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PARATEXTOS
CÍVICOS: LIVROS ESCOLARES E A FORMAÇÃO DO CIDADÃO
NO BRASIL (1889-1930)
Cleber Santos Vieira - FE-USP / Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo
Os anos 20 são freqüentemente apresentados
como o momento de inserção do Brasil na modernidade. Aos
profundos impactos da primeira guerra mundial (1914-1918) fenômeno
responsável por revigorar o ânimo nacionalista por todas
as partes, soma-se questões de ordem interna como a semana da arte
moderna, o desenvolvimento urbano-industrial, a fundação
do partido comunista, as lutas tenentistas e operárias, entre outros.
O momento também foi de conversão dos intelectuais à
ação política. Na década de 20 a intervenção
dos intelectuais na vida pública ressurgiu manifestando-se por
várias correntes de pensamento, porém, sempre no intuito
de refundar a república. Foi um contexto de afirmação
da brasilidade, do caráter nacional e do redescobrimento do Brasil
de onde surgiriam representações da nação
que permaneceriam latentes na história republicana por várias
décadas.
De acordo com Daniel Pécaut este engajamento intelectual tinha
uma razão de ser: a lacuna existente entre povo e nação,
“convidava” os intelectuais a ocuparem as instituições
públicas representando a soberania popular junto ao Estado. Por
esta lógica, os intelectuais produziram representações
sobre o moderno associando política e cultura. O surgimento de
uma nova nação dependeria, de acordo com o arcabouço
analítico traçado por Pécault, da vocação
política dos intelectuais. Essa guinada passava pela intervenção
articulada e simultânea na política e na cultura. Assim,
“Aspirando a renovar as formas de expressão da arte brasileira,
definiu conteúdo da modernidade cultural: contemporaneidade ao
lado das vanguardas européias futuristas e surrealistas, sensibilidade
à descoberta psicanalítica e, simultaneamente, exploração
dos alicerces da nacionalidade brasileira na busca de suas maneiras de
ser, seus falares, sua diversidade étnica e cultural, e das definições
que estão na raiz da sua inventividade.” (PÉCAULT,
1990. p. 26-27)
O conteúdo da modernidade cultural apontado por Pécaut nutriu
um amplo leque de movimentos podendo ser arrolados grupos antagônicos
na perspectiva, mas compromissados em operar uma nova leitura da realidade
brasileira. Pau-Brasil e Antropofagia, Anta e o Verde – Amarelo
podem ser citados entre os mais importantes. Nos primeiros militou Oswald
de Andrade, os dois últimos contaram com Plínio Salgado
entre seus quadros. Divergências de conteúdo político
marcariam a trajetória posteriormente seguida pelos protagonistas,
alguns com inclinações ao PC, outros ao fascismo tupiniquim
em torno da AIB, outros cooptando e sendo cooptados pelo regime varguista,
inclusive com muita autonomia até certa altura do Estado Novo.
Mas, em comum tinham a crítica ao liberalismo, a visão elitista
da política e o projeto de civilizar através do Estado.
Compartilhavam ainda a concepção tão disseminada
no inicio do século XX da política como saber científico,
portanto, nas mãos dos homens de letras. A sociologia, em particular,
foi tomada como a ciência que abriria as portas da realidade a partir
de procedimentos racionais que postulavam rupturas com o romantismo e
o idealismo de outrora.
A produção cultural deste período significou a tentativa
de se apropriar do nacional dando-lhe novo sentido. A comunidade política
imaginada, para se valer do conceito de nação proposto por
Benedict Anderson (ANDERSON, 1989. p.14), seria revisitada a partir de
um amplo movimento cultural que visava refundar a nação
colocando-a nos trilhos da modernidade. Síntese desse processo,
o vocábulo “moderno” vai condensando assim conotações
que se sobrepõem em camadas sucessivas e cumulativas, as quais
lhe dão uma força expressiva ímpar, muito intensificada
por esses três amplos contextos: a revolução tecnológica,
a passagem do século e o pós-guerra (...) Ela introduz um
novo sentido à história, alterando o vetor dinâmico
do tempo que revela sua índole não a partir de algum ponto
remoto no passado, mas de algum lugar no futuro. O passado é, aliás,
revisitado e revisto para autorizar a originalidade absoluta do futuro.
(SEVCENKO, 1992, p.228)
Tratar a nação como um artefato cultural,
passível de reelaborações, não foi tarefa
exclusiva dos modernistas. A geração de intelectuais que
nos anos 20 se arvoraram em produções culturais comprometidas
com a redescoberta do Brasil, representava, isto sim, nacionalistas dotados
de um programa de caracteres moderno. O ímpeto nacionalista dos
modernistas não escaparia, assim, ao papel desempenhado por intelectuais
e escritores na construção das representações
nacionais. Sobre esse assunto, explicou Hobsbawm que, a título
de análise o aparecimento dos nacionalistas sempre precede o surgimento
das nações (HOBSBAWM, 2002. p.19). Não obstante,
a comunidade imaginada pela geração modernista não
seria forjada sem esbarrar, dialogar, confrontar e superar produções
culturais dos nacionalistas de outras gerações como românticos
e naturalistas. Tornou-se lugar comum afirmar que na passagem do século
XIX ao XX muitos escritores, poetas e literatos já não acreditam
nos rumos do republicanismo brasileiro e, decepcionados, amargariam o
isolamento. O entusiasmo despertado pelo abolicionismo e pelo movimento
republicano já não era o mesmo. A historiografia que cobre
o período, porém, têm apresentado pesquisas que demonstra
ser possível relativizar esse quadro.
Francisno Foot Hardman discute o tópico. O advento republicano,
explica o autor, gerou enormes expectativas acerca do progresso, rota
pela qual o Brasil deveria seguir no sentido de alcançar o status
de nação moderna. As expectativas foram acompanhadas pelas
representações que deveria caracterizar o país a
partir daquele marco fundador. Desse modo, “entre projeções
futuristas e revalorizações do passado, escritores do Brasil
na passagem do século tentavam fazer o que o modernismo, depois,
adotaria como programa: redescobrir o país. Confiança extrema
no progresso técnico ou consciência das heranças que
pesavam em nosso desconcerto nacional, eis as duas visões que conviviam
num mesmo dilema.” (HARDMAN, 1988. p.289).
Nicolau Sevcenko, em “Orfeu extático na metrópole”,
demonstrou como as representações política da Era
Vargas produzidas por alguns de seus mais importantes protagonistas buscou
associar o movimento de 1930 e seu desfecho, o Estado Novo, como expressão
política da modernidade artística iniciada em 1922: “as
forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário
do modernismo na literatura brasileira, que iniciou com a Semana de Arte
Moderna de 1922, em São Paulo, foram as mesmas que precipitaram,
no campo social e político, a Revolução de 1930.”
(Getúlio Vargas, O governo trabalhista no Brasil. In: Sevcenko,
op.cit. p.306)
Ao apontar que a associação entre semana da arte moderna,
modernismo e 1930 havia sido sugerida a Vargas por Cassiano Ricardo, proposta
acatada prontamente pelo presidente, Sevcenko revela a troca de interesses
entre o campo intelectual e o campo político enraizadas nas estruturas
do Estado nacional brasileiro nos anos 30 e 40. Afirmar que a revolução
de 30 representava a continuidade da modernidade iniciada na semana de
arte em 1922 implicava, evidentemente, na seleção de elementos,
temas e abordagens dentro do amplo repertório articulado em torno
do modernismo. O autor de Marcha para Oeste, que tantas contribuições
ofereceu à construção da identidade nacional no formato
de patriotismo oficial durante o regime varguista, mitificando a paisagem
o papel dos bandeirantes e explorando temas prediletos do nacionalismo
romântico típico da geração de 1870.
Por outro lado, a interpretação de Sevcenko sugere pensar
os sentidos do moderno, o modernismo e os modernistas como representações,
cujos elementos culturais não nasceram com a geração
dos anos 1920. Diante da explicação de Sevcenko talvez seja
possível repor as assertivas de Hardmam e perguntar:
Modernismo, qual? Dos artistas de 1922 ou de 1900? Da
geração de 1930 ou de 1870? Dos comunistas de 1922 ou do
movimento operário socialista e libertário das décadas
precedentes? Dos artistas de 1922 ou de 1900? Dos arquitetos acadêmicos
ou dos engenheiros de obras públicas? Dos tenentes dos anos 20
ou dos abolicionistas e republicanos de meio século antes? Dos
poetas metropolitanos ou dos seringueiros do Acre? Dos fios telegráficos
da Comissão Rondon ou dos índios rebeldes? De Mário
e Oswald de Andrade ou de Mário Pedrosa e Lívio Xavier?
Da revolução “técnica” ou da revolução
“social”? dos nacional-integralistas ou dos bolchevistas?
Do manifesto Antropófago ou do primeiro de maio? (HARDMAN, 1988,
p.303)
Na interpretação proposta por Francisco
Foot Hardman, os elementos que caracterizam o modernismo dos anos 20,
estruturados principalmente em torno da linguagem, já eram explicitadas
nas projeções de literatos, engenheiros, anarquistas e artistas
durante a belle époque (1870-1914). As linhas gerais do modernismo,
portanto, já estavam no horizonte histórico do início
do século XX. A primeira guerra aprofundou e viabilizou as possibilidades.
Mesmo um dos traços mais característicos do modernismo,
a consciência ambígua, expressão de uma permanente
tensão entre o intuitivo e o racional, entre o saber via sentimento
e o saber científico, entre o mecanicismo naturalista e a percepção
como pontos de partida da interpretação da realidade já
estavam esboçados no início do século XX. Ambigüidades
que, em grande medida, derivaram das dicotomias em se (re)construir a
nação em bases-racionais científicas ou intuitivas.
Esse fenômeno pode ser antevisto mesmo entre modernistas que não
compartilhavam do viés elitista e intelectualista manifestado por
expoentes de outras vertentes do modernismo. Este é o caso de Sérgio
Buarque de Hollanda. Analisando o pensamento do historiador, Maria Odila
da Silva Dias reconhece que os estudos empreendidos pelo autor, em particular
Raízes do Brasil, “trata-se de um conhecimento polêmico
e engajado pois chega a uma visão de conjunto por meio da percepção
de fenômenos para os quais não formulou hipóteses
iniciais.” (DIAS, 1974, p.13)
Tais questões acompanharam o redescobrimento do Brasil proposto
na década de 20 em todas as esferas. Dentre a temáticas
que perfilavam a reforma da sociedade a educação ocupava
papel central. Organizar a nação através da organização
da cultura passava pelo viés educacional (CARVALHO, 1998). Nesse
sentido, interessa discutir as dimensões das temáticas modernistas
nos manuais didáticos que anteciparam o programa modernista. Mais
precisamente, pretende-se, nas páginas seguintes, discorrer sobre
elementos inscritos em livros escolares de civismo nas primeiras décadas
republicanas que confirmam, na esfera da produção didática,
aquilo que Hardmam, Sevcenko e outros autores têm enfatizado sobre
a questão do modernismo brasileiro na esfera cultural.
Nesse sentido, prólogos, introduções, apresentações,
prefácios e outros gêneros de paratexto (GÉNNETE,
2001) revelam-se como objetos de estudos capazes de revelar o fluxo e
o refluxo das temáticas modernistas. Os paratetxtos, inscrições
que habitam o mundo do livro sem pertencerem ao corpo do texto, possuem
características historicamente mais circunstanciais. Os paratextos,
em particular a instância prefacial, estão profundamente
articulados aos sentidos históricos e as representações
que cada autor produziu sobre si e sua obra. Permitem, por isso, penetrar
no mundo das prefigurações de cada autor sobre o público
leitor, na intencionalidade e nas projeções da história
articulada em torno do livro.
Um primeiro ponto a ressaltar refere-se às expectativas geradas
pela república e o papel do processo educacional na consolidação
dos princípios republicanos. Na introdução do texto
A Educação Nacional, publicado pela primeira vez em 1890,
o renomado escritor José Veríssimo reconhecia a necessidade
da estruturação do sistema público de ensino para
consolidar a república. Nas entrelinhas Veríssimo lançava
luzes sobre a apatia do brasileiro contrastando com a euforia republicana,
descaracterizava o nativismo e expunha alguns dos dilemas deterministas
que buscavam classificar o caráter nacional:
Sem orgulho patriótico – que não merece
ser assim chamada a nossa parvoinha vaidade nativista –, sem educação
cívica, sem concorrência de espécie alguma, o caráter
brasileiro, já de si indolente e mole, como que se deprimiu, e
o sentimento nacional que luz pela primeira vez na luta com os holandeses
e depois nos conflitos de nacionais e portugueses nas épocas que
proximamente antecederam ou seguiram a independência, esmorece,
diminui, quase desaparece. (VERÍSSIMO, 1890. p.45)
A atenção importância empenhada por
José Veríssimo à formação cívica
dos cidadãos expõe um traço que percorreu todo o
início do período republicano até os anos 30, qual
seja o engajamento direto dos intelectuais na produção didática.
Outros nomes de peso no campo intelectual também projetaram o engajamento
político na esfera didática. Sílvio Romero, conforme
destacou Circe Bittencourt (BITENCOURT, 1993. p. 166.), também
pode ser citado entre os autores que, na virada do século XIX para
o XX, buscaram, através da educação, cativar o sentimento
patriótico e o civismo na perspectiva da formação
da cidadania e da participação política.
Embora com perspectivas diferentes sobre sentimento patriótico,
civismo e participação política o engajamento de
intelectuais na produção de livros escolares de civismo
permaneceu consistente por toda primeira república. No prefácio
do manual didático “Contos Cívicos e Patrióticos
do Brasil”, publicado em novembro de 1915, seu autor, Carlos Góes,
revelou as intenções, as linhas históricas e os marcos
que nortearam a elaboração do livro. A biografia arrolada
na capa do livro revela que Carlos Góes acumulava extensa atividade
na vida literária e nas formulações históricas
sobre o Brasil em instituições de São Paulo e Minas
Gerais.
“Cathedrático (por concurso) do Gymninasio
Official de Minas, Bacharel em sciencias jurídicas e sociaes, Membro
da Academia Mineira de Letras e do I. H. Mineiro, Delegado do Estado de
Minas ao 4º Congresso Brasileiro de Instrucção, Sócio
Correspondente da S. B. de H. de L. do I. H e G. de São Paulo,
do Centro de Sciencias e Letras de Campinas, Delegado da Liga Brasileira
contra o Analphabetismo, etc.” (GÓES, 1919)
Desse modo o 4º Livro de Leitura destinados aos
Grupos Escolares e Escolas Isoladas expressa uma característica
que marcava a produção didática nas primeiras décadas
do período republicano. O manual aparece como expressão
didática do autor que circulava por várias instâncias
de produção intelectual. O prefácio, significativamente
datado em 15 de novembro de 1915, revela a representação
discursiva produzida pelo autor acerca da lógica social da obra,
assim como, das questões históricas que definiram o contexto
da primeira guerra mundial. Diz o autor “Parecece-nos é a
primeira vez que no Brasil sae a lume obra neste gênero, e o momento
é propício, por que coincide com o empenho, em que arde
a nação de reerguer-se da apathia a que veiu a cahir”
(GÓES, 1919). A apatia descrita pelo autor foi identificada e analisada
sob diversos ângulos pela historiografia. Mas o fato é que
a primeira guerra mundial significou o fim da belle époque. A carnificina
em grande parte, viabilizada pelo progresso técnico científico
que enunciava a ordem mundial civilizada. Carlos Góes enuncia também
alguns dos mas importantes viesses pelos quais escritores, literatos e
educadores buscariam republicanizar a república e formar o caráter
nacional brasileiro: a busca da verdade.
A persistente e incisiva busca do conhecimento da realidade brasileira,
enquanto categoria discursiva, relaciona-se como sinal da linguagem modernista
da década de 1920, cujo marco é geralmente estabelecido
a partir da Semana de Arte Moderna de 1922. Porém, tal qual notaremos
na produção de Afrânio Peixoto e Manoel Bomfim, Carlos
Góes também esboçou alguns dos temas transformado
em programas pelos modernistas da década de 1920. Assim “Si
a este livro faltassem todos os requisitos pedagógicos de uma obra
destinada às escolas, - ainda um subsistiria que por si só
resgataria a falta de todos os outros. A verdade. O que ahi vae são
casos REAES, AUTHENTICOS, de existência comprovada por obras e documentos
que compusáamos.; são attestados vivos da excelência
do carácter brasileiro (Góes, 1915).
Os prefácios dos livros escolares apresentam a intensidade dos
impactos provocados pela grande guerra . Em Instrução Moral
e Cívica, ‘páginas cívicas’ publicadas
em 1922, Ramon Roca Dordal, interpreta e apresenta a guerra na plenitude
de seu alcance invadindo todos os lares. Na seção “À
Guisa de Prólogo” o autor enuncia de forma significativa
as rupturas provocadas pela Guerra. O despertar do nacionalismo sustentado
por uma linguagem extremamente bélica acerca do civismo, temas
amplamente destacados em outros autores e movimentos, em especial a produção
de Olavo Bilac e a Liga de Defesa Nacional, foram plenamente esboçados
por Dordal. Diz o autor:
“durante
os quatro longos annos da Grande Guerra, só um pensamento poderia
existir na mente de cada Latino – a guerra. Só um desejo
poderia abrigar-se no peito de cada homem livre - a victoria.” E,
aqueles que, pelo avançado da idade ou pelas condições
especiaes em que achavam, não poderiam ir batalhar ou preparar
elementos para a resistência, o que fariam?
Um dos meios possíveis, mesmo aos mais fracos, era escrever, era
preparar algumas páginas que dissessem aos moços de hoje
quanto trabalho, quanta dedicação, quanto civismo é
necessário impor-se para corresponder aos sacrifícios sem
conta realizado, então, nos campos de batalha. (DORDAL, 1922)
Neste prefácio,
nota-se, explicitamente a prefiguração da obra como forma
de ação no campo escolar em decorrência da não
participação direta do autor na guerra. A ação
pretendida sobre o público leitor remete à ação
bélica no campo de batalha e pode ser interpretado como uma das
dimensões do soldado-cidadão prefigurado e articulado em
torno dos livros escolares de civismo.
Mas os livros destinados à formação cívica
dos cidadãos permitem também discutir as formas concretas
assumidas pela representação que interpretava a “revolução
de 1930” como continuidade do modernismo iniciado em 1922. Neste
sentido, é interessante comparar a produção de um
mesmo autor em dois momentos, antes e depois de 1930, no sentido de apontar
abordagens histórica e as representações da comunidade
imaginada que perpassaram pela proclamação da república,
pela guerra, pela semana de 1922, pela revolução de 30 e
pelo golpe de 1937.
Em 1940, a Companhia Editora Nacional publicou “História
do Brasil”, ensaio histórico produzido pelo escritor Afrânio
Peixoto. O livro compunha a série ‘História e Biografia’
efetivada sob o sugestivo título “Biblioteca do Espírito
Moderno”. Editada em pleno Estado Novo, a Biblioteca do Espírito
Moderno pode ser considerada uma das expressões historiográficas
do discurso moderno produzido na era Vargas. A obra traz as marcas da
modernidade na história brasileira da época com traços
explícitos do nacionalismo conservador e romântico. A questão
pode ser antevista a partir dos elementos historiográficos postulados
por Roberth Sothey no século XVIII e apropriados por Afrânio
Peixoto, importante escritor nas primeiras décadas republicana.
Peixoto inicia sua assim estampando a epígrafe “Suceda o
que suceder, o Brasil será sempre uma herança de Portugal.”
Para, no epílogo, reafirmar:
Portugal
adivinhou, com Dom João II, o Brasil, em Tordesilhas. Descobriu-o,
com Dom Manuel.Colonizou-o e defendeu-o contra intrusos, com Dom João
III. Os Jesuítas foram moral e educação. A dominação
espanhola, que foi castigo no reino, transformou-se, no Brasil, em comunidade
para nos estender fronteiras até os Andes e o Rio da Prata. Com
Dom João IV, o Reino ainda ocupado pelo inimigo, não nos
desamparou por isso contra o Flamengo. Pombal foi comércio e progresso.
Com Dom João VI, é Portugal, uma cultura européia,
que se instala na América. Pedro I, um príncipe português,
dá-nos a Independência e Pedro II, seu filho, meio século
de respeito. Independentes politicamente, é entretanto a mesma
língua, raça, fé, sentimento e inteligência,
que nos fazem idênticos. Possamos nós dizer, como o Épico:
“de tal pai tal filho se esperava”. O trabalhador português
colabora ainda aqui com o nosso e quando, um em cem, torna a Portugal,
os bens aqui ficam, e o que vai são títulos brasileiros,
a confiança fiel dos portugueses.
Não quero, porém, que uma ternura suspeita, de português
da América, remate este livro, que documenta, entretanto, tudo
o que este epílogo resume. Dou a palavra a um insuspeito estrangeiro,
que também documentou a sua, a Robert Southey, autor de uma História
do Brasil: “Jamais houve nação que, na proporção
dos seus meios, tanto fizesse como Portugal.” Para concluir, com
a certeza da minha epígrafe: Suceda o que sucede, o Brasil será
sempre uma herança de Portugal. E isto da fé. De tal pai,
tal filho se há-de esperar.” (PEIXOTO, 1940, 329-330)
As matrizes ideológicas da historiografia e da consciência
nacional na obra de Roberth Southey fora analisadas com bastante propriedade
em “O fardo do homem branco, Southey historiador do Brasil”,
por Maria Odila da Silva Dias. Muitos dos temas centrais do pensamento
modernistas, como o problema da mestiçagem e outros assuntos tratados
por mosqueteiros das primeiras décadas republicana - a integração
com o meio e a expansão geográfica, por exemplo - conforme
explicou Maria Odila, implicitamente antecipados por Southey. Mas não
importa aqui discutir a obra e o balanço da obra de Southey por
inteiro, mas apenas demonstrar que assim como certas noções
típicas do nacionalismo romântico e conservador acenava para
Gilberto Freyre, Oliveria Vianna, Silvio Romero Euclides da Cunha e Capistrano
de Abreu, foram apropriadas pela literatura escolar pelas mãos
de Afrânio Peixoto.
Desse modo, na tentativa de estabelecer relações entre Roberth
Southey e Afrânio Peixoto, é importante lembrar que o historiador
inglês “concebia o processo histórico, até a
própria colonização, como etapa do aperfeiçoamento
da razão no processo evolutivo e cíclico da moral humana”.
(DIAS,1974, p.235.). Diria então que Afrânio Peixoto, apropriando-se
do humanitarismo autoritário que caracterizou a política
colonial inglesa, época na qual Southey viveu e escreveu sua versão
da história do Brasil, transfere o aparato conceitual para interpretar
a empresa colonizadora portuguesa na América. O tom civilizatório,
o apelo a paisagem a integração do homem ao meio e mesmo
a mestiçagem parecem ter encontrado espaço cativo no sentido
da modernidadepretendidos por Cassiano Ricardo e outros intelectuais no
poder. O próprio Afrânio Peixoto, apoiando-se em Benedito
Croce, reconhecia que seu discurso histórico sobre a nação
não era novo.
“Exíguo,
limitado como ensaio confessado que é: apenas o Brasil vem de Portugal,
que está no mundo: começo do começo, como deve ser.
Por vezes raio pela moral e pela sociologoia: não innovo, se para
os clássicos, as datas e factos faziam apenas documentos, para
ser acreditada a história de “mestra da vida”. Isto
é velho, mas é renovado, pela opinião de Benedeto
Croce, quando diz que toda história é história contemporânea.
A humanidade não é tão original que não se
repita.” (PEIXOTO, 1940, p.06)
Afrânio
Peixoto influenciaria ainda sucessivas gerações através
da obra escolar “Minha terra minha gente”. No prefácio
deste livro perfila uma tensa relação entre o diagnóstico
e construção do caráter nacional brasileiro. O autor
admite fatores deterministas, típicos das teorias psicológicas,
sociológicas e antropológicas de viés naturalista
muito presente na Europa e entre os escritores brasileiros em fins do
século XIX até 1914. Diz o texto: “Os brasileiros
oscilam, ordinariamente, entre um desenganado pessimismo e um optismo
ridículo (...) Sempre andamos entre macambusios ou gabolas.”
(PEIXOTO, 1916). Ao mesmo tempo aponta as verdades sobre a nacionalidade
transmitidas pela educação como sendo o veículo de
superação dos sentimentos em direção a atitudes
mais produtivas: E nem lamúrias de uns, nem os êxtases dos
outros, produzem nada. Pareceu, pois, ao autor novidade útil, escrever
para as crianças, pequenas e grandes, de sua terra, um livro sincero,
sem reservas nem vehemencias, no qual procurasse sobre os problemas essenciais
da nossa nacionalidade dizer-lhes verdades necessárias. (PEIXOTO,
1916)
Às vésperas da ascensão de Vargas ao poder, o então
deputado federal (1924 e 1930) Afrânio Peixoto, presenciava a Livraria
Francisco Alves reeditar o manual didático pela 3ª vez. Na
seção ‘Collaboração dos estrangeiros
ao progresso do Brasil’, o ensaísta, médico legista,
professor, político, romancista, historiador, membro do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e da Academia Brasileira
de Letras (ABL) mencionava o historiador Robert Southey – que nunca
esteve no Brasil - entre os “nomes que o brasileiro agradecido deve
conservar, de homens que honraram o Brasil com a sua visita, ás
vezes convivência, e relevantes serviços lhe prestaram reclamando
e conseguindo a attenção do mundo civilizado para uma terra
e um povo ainda pouco conhecidos”. (PEIXOTO, 1916, p. 148.)
Outro expoente da historiografia do período, contrastando com a
perspectiva de Afrânio Peixoto, manifesta de maneira ainda mais
explícita o discurso moderno manifestando-se por meio de ferramentas
lingüísticas típicas do naturalismo. Manoel Bonfim,
em América Latina, males de origem, texto originalmente publicado
em 1905, a redescoberta da nação consiste em identificar
e de certa forma denunciar os fatores inerentes a formação
social brasileira responsáveis pelo atraso no qual se encontrava
o Brasil e demais nações latino-americanas. Em “ O
Caráter Nacional Brasileiro”, Dante Moreira Leite situa as
ambigüidades expressas no texto de Bonfim. Diz ele, ‘é
um livro nascido do sentimento mas que expõe uma teoria”.
Em Manoel Bonfim as marcas dos tempos novos e as amarras que impediam
o progresso da nação apareciam formuladas já na virada
do século XIX para o XX.
O regime
sob o qual nasceram e viveram as colônias da América do Sul
influiu naturalmente sobre o seu viver posterior, quando já emancipadas.
Há no caráter das novas nacionalidades uma série
de qualidades – vícios – que são o resultado
imediato desse mesmo regime imposto pelas nações ibéricas.
Essas qualidades traduzem a influência natural do parasita sobre
o parasitado, influência constante, fatal mesmo, nos casos de parasitismo
social, máxime quando o parasitado procede diretamente do parasita,
quando é gerado e educado por ele. (BOMFIM, p.151, 1905)
Não
obstante, a perspectiva analítica adotada por Bomfim em “Os
males de origem” não teve a mesma sorte que Afrânio
Peixoto. A predileção por certas abordagens implicava, certamente,
no abandono de outras: “Em 1905, Bomfim procurou, antes de tudo,
dar uma resposta aos teóricos e publicistas europeus que, apoiados
no cientificismo naturalista e no evolucionismo, chamavam indistintamente
os povos do continente de inferiores, entregues ao mais puro barbarismo
estéril.” (AGUIAR, 1986. p.25). Isso talvez explique porque
a sutileza em relação ao livro Males de Origem e outros
textos igualmente ácidos de Bomfim, texto pouco divulgado em sua
época, contrasta com o sucesso alcançado por suas produção
didática. “Muito mais sucesso fez “Através do
Brasil”, livro de leitura produzido em parceria com Olavo Bilac
destinados as escolas brasileiras. Apenas para dimensionar a configuração
do mercado editorial e, ao mesmo tempo do público leitor brasileiro
às vésperas da eclosão da primeira guerra mundial,
os 4 mil exemplares vendidos por Através do Brasil em três
anos foi considerado verdadeiro sucesso de vendas. A linguagem ficcional
á apresentada como estratégia discursiva para tocar o sentimento
e melhor expor a verdade sobre o Brasil. Temas integrantes do “espírito
de época” que impulsionou o modernismo na década de
20 foram enunciados em 1910 por Bomfim e Bilac como estratégias
discursivas de uma pedagogia da nação. A relação
entre homem e meio ambiente, a integração das raças
por meio da colonização, a dicotomia selvageria e civilização
enunciam uma concepção histórica etapista, cujo progresso
representado nas figuras da indústria e das instituições
seriam frutos de uma evolução que ainda não atingira
as extremidades do corpo social.
“Agora
uma lição de história. É preciso principia
explicando de um modo sensível as condições do Brasil
antes da colonização. Fala por exemplo o livro de sertão
bruto onde havia... índios...”. É um excelente pretexto
para dizer quem são esses índios, que antigamente aqui viviam
sozinhos: os brancos e pretos vieram depois, e com eles veio a colonização
E então o professor apelará para a observação
da criança, para que ela note a diferença entre o estado
selvagem e as indústrias, instituições obras e costumes
que distinguem a civilização; mostrará que essas
instituições e indústrias faltam ainda em grande
parte em algumas terras do interior, onde a civilização
ainda não penetrou” (BILAC & BONFIM 2000, p.49)
“Através
do Brasil” foi recentemente relançado na coleção
Retratos do Brasil, publicada pela editora Companhia das Letras. Marisa
Lajolo, no ato de apresentação do volume, aponta a simetria
existente entre José de Alencar, a dupla Bomfim & Bilac e Mário
de Andrade. É assim que, Através do Brasil, perpassa por
uma longa viagem pela paisagem brasileira redescobrindo e ensinando o
Brasil. Explica a autora que a simetria “permite inscrever Através
do Brasil numa galeria por assim dizer mais canônica das letras
brasileiras. Identificam-se projetos simétricos e recorrentes,
que bem podem constituir a contraface estética de um projeto ideológico
e político sempre inconcluso e recorrentemente iniciado.”
(LAJOLO, 2000, p.29). Os protagonistas da ficção Carlos,
Alfredo e Juvêncio viajam descobrindo o território brasileiro
e os tipos sociais. A paisagem mística representa de certa forma
a opção por metáforas quando a realidade histórica,
particularmente o abismo entre as classes sociais, torna-se impermeável.
Nesse sentido Através do Brasil antecipa alguns dos temas tratados
em Macunaíma no final da década de 1920 e, ao mesmo tempo,
recoloca tópicos do nacionalismo romântico comum à
literatura de Alencar do século XIX.
Para lembrar a inquietação de Hardmam acerca dos antigos
modernistas talvez possamos acrescentar: livros escolares com abordagens
modernas, qual? Os do manifesto de 1932 ou os proclamados por José
Veríssimo, Silvio Romero e Manoel Bomfim? Os defendidos por Olavo
Bilac e a Liga de Defesa Nacional ou por Alberto Torres e Francisco Campos
no Estado Novo? O Brasil representado por Afrânio Peixoto de 1916,
autor de “Minha Terra, Minha Gente” ou o Afrânio Peixoto
de 1940, autor da História do Brasil?
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