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GULLIVER´S
TRAVELS À MODA LOBATIANA
Adriana Silene Vieira – Centro Universitário São Camilo - CUSC A pesquisa aborda a influência do livro Gulliver’s
Travels (1726), de Jonathan Swift, na literatura infantil de Monteiro
Lobato. Monteiro Lobato, tradutor e adaptador. Em D. Quixote das crianças, temos um exemplo do
trabalho de Lobato de adaptação de um texto originalmente
escrito para adultos que, segundo ele, pode interessar ao leitor infantil.
Assim, se a linguagem do livro de Cervantes, traduzido em português
para o público adulto, não seria interessante ou fácil
de ler para a criança brasileira, Lobato, colocando Dona Benta
como narradora, faz um trabalho de adaptação. A personagem
lê a história e a conta oralmente para seus netos, dando
atenção ao enredo, ou, segundo as palavras de Lobato , às
aventuras. Ando com várias idéias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. Veio-me diante da atenção curiosa com que meus pequenos ouvem as fábulas que Purezinha conta. Guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos – sem, entretanto, prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade nos fica no subconsciente para ir se revelando mais tarde, à medida que progredimos em compreensão. Ora, um fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se for feito com arte e talento dará coisa preciosa. As fábulas em português que conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e impenetráveis. Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta.(...). É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos. Nessa carta de 1916, podemos observar um pouco dos planos
de Lobato com relação à literatura infantil, nela
incluídas atividades de tradução. A preocupação
do escritor com seus filhos se estenderia depois a todas as crianças
do Brasil, sendo suas idéias relativas à leitura, público
e livros expostas em suas cartas e também em suas obras. A teoria
e prática lobatianas de pensar e trabalhar com textos estrangeiros
manifestam-se de várias formas, seja fazendo traduções
e adaptações, seja incluindo personagens de textos estrangeiros
em sua obra infantil. Pretendemos lançar uma série de livros para crianças, como Gulliver, Robinson, etc., os clássicos, e vamos nos guiar por umas edições do velho Laemmert, organizadas por Jansen Muller. Quero a mesma coisa, porém com mais leveza e graça de língua. Creio até que se pode agarrar o Jansen como “burro” e reescrever aquilo em linguagem desliteraturizada. Esta crítica não pode passar despercebida,
pois mostra que Lobato havia lido as traduções feitas pelo
professor do colégio Pedro II, e desaprova a linguagem utilizada
por ele. Quando Lobato expõe seus planos de escrever seus textos
em uma linguagem “desliteraturizada”, mostra que para ele,
mesmo tendo sido publicados no Brasil, estes textos não apresentariam
“leveza e graça de língua”. E há Viagens de Gulliver, e as Mil e uma noites e Peter Pan – todas essas coisas que vêm galhardamente resistindo ao roçagar dos anos. O realmente bom, é de todas as pátrias e de todos os séculos. Esta seleção do texto de Swift entre os preferidos de Lobato é relevante porque ele veio efetivamente a trabalhar com estas obras por ele selecionadas, o que coincide com o que diz a Hernani Ferreira tratando de questões de leitura e escrita: Quanto aos livros a recomendar... Que coisa difícil! Para cada temperamento, para cada personalidade que somos, tais os livros. Eu já disse não sei onde, que temos de ser ímãs; e passar de galopada pelos livros, com cascos de ferro imantado, para irmos atraindo o que nas leituras nos aproveite, por força de misteriosa afinidade com o mistério interior que somos. Ler não para amontoar coisas, mas para atrair coisas. Não coisas escolhidas conscientemente, mas coisas afins, que nos aumentem sem o percebermos. Lobato usa neste trecho a metáfora do ímã
para tratar do ato da leitura, tratando da influência como uma espécie
de atração. (...) Mas só traduzíamos do francês
e do espanhol. Não podemos deixar de destacar no trecho citado
que os nomes arrolados foram publicados pela Companhia Editora Nacional,
seja com a assinatura de Lobato, seja com a de colegas seus, como Godofredo
Rangel . A concepção lobatiana de tradução
faz referência à temática da oralidade, pois para
Lobato, o tradutor deve reescrever o texto como quem ouve uma história,
contando-a com palavras suas. Essa idéia se harmoniza com seu trabalho
de tradução e adaptação, pois, ao traduzir
textos como Peter Pan, D. Quixote, História do Mundo para Crianças,
não só adapta livremente o enredo como também apresenta
a história através de um contador de histórias, Dona
Benta. Isto nos leva à hipótese de que, mesmo quando não
colocava uma personagem como narradora, Lobato ainda mantinha o processo
de traduzir e adaptar como se o texto fosse apresentado por um contador
de histórias, isto se dá, por exemplo, em sua adaptação
de Alice, em que, logo no início, o narrador afirma que a história
iria ser contada “por artes de Narizinho”, que queria conhecer
a história da personagem inglesa. Os nomes que vimos pela primeira vez como tradutores perdem o prestígio quando os vemos como autores. Há em nós a vaga impressão de que quem traduz não pode criar” . Seu comentário traz à tona a polêmica
sobre a valorização do trabalho do tradutor. No caso de
Lobato, assim como no de Érico Veríssimo, ocorreria o contrário
do que o texto acima sugere: Lobato publica suas traduções
nas décadas de 30 e 40, época em que já era consagrado
como escritor, de modo que o simples fato de assinar uma tradução
já valoriza a obra. Este tema é também discutido
por Vanete Dutra Santana, que trata da importância das traduções
dos contos de E. A. Poe por Baudelaire. Nastácia estava de fato fritando bolos. Emília
fez a apresentação. O texto é seguido de uma nota de rodapé
informando o título do livro, Alice in Wonderland, que havia sido
traduzido pelo próprio Lobato. A informação tem sotaque
comercial, pois nela Lobato, como co-editor, faz propaganda de outro trabalho
seu, despertando a curiosidade do leitor o outro livro. Usando da intertextualidade
como estratégia de marketing, Lobato aponta a necessidade da tradução
para que a personagem estrangeira pudesse falar em vernáculo e
se comunicar com tia Nastácia, pois, depois de ser traduzida, a
obra estrangeira começava a fazer parte do universo dos leitores
brasileiros. Idéias de Lobato sobre leitura e tradução. A adaptação lobatiana de G. T., publicada
pela Cia Editora Nacional teve apenas quatro edições, duas
em 1937 e duas em 1940. Lembro-me de um cromo de vivas cores que vi aos cinco
anos, reclame da linha de coser Coat (...) Representava aquele cromo um
gigante estirado à borda do mar e enleado de mil fios de linha
Coat; em redor formigava a legião dos pigmeus amarradores.(...) Nesta passagem, Lobato inclui Swift entre os autores “maravilhadores
da imaginação infantil”, tratando da forma como primeiro
tomou contato com a história, através de uma propaganda
estrangeira e da leitura de uma ilustração. A seguir, trata
de sua experiência como leitor de uma adaptação do
texto de Swift. É interessante observarmos que a primeira impressão
que Lobato teve de G. T. foi a de uma história para crianças,
lado a lado com Grimm e Andersen. Assim, da mesma forma como afirmava
em várias cartas valorizar sua impressão de criança
com relação à obra R. C., Lobato parece também
desejar resgatar sua impressão de criança leitora de G.
T., já que seu objetivo era o de escrever livros que pudessem interessar
e se comunicar com as crianças, o que, segundo os críticos
do escritor, foi um trabalho bem-sucedido. (...) isto de traduções é uma eterna
lástima. Alguns de meus contos aparecidos em revistas de Buenos
Aires são até de irritar. E pelo que fazem nos meus contos,
imagino a borracheira em que os lusitanos terão transformado as
centenas de obras internacionais que traduziram. Tenho diante mim a tradução
de The Vicar of the Wakefield, que é uma obra-prima da literatura
inglesa; pois o raio do labrego transformou-a em “bota” –
com “s”. Gosto tanto desse livro, que me vem vontade de eu
mesmo pô-lo em língua nossa. Vemos nesse comentário que Lobato tinha também
alguns conceitos sobre o que seriam as boas e más traduções.
Aliada à sua observação sobre a dificuldade de se
traduzir Alice, embora o tenha feito em 1931, esta afirmação
mostra que, embora se desse o direito de traduzir textos de outros, muitas
vezes desaprovava o que era feito com os seus. Sabe até o que quero? Verter a Menina e Moça, ou Saudades do velho Bernardim Ribeiro, em língua quase atual. Fiz uma parte, que já dei a imprimir. Depois te mostrarei. Aquilo está já muito recuado, muito antiquado; mas se o pusermos mais perto, em língua, não digo de hoje, mas de pouco antes de Herculano, fica uma delícia. O rouxinol que cantou, cantou e morreu – que lindo! É o melhor rouxinol que conheço. Os outros cantam e fazem cocô – o do Bernardim canta e morre... Dos planos, Lobato parte para a ação e menciona sua esposa como a primeira crítica de seus trabalhos: Já concluí a semi-desarcaização do Bernardim Ribeiro, mas coisa tão leve que o leitor nem sente. Nada se perdeu da ingenuidade daquele homem. De ilegível que era, ficou delicioso de ler-se. Fiz a experiência ontem em casa, com as provas. Purezinha, sempre tão exigente, leu-o e com encanto. Só agora, Rangel, vai o Bernardim popularizar-se no Brasil. Antes apenas lhe citavam Menina e Moça, e os imortais recorriam ao seu rouxinol sempre que precisavam dum passarinho que não fosse virabosta. Eu tinha-o na estante e jamais o li. Pegava e largava. E como eu, todo mundo. Logo que sair, te-lo-ás aí. Vamos fazer uma linda edição. Aquele rouxinolzinho merece gaiola dourada. Chama-nos a atenção o fato de Lobato ter
realmente editado uma “retradução” de um texto
escrito em Língua Portuguesa. Este foi a obra Memórias de
Um sargento de Milícias (1852-3), de Manuel Antônio de Almeida,
que saiu em 1925, pela Cia Gráfico-Editora Monteiro Lobato numa
edição “escoimada dos vícios da forma”.
Esta “tradução” lobatiana é discutida
e cotejada com o texto original por Lilian Escorel de Carvalho . A interferência
do editor Lobato no texto de Manuel coincide com a interferência
dos editores ingleses, que abordamos nos capítulos I e II. (...) e se puseres pedra-hume na tinta, ainda poderás na tradução encurtar umas cinqüenta páginas. Desse modo, temos, junto da preocupação
com a atualização da língua, o interesse em simplificar
e resumir os textos nas adaptações brasileiras dos textos
estrangeiros. Lembras-te que os leitores vão ser todos os Nelos deste país e escreve como se estivesse escrevendo para o teu. Estou a examinar os Contos de Grimm dados pelo Garnier. Pobres crianças brasileiras! Que traduções galegais! Temos que refazer tudo isso – abrasileirar a linguagem. Por fim, também navegamos no que poderia ser chamado de teoria lobatiana da tradução quando Lobato usa a metáfora da tradução como transplante, e considera a tradução como: A tarefa mais delicada e difícil que existe, embora realizável quando se trata da passagem de obra em língua da mesma origem que a nossa, como a francesa ou a espanhola. Mas traduzir do inglês, do alemão, ou do russo, equivale de fato a quase absurdo. Fatalmente ocorre uma desnaturação. Se a tradução é literal, o sentido chega a desaparecer; a obra torna-se ininteligível e asnática, sem pé nem cabeça, o que se não dá quando o original é francês ou espanhol. A tradução tem de ser um transplante. O tradutor necessita compreender a fundo a obra e o autor, e reescrevê-la em português como quem ouve uma história e depois a conta com palavras suas. Ora, isto exige que o tradutor seja também escritor – e escritor decente. Aqui vemos que Lobato considera a tradução
de obras escritas em línguas não neolatinas como algo mais
complicado e lembra que é preciso o tradutor conhecer a fundo a
obra, para traduzir seu sentido, e não simplesmente suas palavras.
Por fim, lembra a necessidade de o tradutor ser também um escritor,
o que se dava em seu caso. Folheei a tradução (“A sabedoria do destino”), li aqui e ali, e li com atenção os dois primeiros capítulos. Helas! É tradução ao tipo de quase todas por aí, que seguem o texto literalmente e matam toda a claridade da obra. Duvido que um leitor qualquer leia e entenda o que Maeterlinck quis dizer no capítulo I, em português, e no entanto está traduzido fielmente. Eis o erro. A tradução de fidelidade literal, isto é, de fidelidade à forma literária em que, dentro da sua língua, o autor expressou o seu pensamento, trai e mata a obra traduzida. O bom tradutor deve dizer exatamente a mesma coisa que o autor diz, mas dentro da sua língua, dentro da sua forma literária. Pelo trecho acima, vemos que Lobato, criticando as traduções
literais e afirmando que o tradutor deve ser um “bom escritor”
parece considerar-se entre os bons, já que em seus trabalhos ele
toma grande liberdade com relação aos textos de outros. “Posso ensinar o meu método a todos esses moços. A questão toda é ir para a máquina de escrever logo que chega o leiteiro e não parar até a hora do almoço. Eles que experimentem...” Era como respondia, meio ofendido, a tais calúnias. Este regime apertado de trabalho coincide com o que Lobato conta a seu amigo Rangel sobre o mesmo. Tenho empregado as manhãs a traduzir, e num galope. Imagine só a batelada de janeiro até hoje: Grimm, Andersen, Perrault, Contos de Conan Doyle, O homem invisível de Wells e Polliana Moça, O livro da Jungle. E ainda fiz Emília no país da gramática. Tudo isto sem faltar ao meu trabalho diário na Cia. Petróleos do Brasil, com amiudadas visitas ao poço do Araquá. Positivamente não sei explicar como produzi tanto sem atrapalhar o meu trem normal de vida. Junto à sua dedicação, observamos o seu testemunho sobre o deleite ao lidar com os autores que traduz: Gosto imenso de traduzir certos autores. É uma viagem por um estilo. E traduzir Kipling, então? Que esporte! Que alpinismo! Que delícia remodelar uma obra de arte em outra língua! Estou agora a concluir um Jack London, que alguém daqui traduziu massacradamente. Adoro London com suas neves do Alaska, com o seu Klonlike, com os seus maravilhosos cães de trenó. Lobato trata também de seu trabalho de “fiscal” de outros tradutores: Ando a fiscalizar as traduções para o Otales, e bom dinheiro perde ele com essa fiscalização! Mas, faça-se-lhe justiça: perde-o com prazer. Prefere perder dinheiro a enfiar no público uma tradução que eu condene. Que outro editor faz isto? Já perdeu assim mais de vinte contos este ano. E o público engoliria do mesmo modo todas as infâmias condenadas, porque o público é o maior bueiro do mundo. Eu às vezes até me revolto de dar à bola em certos trechos de difícil tradução, ao lembrar-me do que é a média do público. Mas sou visceralmente honesto na minha literatura. Duvide quem quiser dessa honestidade. Eu não duvido. Nem você. É interessante observarmos que nesse trecho Lobato
parece incluir seus trabalhos como tradutor dentro de “sua”
literatura. Além disso, ele, que trata com respeito seus leitores
infantis, aqui parece destratar o público em geral que, segundo
ele, aceitaria qualquer tradução sem nenhuma crítica,
não obstante, ele diz esmerar-se em seu trabalho, por causa de
seus princípios. Ora, como se sabe, a elite no Brasil é restritiva e, ao demais, os seus elementos são os que menos compram livros.[...] Quem se metesse a editar para as elites morreria de fome. O forte da venda está nas massas. Essas só aceitam a leitura como um divertimento. Daí tem você estabelecido o princípio: é preciso divertir o leitor. [...] Por isso estou editando os romances de capa e espada de Dumas e outros escritores franceses passionais, cujas traduções o mundo em peso lê e aprecia. Lembrando também do carinho especial de Lobato para com seu público infantil, temos uma metáfora sua sobre o que se encaixaria no gosto deste leitor: Se eu sarar bem e puder ver-te um dia hei de revelar-te o segredo de escrever para crianças de modo que elas se agradem e peçam por mais. No fundo é tratá-las como quase gentes grandes. Aprendi isso certa vez em que vi uma criança metida nesta escolha: ou um lindo bonezinho infantil vermelho ou uma velha cartola do pai. Ah, não vacilou. Foi-se à cartola, e levou muito tempo com ela na cabeça. Nos livros as crianças querem que lhes demos cartolas – coisas mais altas do que elas podem compreender. Isso as lisonjeia tremendamente. Mas se o tempo inteiro as tratamos puerilmente, elas nos mandam às favas. Lobato ainda volta a falar de seu trabalho de fiscal de traduções e também de “retradutor”, entrando em detalhes sobre alguns textos traduzidos, ou seja, tratando na prática da sua teoria, segundo a qual às vezes não se precisam traduzir as palavras “ao pé da letra”, mas que se podem tomar os nomes próprios dados às coisas nas outras culturas. Em carta, de 1941, o escritor comenta com Rangel a respeito das revisões que fazia em trabalhos dos outros e de críticas às suas traduções: (...) A primeira tradução do Kim lançada
pela Editora era uma neblina. A gente lia e entendia vagamente. Otales
encomendou-me outra. E meu último trabalho – ou “trabalheira”
– foi retraduzir uma tradução do tremendo For Whom
The Bell tolls, do Hemingway. Encontrei “pérolas do Agripino”
nessa tradução, e das mais preciosas. Esta, por exemplo;
- “What is this?” pergunta lá um cabra quando Jordan
tira do bolso a frasqueira de absinto. E Jordan responde: “That
is the real absinthe. That is wormwood.” “Wormwood”
é o nome inglês da nossa velha losna, o ingrediente do absinto;
mas como se trata duma palavra composta – “worm”, verme;
e “wood”, pau, madeira – lá o tradutor tomou
a pobre losna como “bicho de pau podre” e verteu assim: “Isto
é o absinto, uma bebida feita de bicho de pau podre.” E acrescentou:
“No verdadeiro absinto há verme de pau, cupim...” Ao criticar uma tradução incompreensível,
Lobato a considera uma espécie de “neblina”, não
deixa escapar também as suas próprias falhas. Desse modo,
podemos observar que uma das qualidades das traduções para
Lobato seria o fato de poder ser lida, ou seja, estar em estilo claro,
transparente (como clara de ovo, diria a Emília). Estou com atraso, com 2 cartas tuas sem a resposta pronta
do costume. Isso foi porque empreendi a tradução do último
volume da História da Civilização do Will Durant,
Cesar e Cristo, e apaixonei-me tanto que suspendi todas as minhas atividades,
inclusive a epistolar. A comparação do ofício de traduzir
com um remédio, feita por Lobato, pode ser lida como uma forma
de ele expressar o quanto esta tarefa lhe fazia bem. Sentido semelhante
ocorre em outras metáforas de Lobato, quando, na prisão,
trabalha com afinco em suas traduções e compara este ofício
a um vício e/ou um remédio. Há muitas maneiras de ler. Talvez que a mais profunda
seja a de quem verte um livro para outra língua. O tradutor é
um escafandrista. Mergulha na obra como num mar, impregna-se de um pensamento
concretizado de um certo modo – o estilo do autor – e lentamente
o vai moldando no barro de outro idioma, para que a obra não admita
fronteiras. Sem esses abnegados trabalhadores, a literatura ficaria adstrita
a pátrias, condenada a limites muito mais estreitos do que os permitidos
pela sua potencialidade. Finalizamos, assim, o tópico sobre “Lobato
tradutor”, onde sistematizamos suas observações sobre
a tradução, sua opinião sobre a importância
da tradução para a difusão de textos estrangeiros
no país, suas críticas às traduções
e também sua apologia ao tradutor, através de metáforas
como a do escafandrista, para lembrar que ele “mergulha”,
e a da formiga, para lembrar seu trabalho incansável. Nas horas em que não estou dormindo, ou comendo, ou sendo visitado, ou conversando com os companheiros, trabalho em minhas traduções. Haverá melhor vida? Meu medo é um só: que o Tribunal de Segurança me absolva e assim me prive duma deliciosa estadia aqui de seis meses a dois anos. Isso só serviria para por em foco o caso do petróleo – e a causa se beneficiaria. Em outra carta, para o amigo Garay, redigida na casa de detenção, no dia 19 de abril do mesmo ano, Lobato também alude às traduções: Aproveito o tempo traduzindo o Kim, de Kipling e essa estadia na Índia me faz esquecer de maneira mais completa a prisão. Pena é que o excesso de visitas me tome tanto tempo. Como vai a tradução de Reinações? Em carta de 15 de Abril de 1940, Lobato, diria. Continuo traduzindo, a tradução é minha pinga. Traduzo como o bêbedo bebe: para esquecer, para atordoar. Enquanto traduzo, não penso na sabotagem do petróleo. Com esta última metáfora sobre a tradução – “a minha pinga” – , finalizamos esta breve abordagem das idéias de Lobato acerca da tradução, além de seus relatos sobre seu trabalho em algumas destas. Desejamos com esse levantamento, dar nossa contribuição para uma pesquisa sobre as traduções que recebem a assinatura de Lobato, pensando nela como parte do mosaico de traduções publicadas no Brasil na primeira metade do século XX, época que, para a historiografia da tradução, foi o boom da tradução no Brasil. |
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