantis com pequenos
animais como personagens, observações de taturanas em terrário,
leituras de imagens, leitura de obras de arte em que borboletas foram
representadas, dramatizações, desenhos, modelagens, pinturas,
colagens, pesquisas em materiais informativos e jogos simbólicos.
Referencial teórico
Em nosso trabalho, os desenhos são considerados tanto atividades
lúdicas – conforme afirmam Derdyk (1989), Arfouilloux (1983)
e Moreira (1999) – como uma linguagem muito importante e bastante
utilizada pelas crianças.
Assim, parece-nos que os desenhos infantis podem ser muito úteis
para revelar o modo de pensar das crianças sobre os seres vivos,
uma vez que elas pensam ludicamente (Santa-Roza, 1993) e constroem suas
impressões e conhecimentos sobre o mundo a partir de interações
lúdicas, jogos simbólicos e do uso de diferentes linguagens.
Embora sejam uma linguagem suficiente em si mesma, estas produções,
nesta pesquisa atuam ora como complemento e ora como anteparo para a linguagem
verbal, na medida em que seu papel é nos auxiliar a compreender
o pensamento das crianças acerca dos seres vivos e de que modo
estas idéias vão sendo construídas e negociadas durante
as interações de linguagens (verbal e pictórica).
Além disso, é interessante notar que, na faixa etária
que estamos estudando, as crianças, freqüentemente falam enquanto
desenham.
De acordo com os estudos de Vygotsky (1998), a fala é importante
para que as crianças consigam cumprir determinadas tarefas que
não conseguem desempenhar caso sejam impedidas de falar. Em outras
palavras, a fala faz parte do processo de resolver situações
práticas. Como o problema proposto era o de as crianças
realizarem desenhos sobre as borboletas, parece-nos que tanto os desenhos
estimularam as crianças a falar como a fala constituiu-se parte
integrante do que foi desenhado, não fazendo nenhum sentido para
nós que estas duas linguagens sejam dissociadas em nossa análise.
Vygotsky afirma ainda que o domínio da linguagem traz novas possibilidades
de percepção do mundo, já que por meio da simbolização
temos acesso a um campo visual e a uma gama de outros símbolos
que não estão no nosso campo perceptivo. Dizendo de outro
modo, a linguagem nos permite visualizar mentalmente objetos e situações
que não estão acessíveis aos olhos (Vygotsky, 1998).
Esta “visualização” é possível
a partir dos significados e sentidos atribuídos a cada significante,
ou seja, uma mesma palavra pode desencadear imagens mentais distintas
em diferentes pessoas, caso estas pessoas atribuam significados diversos
para a palavra em questão. Os significados das palavras e os sentidos
com que são utilizadas vão sendo construídos e reformulados
por meio das interações de linguagem e dos registros de
memória que cada participante traz nas interações.
O desafio de desenhar “algo sobre o projeto” possibilita que
as crianças “vejam” novamente as borboletas e as informações
a que tiveram acesso anteriormente, e criem uma nova organização
deste campo perceptivo expressando no papel, à sua maneira, os
conhecimentos com que tomaram contato anteriormente. Vale ressaltar que
os desenhos foram produzidos durante interações e assim
as idéias registradas foram o resultado tanto do que cada um se
lembrou durante a execução dos desenhos, quanto das idéias
que foram partilhadas e negociadas pelas crianças durante a interação.
De acordo com Vygotsky (1998),
“signos e palavras constituem para as crianças, primeiro
e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funções
cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base
de uma forma nova e superior de atividade nas crianças” (p.
38)
Dizendo de outro modo, o contato social entre as crianças é
um fator importante para que possamos analisar os desenhos obtidos, uma
vez que este contato interfere diretamente na qualidade das produções
das crianças. É nas interações com os pares
e com as informações mediadas pelos adultos que elas atribuem
sentidos, negociam estes sentidos entre si e re-significam constantemente
os conhecimentos aos quais têm acesso.
Levando em consideração as idéias apresentadas, pretendemos
identificar, nos nossos dados, evidências deste processo de significação,
para que possamos compreender de que modo ele ocorreu com as crianças
estudadas, e quais os elementos presentes neste processo de negociação.
Pretendemos, também, identificar elementos dos desenhos que indiquem
de que maneira as idéias sobre as borboletas como seres vivos vão
sendo construídas pelas crianças.
Isto posto, apresentaremos, a seguir, parte dos dados obtidos durante
a investigação e uma análise preliminar destes dados.
Apresentação e análise dos dados:
Os desenhos abaixo foram produzidos concomitantemente
por quatro crianças cujos diálogos transcritos aparecerão
em caixas de texto e serão permeados pela análise.


Trecho 1
1. Anna: Eu tô fazendo, primeiro uma flor pra colocar a borboleta.
2. Celi: Ah, legal.
3. Jorge: Ih, se você faz, eu faço. Se você faz uma
flor, eu vou fazer uma flor.
4. Alê: Eu não vou fazer flor.
5. (...)
6. Jorge: Agora eu vou fazer o da (...)
7. Anna: Eu nem fiz.
8. Jorge: Deixa. Eu vou fazer flor prá borboleta ficar.
9. Anna: Mas essa eu vou fazer de dia.
10. (...)
11. Anna: Fazer uma floooor.
12. (...)
13. Jorge: Olha! A flor que dá pra borboletinha ficar, ó.
(...)
Logo no início da interação as crianças já
começaram uma negociação sobre a inclusão
do signficante flor nos seus desenhos evidenciando que estão fazendo
acordos sobre o que cada um irá representar e de que modo. Jorge
declara para Anna que irá desenhar a flor porque ela vai desenhar,
mas a menina faz uma ressalva afirmando que o desenho dela representa
o “dia”, ou seja, ela atribui um sentido particular distinguindo
a sua flor e a do colega. Em contrapartida, a flor é um elemento
importante nos dois desenhos aparecendo antes mesmo de os animais serem
representados. Nos dois casos a palavra flor ganhou o mesmo significado:
“um local para a borboleta ficar”, evidenciando que por trás
da palavra e da representação pictórica da flor há
uma rede de idéias que demarcam os sentidos aqui utilizados.
Esta idéia da flor como lugar pode estar associada às observações
das crianças no parque, das obras de arte que foram disponibilizadas
em que as borboletas apareciam nas flores ou de ilustrações
de livros infantis, uma vez que as crianças tiveram acesso a estas
informações ao longo do projeto.
Embora tenha havido uma declaração do Jorge que iria desenhar
a flor como uma imitação do desenho de Anna, é importante
observar o fato de que esta imitação não veio descontextualizada,
uma vez que houve uma associação direta entre flor e borboleta.
Trecho 2
14. Alex: Fazer um gato agora.
15. (...)
16. Anna: Num casuuulo.
17. Jorge: Eu fazer um ca... vermelho do casulo.Cê tá certo,
casulo que eu ia fazer.
18. Anna: Eu vou fazer um casulão. Olha o casulão!
19. Jorge: Nem que existe.
20. Anna: Mas eu vou fazer uma borboleta grannnnde.
21. (...)
22. Alex: Eu vou fazer um casulo pequenininho.
23. Alex: Aqui, casulo pequenininho. Vou fazer outro casulo.
24. Jorge: Quer fazer aquele casulo.
25. Anna: Olha o casulão, que eu fiz, qué vê? É
um casulo.
26. (...)Anna: Aí vai vim um troço... um negocinho bem pequititico.
Vai tá arrastando.
27. Celi: O que isso é?
28. Alex: Eu vou fazer uma borboleta passando.
29. Anna: Aí...como é que era... aquilo lá que é...
30. Jorge: Um casulo que estou fazendo.
31. Anna: Que que isso mesmo. Ahn. Ahhh, aquelaaa...[risos]
32. Jorge: Derruba o casulo Anna. Você fica empurrando a mesa toda
hora.
33. Anna: Fica uma é... ahn...uma (setinha)...eu não sei.
34. Jorge: Uma larvinha, Ana.
35. Alex: Aqui, esse daqui é o leão, esse é o gato.
36. Celi: Ah, é uma larvinha?
37. Anna: É uma larvinha. Isso daqui é uma larvinha, a...í
ela...
38. Alex: Aaaaiiiií. Eu vou fazer a larvinha.
39. Anna: Ummm negócio. Ai, como chama?
40. Jorge: Eu não lembro.
41. - Aqui a larvinha.
42. Casulo!
43. Anna: Naaaão! Olha o casulo aqui!
44. Larvinha, ué.
45. Anna: Não, larvinha era essa. Larvinha pequititica.
46. Anna: É, é a... aí... é a.. qual é
a... como que chama?
47. Jorge: Eu não (sei).
48. Anna: Ah... ah... .
49. Alex: A minhoca.
50. Anna: É, a minhoca.
51. Celi: Como é que chama a minhoca da borboleta? La...?
52. Alex: Eu vou fazer...
53. Celi: La... la...
54. Anna: Eu vou fazer, la
55. Celi: Lagarta, não é?
56. Anna: Eu vou fazer uma largata. A largata, ela é larga.Depois
ela vai comê um montão... Gorducha. ...folha que tava aqui,
montão de folha, montão, montão, montão.
57. (... achei)
58. Anna: E ela comeu um montão, comeu, comeu. E aí ela
ficou dentro do casulo.
59. [Criança fazendo alguns sons]
60. Anna: Ficou dentro do casulo, e virou uma borboleta.
61. Jorge: Ah, fiz o casulo depois de você. Haha.
62. Anna: Deixa.
63. (...)
64. Anna: Eu tô fazendo borboleta.
No início
do episódio Alex não parecia interessado em desenhar os
pequenos animais. Antes de entrar na sala já declarou que desenharia
um leão, depois fez um gato e só começou a participar
mais da conversa depois de ouvir Jorge e Anna mencionarem o termo casulo
. Declarou então que o seu casulo seria pequeninho (22).
Interessante notar que ele já iniciou sua fala participando da
negociação sobre o tamanho do casulo. O seu seria pequenininho.
Neste caso, parece-nos que a palavra casulo desempenhou, para Alex, a
função de dar-lhe acesso a um novo “campo visual”.
Ele deixou de “visualizar” os felinos e passou a fazer imagens
mentais relacionadas às borboletas.
A partir daquele momento, ele começou a “brincar” com
os significantes partilhados pelo grupo no projeto e anunciou (28) que
iria fazer uma “borboleta passando”.
Quando Anna disse que iria desenhar um “casulão” foi
reprovada por Jorge que afirmou não existir “casulões”.
Em outras palavras, o garoto estava contestando a validade do uso do sentido
de algo grande para a palavra casulo. Para validar este uso da palavra
Anna adequou o contexto anunciando que iria desenhar uma borboleta “grannnnnde”.
Momentos depois Anna e Jorge mencionaram a larvinha (34 a 37) e Alex decidiu
desenhá-la (38).
No turno 49, Alex foi quem interferiu na atribuição de sentidos
de Anna quando ela procurava a palavra adequada para representar a próxima
etapa do ciclo de vida. Foram mencionados alguns palpites na tentativa
de auxiliar a menina e, quando Alex disse a palavra “minhoca”
ela prontamente se satisfez com o termo para definir seu desenho.
A pesquisadora então se apropriou do sentido utilizado pelas crianças
para o termo minhoca e interferiu dizendo o nome que supôs que Anna
estava procurando encontrar: lagarta (51-55).
Neste caso, a palavra “minhoca” foi utilizada pelas crianças
como sinônimo de lagarta ou taturana, fato que já havia ocorrido
em outra ocasião em uma roda de conversa. Evidentemente isto não
aconteceu por acaso, uma vez que a minhoca é um animal que vive
no jardim, rasteja e possuiu o corpo alongado, ou seja, apresenta alguns
dos aspectos das lagartas sugeridos pelas crianças em seus desenhos
e falas.
Na verdade, esta negociação de sentidos começou muito
antes de a palavra minhoca ter sido mencionada. Primeiramente Anna utilizou
a palavra “setinha” (33) referindo-se à larvinha e
Jorge foi quem interpretou e nomeou, recebendo a aprovação
da garota (34-37).
Entretanto, esta nomeação foi precedida por uma interessante
descrição de Anna: “um negocinho bem pequititico que
vai tá arrastando” (26). Mais uma vez aqui ficou evidente
a idéia de tamanho associada ao animal e, além disto um
outro atributo: se locomove por meio de rastejamento (tal como a minhoca).
Mais uma vez Anna não conseguiu encontrar o termo desejado para
comunicar o que iria desenhar em seguida. Alguém sugeriu novamente
o termo larvinha e Anna fez uma clara distinção entre as
duas fases: a larvinha era a pequititica e não a representação
que desejava fazer naquele momento (45-50).
Quando foi pronunciada a palavra lagarta, Anna aceitou a sugestão
e utilizou o termo para compor um bonito jogo de palavras: “Eu vou
fazer uma largata. A largata, ela é larga. Depois ela vai comer
um montão... Gorducha. ...folha que tava aqui, montão de
folha, montão, montão, montão” (56).
Anna se apropriou da palavra lagarta invertendo as letras e tornando as
idéias mais coerentes para ela. Largata/ larga/ gorducha; que vai
comer um montão, montão, montão de folhas.
Em vários episódios anteriores esta menina tornou evidente
que considera a alimentação imprescindível para a
sobrevivência e, aqui a alimentação parecer estar
também associada à idéia de crescimento e desenvolvimento,
uma vez que há uma distinção entre a larvinha (pequititica)
e a lagarta (gorducha), a qual, come vorazmente.
Depois de “comer um montão” a lagarta ficou dentro
do casulo e virou borboleta.
Ao constatar a ênfase que a menina deu para o fato de a lagarta
ter comido muito, parece-me que ela considera esta situação
suficiente para que a lagarta se transforme em borboleta.
É interessante também observar que embora “casulo”
corresponda a uma fase do ciclo de vida das borboletas, é mencionado
pelas crianças no sentido de um abrigo. É mais um “lugar
para a borboleta ficar” só que este local tem a função
de proteção, acolhimento, repouso.
Creio que este sentido de casulo como fase da vida realmente não
foi enfatizada e não foi realizada nenhuma discussão entre
as crianças que pudesse esclarecer a diferença entre estes
dois sentidos.
Trecho 3
65. Alex: Aqui, olha. Agora eu vou.
66. Anna: Agora eu vo.... Vai (ter de) borboleta? Eu tenho um montão...,
eu tenho, um, dois,três, quatro, cinco.
67. Jorge: Você tem mais do que eu, Ana.
68. Anna: Eu tenho...Seis. Eu tenho duas.
69. Jorge: Anna, você tem mais do que eu.
70. Anna: É.
71. Jorge: (Meu) tenho mais do que eu.
72. Anna: Eu sei.
73. Alex: Que que isso?
74. Anna: Que que é isso daí, Alê?
75. (...)
76. Anna: Ela tá sobrivivendo aqui, a borboleta.(Disse indicando
o casulo que havia desenhado inicialmente – desenho 3 – 1)
77. Celi: Tá sobrevivendo?
78. Anna: Tá. Por causa que eu tô fazendo uma bolinha prá
elas comer.
79. Celi: Tá. Ah, e ela come quando tá dentro do casulo.
80. Anna: É.
81. Celi: É. Hum...
82. Anna: A minha come.
83. Celi: A sua come.
84. Alex: Deixa eu ver...
85. Anna: Mas de verdade não come... Você pintou a mesa!
No turno
76 Anna associou a idéia de sobrevivência à alimentação.
Ainda que ela soubesse que a borboleta “de verdade” não
come quando está “dentro” do casulo, afirmou “a
minha come, mas a de verdade não come”. Em outras palavras,
para a menina, não parece fazer sentido que exista um ser vivo
que possa sobreviver sem comida. Assim, incluir a comida dentro do casulo
que desenhou é um modo de dar um sentido às informações
que talvez ainda estivessem incoerentes para ela.
Em uma roda de conversa ocorrida semanas antes deste episódio a
menina revelou uma hipótese sobre o casulo que estava sendo cultivado
em um terrário na sala de aula: a lagarta que estava dentro do
casulo saía para comer folhinhas à noite e por isto ninguém
a via comer, pois todos iam para casa e não ficavam na creche nesse
horário.
Ainda que a menina tenha imitado a realidade representando as diversas
fases do ciclo de vida, o apetite voraz da lagarta, a diferença
anatômica entre as etapas da borboleta e as flores para a borboleta
ficar, ela apropriou-se destas informações atribuindo sentidos
coerentes com sua realidade interna: é preciso comer para manter-se
vivo.
Mais uma vez aqui é reforçada a idéia de casulo como
compartimento ou habitação.
Trecho 4
86. Alex: Ó, ó, olha aqui é a bolinha. É a
bolinha.
87. Celi: E pra que que servem essas bolinhas, Alê, Alex.
88. Alex: É prá crescer a taturana.
89. É prá cresce a taturana?
90. É.
91. Anna: Vamos lá brincar?
92. Alê: Vamos.
93. Celi: Que que a tarana, taturana... que que essas bolinhas fazem?
94. Alex: A tatulana entra aqui nas bolinhas e depois elas vira borboleta.
95. Celi: Ah, dentro das bolinhas.
96. Jorge: É o casulo, não é Alex?
97. Alex balançou a cabeça afirmativamente.
98. Celi: São os casulos, então essas bolinhas? Ô,
Alex, que bacana.
Anna e Alex
utilizaram a palavra bolinha atribuindo significados diferentes. Para
a menina, as bolinhas representam alimento (78) enquanto que para o garoto
elas representam o casulo (86-98).
Apesar desta diferença, parece-nos que o fato de Anna ter pronunciado
a palavra bolinha fez o menino lembrar do significado que ele atribui
à palavra e decidir desenhar “as bolinhas onde a taturana
vira borboleta”.
Jorge, ao ouvir a explicação de Alex contribuiu nomeando
as bolinhas conforme as informações que foram sendo adquiridas
no decorrer do desenvolvimento do projeto: as bolinhas se chamam “casulo”
(96).
Isto evidencia que para esta criança o significado do termo casulo
é realmente muito significativo. Foi justamente esta palavra que
o fez iniciar a seqüência de representações de
borboletas em várias etapas do ciclo de vida e agora, mesmo sem
utilizar esta palavra, foi a lembrança de seu significado que o
fez iniciar a seqüência de “bolinhas”.
Há uma representação de casulo que consiste de um
traço em torno da borboleta adulta (figura 4:6).Este tipo de desenho
apareceu diversas vezes nas produções de outras crianças.
Talvez isto indique que as crianças reconhecem o fato de que mesmo
mudando de aspecto, todas as fases da vida correspondem ao mesmo animal.
Considerações
finais
Conforme
procuramos mostrar na discussão anterior, nossos dados evidenciam
que as crianças utilizam-se intensamente da linguagem verbal ao
realizar seus desenhos em grupo.
Estas interações de linguagem parecem-nos interferir diretamente
nos resultados finais dos desenhos, uma vez que é na interação
que as decisões sobre o que será representado são
tomadas.
Considerando que estes desenhos foram realizados três meses depois
de iniciado o desenvolvimento do projeto, a maior parte das palavras utilizadas
nas conversas já eram familiares para as crianças. Entretanto,
os significados atribuídos a elas e os sentidos com que foram utilizadas
nem sempre foi partilhado por todos.
Assim, a conversa que ocorreu entre as crianças, durante a qual
estes sentidos foram constantemente negociados, foi extremamente importante
para que elas tivessem a oportunidade de refletir sobre o assunto e adequar
os contextos de utilização dos termos.
Ficou evidente também nos nossos dados, o “poder” das
palavras como desencadeadoras de lembranças significativas. O melhor
exemplo disto é o caso da palavra “casulo” que resultou
uma seqüência de desenhos sobre borboletas na produção
de Alex. Acreditamos que esta palavra atuou “modificando o campo
visual” do garoto, conforme afirma Vygotsky (1998), uma vez que
deslocou suas representações dos grandes para os pequenos
animais.
Ao observarmos as explicações das crianças sobre
seus desenhos, parece-nos que as borboletas (como seres vivos) assumem
as seguintes características:
? Precisam ser alimentadas
? Necessitam de um lugar para ficar
? O lugar em que ficam tem elementos naturais
? Apresentam diversas fases de vida
? Possuem asas
? Apresentam segmentação do corpo
? Os casulos são considerados como moradias ou compartimentos em
que as lagartas ficam até virarem borboletas
Nossa análise leva-nos a acreditar que é de fundamental
importância para as crianças que suas primeiras aproximações
dos conhecimentos sobre os seres vivos ocorram de modo que elas tenham
acesso a estes conhecimentos por meio de diversas fontes e, principalmente
que lhes seja garantido o direito de se expressar com o uso de diferentes
linguagens e de participar de interações com outras crianças.
Deste modo, elas terão as oportunidades necessárias para
fazer negociações, apropriar-se dos significados das palavras,
compreender os contextos em que são utilizadas e construir conhecimentos
sobre os seres vivos.
Referências
Bibliográficas
ARFOUILLOUX,
J. C. A entrevista com a criança. A abordagem da criança
através do diálogo, do brinquedo e do desenho. Rio de Janeiro:
Zahar, 1983.
DERDYK, E. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil.
São Paulo: Scipione, 1989.
MOREIRA, A. A. A. O espaço do desenho: a educação
do educador. São Paulo: Loyola, 1999.
VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
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