Marilurdes Zanini - UEM
Introdução
O ensino e aprendizagem da leitura e da escrita como
processo simultâneo começou a incorporar a escolarização,
a partir da década de 50 do século XX. Antes, a leitura
sempre esteve no primeiro plano de um ensino centrado na oralidade.
A visão sócio-interacionista, que ilumina o trabalho com
a experiência aqui relatada, entende que essas atividades lingüísticas
se realizam num movimento cíclico que ocorre num espaço
denominado texto. Por envolverem sujeitos, a leitura e a escrita não
se separam na construção de sentidos a que o texto se propõe.
São elas, caminhando sempre juntas, que proporcionam aos sujeitos
a oportunidade de conhecer, de aprender, por meio da exploração,
da experimentação, da indagação, e de relacionar-se
com outros e com o ambiente. Na escola, elas ocorrem (ou deveriam ocorrer)
num processo de ensino e aprendizagem continuado, circunstanciado pela
negociação, num ambiente de aprendizagem em que múltiplas
situações de leitura e de escrita são percebidas
e aceitas como atividades relevantes e comprometidas para os sujeitos
do processo. Processo que procura vencer o desafio de encontrar uma correspondência,
o mais perfeita quanto possível entre o que se ensina e o que se
quer aprender. É nessa perspectiva, amparada na Lingüística
Aplicada, que este trabalho objetiva analisar, por meio do relato de experiências
vivenciadas, nas aulas de Língua Portuguesa, numa turma do 1º.
ano do Curso de Letras, a interface leitura e escrita no processo de produção
de um texto de caráter científico, no primeiro mês
letivo. Nele, instaura-se a interação entre professores
de duas disciplinas da série – Língua Portuguesa I
e Lingüística I – alunos e conteúdos interdisciplinares,
com vistas a uma produção de textos útil e sem artificialidade.
1. Leitura e escrita: sempre caminharam juntas?
Mortatti (2004), em suas incursões pela história, a fim
de marcar a abrangência definida pelos significados das palavras
alfabetização e letramento no Brasil, mostra que por um
período muito extenso a leitura e a escrita caminharam separadamente,
com aquela sempre se sobrepondo a esta, no processo ensino e aprendizagem.
Isso porque as concepções e objetivos que as envolviam,
sempre associados aos interesses dos povos dominantes, eram muito diferentes
daqueles que hoje orientam o ensino e a aprendizagem de língua
materna.
A partir de 1889, com a proclamação da República,
intensificou-se “a necessidade de se implementar o processo de escolarização
das práticas culturais da leitura e escrita, entendidas, do ponto
de vista de um projeto político liberal, como agente de ‘esclarecimento
de massas’ e como fundamentos da nova ordem política, econômica
e social desejada” (MORTATTI, 2004:55). As concepções
dessas atividades, entretanto, ainda não as colocavam lado a lado,
visto que a leitura se tratava de “uma atividade de pensamento,
cuja finalidade era comunicar-se com o ‘pensamento de outrem’
expresso pela escrita” (Idem, p.56), enquanto a escrita, no que
concerne ao ensino e aprendizagem, referia-se à caligrafia e à
ortografia que se constituíam em “especialidades acessórias”
(Idem, ibidem). Mesmo ocupando um lugar privilegiado em relação
à escrita, a leitura era uma atividade decifratória, num
primeiro estágio, indo rumo às leituras corrente, expressiva
e silenciosa, posteriormente. Não há ainda uma percepção
de sua participação intermitente na produção
textual escrita. Assim como não há a percepção
de que na escrita, ou no texto escrito, é que a leitura se instaura
como processo de interlocução entre os sujeitos e o mundo.
O processo ensino e aprendizagem da leitura e da escrita só começou
a ser pensado como processo simultâneo, a partir da década
de 60, do século XX, com a propagação das idéias,
sobretudo, de Paulo Freire; período em que, também, a concepção
de leitura começou a extrapolar os limites da mera decodificação,
apontando para as possíveis leituras de mundo. Nessa concepção,
a leitura já se evidencia como co-participante de uma prática
de escrita em que a língua também já procura o seu
espaço como prática social. Contudo, foi preciso percorrer
um caminho de muitas transformações nos campos políticos,
culturais, econômicos e educacionais, que compreendeu algumas décadas,
quatro pelo menos, e que se tivessem as experiências de três
leis de diretrizes e bases para a educação – LDB 4024,
promulgada em 1961; LDB 5692, de 1971; e a LDB 9394, de 1996, para que
se entendesse que leitura e escrita caminham juntas na produção
textual.
2. Texto: espaço a partir do qual se constroem
os sentidos
Com o advento do construtivismo, a aquisição da leitura
e da escrita passa a ocorrer simultaneamente, num processo que ainda gera
muita insegurança quanto ao seu encaminhamento, quanto ao cumprimento
dos seus objetivos de forma satisfatória. A contribuição
do interacionismo, nesse processo, vem quando acrescenta à visão
construtivista de envolvimento de sujeitos historicamente constituídos
a visão de que a leitura e a escrita tratam-se de atividades lingüísticas.
Isso significa que “quando se ensina a ler e a escrever, já
se está lendo e produzindo textos escritos” (MORTATTI, op.cit.,
p.76), num processo que depende “diretamente das ‘relações
de ensino’ que ocorrem na escola, especialmente entre professor
e alunos” (Idem, ibidem). Nesse contexto de interlocução,
surgem os textos, em especial os escritos, que passam, assim, a ser concebidos
como “configurações objetivizadas, que possuem validade
intersubjetiva. Podem ser lidos por qualquer pessoa, e não apenas
pelo autor” (VILELA e KOCH, 2001:542). Por isso mesmo, tornam-se
espaços a partir dos quais se constroem sentidos e não um
só sentido. Nesses espaços, leitura e escrita se unem a
fim de cumprirem sua função social na produção
de textos escritos. Produção esta que consolida a inserção
social do aluno cidadão.
3. Texto científico: participação
social do aluno-cidadão
O texto científico, neste contexto o paper, objetiva sintetizar
“pensamentos aplicados a um tema específico” (MEDEIROS,
2000:192), de extensão relativamente pequena, com finalidade de
publicação. Contudo, não assume a proporção
que lhe confere a sua natureza e os reais contextos de veiculação,
já que se trata de um texto produzido em sala de aula, com o objetivo
de que os seus autores se voltem para as especificidades de sua organização
semântica e estrutural. Isso se deve ao fato de que, no ensino superior,
o processo de ensino e aprendizagem de produção textual
atende também às orientações das demais disciplinas
da grade curricular, nas quais os alunos são incentivados a se
envolverem em pesquisas, ou seja, a produzirem textos escritos de cunho
monográfico, ou científico. Torna-se, pois, necessário
oferecer ao aluno situações que lhes permitam inserir-se
no contexto como cidadãos, uma vez que esse envolvimento interdisciplinar
contribui para o desenvolvimento de conteúdos específicos
da área de Língua Portuguesa e, na experiência aqui
relatada, da área de Lingüística.
Pelo seu caráter científico, o paper enfoca uma problematização,
ou seja, a eleição de um aspecto de determinado assunto
que mereça, no momento, ser explorado. A partir daí, espera-se
que, na pesquisa bibliográfica, encontrem-se informações
com as quais se construam argumentos por meio da aproximação
de textos e de discursos, ou seja, da intertextualidade. Não há
aqui a preocupação excessiva com o aprofundamento do conteúdo,
mas com a interação leitura e escrita revelada na sua organização
e na coerência com os objetivos propostos:
a) sintetizar o tema e a avaliação que o autor pesquisado
apresenta;
b) interpretar os dados com a inferência conferida pela leitura
de mundo;
c) reconhecer as fontes utilizadas.
Para isso, faz-se necessário que os sujeitos escolham o assunto,
recortem o aspecto a ser explorado - o tema, elaborem um plano, no qual
fiquem marcadas as condições de produção do
texto (para que: justificativa, problematização; por que:
objetivos; como: metodologia; quando: cronograma; sob que perspectiva
teórica: bibliografia), leiam compreensiva e interpretativamente
a bibliografia, organizem e apresentem seminários sobre o tema,
discutam, avaliem e aceitem sugestões, produzam o texto.
3.1 Organização do paper
Por tratar-se de “um documento que se baseia em uma pesquisa bibliográfica
e em descobertas pessoais” (ROTH, in MEDEIROS, op.cit.), o paper
exige, além da compilação de informações,
interpretações, avaliações, inferências
sobre elas. A sua estrutura organizacional orienta-se pelas mesmas dos
trabalhos de caráter científico, ou monográfico,
conforme Medeiros (2000:193-194):
a) Escolha de um assunto (objeto)
? delimitação do tema;
? perspectiva segundo a qual o objeto será examinado;
? estabelecimento do objetivo.
b) Levantamento bibliográfico.
c) Leitura:
? fichamento de transcrição;
? fichamento de resumo;
? fichamento de comentários.
d) Planejamento (ou pequeno projeto) de idéias.
e) Estabelecimento da tese que será defendida.
Por envolver pesquisa quase que exclusivamente bibliográfica, o
paper vale-se muito da paráfrase. Na experiência aqui enfocada,
mais especificamente da paráfrase reprodutiva.
3.1.1 A paráfrase reprodutiva: apoio da argumentação
Retomo, para este contexto, a concepção de Meserani, para
quem a paráfrase reprodutiva “é a que traduz em outras
palavras um outro texto, de modo quase literal”, uma vez que opera
“basicamente no eixo de substituições semânticas,
da sinonímia. Algumas vezes repete literalmente um trecho para,
apoiado nele, dar seqüência à mensagem derivada.”
(MESERANI, 2002:100). Considero que, na fase de aprendizagem de textos
de cunho científico em que se encontram os alunos, sujeitos desta
experiência, a paráfrase reprodutiva contribua para o aperfeiçoamento
e ampliação do repertório lingüístico.
Nesse “exercício intertextual”, eles podem ultrapassar
“os limites da simples reafirmação ou resumo do texto
original, da repetição do significado dentro do eixo sinonímico,
da simples tradução literal”. Embora reprodutivo,
este tipo de paráfrase pode permitir que o texto se desdobre e
se expanda em novos significados, indo “além da simples reiteração
reprodutiva, mesmo que sem a autonomia maior dos textos criativos não
parafrásticos” (Idem). Apesar desse apoio argumentativo,
infiro que a originalidade do texto-paráfrase esteja preservada,
principalmente porque “as modernas teorias da intertextualidade,
da leitura e da tradução (...) vêem a impossibilidade
do idêntico” (Idem, p. 109). Nesse movimento leitura e escrita,
o apoio na fala autorizada, como garantia de argumentação,
permite ao produtor do texto aproximar leituras dos outros e revelar as
suas, nem que seja pela transcrição ou pela tradução
da fala de outrem.
4. O processo: leitura e escrita = produção
textual
Inserido no Grupo de Pesquisa “Interação e escrita
no ensino e aprendizagem’ (UEM/CNPq), este artigo relata e analisa
as etapas da produção de um paper, no ensino superior. Por
isso, faz-se necessário contextualizar as condições
de produção, a fim de que se entenda o processo.
4.1 Projeto interdisciplinar
Dada a natureza tão particular do objeto de pesquisa em Lingüística
Aplicada, ou seja, “o estudo de práticas específicas
de uso da linguagem em contextos específicos” (SIGNORINI,
1998:101), foi sugerida aos alunos – sujeitos do processo, juntamente
com os professores envolvidos –, pelo professor de Lingüística
I, a leitura da obra de Bagno (1999), que versa sobre preconceitos lingüísticos.
Nas aulas daquela disciplina, o professor distribuiu os temas –
concernentes aos capítulos da obra, a cada grupo de cinco a seis
alunos. Orientou-os sobre o objetivo da leitura e, para maior comprometimento
com a sua compreensão, solicitou-lhes a produção
de um paper. Foi quando começou a ocorrer a mediação
do professor de Língua Portuguesa I, cujo enfoque da disciplina
é a produção textual. Em acordo com o professor de
Lingüística I, os alunos apresentariam a produção
do paper, processo por ele acompanhado, e orientado pelo professor de
Língua Portuguesa I. Toda essa negociação aconteceu
já no primeiro mês letivo, quando os alunos conheceram os
objetivos e ementas das disciplinas do componente curricular da série.
4.2 Na situação-problema, a compreensão
do fenômeno analisado
Aqui descrevo e analiso, numa prática interventiva interdisciplinar,
o processo de produção textual, com vistas à “resolução
dos problemas detectados” (Idem, p. 29), oferecendo condições
reais de produção textual, oriundas, conforme Mortatti,
das ‘relações de ensino’ estabelecidas na escola,
entre professores e alunos. Objetivando garantir a “ampliação
e integração de conhecimentos” (MEDEIROS, 2000:41),
os professores se envolveram, nas respectivas aulas, nas seguintes etapas:
a) definição do tema para cada equipe;
b) seleção dos textos a serem lidos;
c) leitura compreensiva – fichamento de transcrição;
d) leitura interpretativa – resumo e avaliação;
e) leitura de mundo – exemplos que comprovassem ou desmentissem
o mito analisado;
f) organização de um seminário – organizado
e apresentado nas aulas de Lingüística I;
g) produção do texto – nas aulas das duas disciplinas;
h) orientação sobre a estrutura organizacional do paper,
justificando a sua produção naquele momento, nas aulas de
Língua Portuguesa I;
i) organização do texto em paper – nas aulas de Língua
Portuguesa I;
j) leitura do paper, por ambos os professores;
i) intervenção do professor de Lingüística I,
nos aspectos do conteúdo;
j) intervenção do professor de Língua Portuguesa
I, nos aspectos textuais;
l) reconstrução do paper;
m) avaliação pelos dois professores.
Como mediadora, procurei, na condição de professora de Língua
Portuguesa, neste contexto, dentre outras responsabilidades, considerar
“os possíveis conhecimentos partilhados e não compartilhados
pelos interlocutores e as necessidades reais do grupo” (BRASIL,
1998). Uma mediação que extrapolou os limites das aulas
da disciplina, como não poderia deixar de ser, acarretou implicações
que interferiram na abordagem dos conhecimentos lingüísticos.
Por se tratar de um texto voltado para a objetividade, procurei fazer
com que os alunos:
1. respeitassem as convenções da modalidade escrita;
2. analisassem e revisassem os próprios textos em função
dos objetivos estabelecidos, da intenção comunicativa e
do leitor a que se destinavam;
3. redigissem as versões necessárias até considerarem
o texto produzido bem escrito.
5. Conclusão: os resultados obtidos
Selecionei, aleatoriamente, dentre os papers produzidos pela turma, um
para analisar. Dada a natureza deste trabalho, limitar-me-ei a apresentar
não o texto na íntegra, mas excertos, e por opção
e respeito à sua primeira versão, sem correção.
Para discuti-los, “na confluência entre abordagens teóricas
e metodológicas pertinentes para a investigação de
uma situação-problema” (MATÊNCIO, 2001:26) em
busca da “compreensão do fenômeno analisado”
(Idem, p. 27), permitida pelo viés da Lingüística Aplicada,
neste momento, oriento-me pelos pressupostos da Lingüística
Textual, visto que foco a atenção na coerência e na
coesão do texto.
Excerto 1 – introdução:
Este trabalho foi feito com base na leitura e entendimento da primeira
parte do livro Preconceito Lingüístico de Marcos Bagno, intitulada
A mitologia do preconceito lingüístico. Nesta, Bagno aponta
oito mitos a respeito da língua portuguesa usada no Brasil. O dicionário
Aurélio apresenta as seguintes definições para mito:
“1. Narrativa de significação simbólica, e
que encerra uma verdade cuja memória se perdeu no tempo. 2. Pessoa,
fato ou coisa real valorizados pela imaginação popular,
pela tradição, etc. 3. Fig. Coisa ou pessoa fictícia,
irreal; fábula”. Os mitos lingüísticos apresentados
por Bagno relacionam-se à segunda definição, visto
que passam a visão de superioridade ou inferioridade de algumas
variações da língua portuguesa. Analisamos a seguir
o sétimo mito, segundo o qual: “É preciso saber gramática
para falar e escrever bem”.
Nesse excerto do paper, está marcado o assunto
– Preconceito lingüístico, assim como estão marcadas
a delimitação do tema – É preciso saber gramática
para falar e escrever bem – e a perspectiva, ou abordagem teórica,
sob a qual será examinado o tema - segundo Marcos Bagno. Essas
marcas da superfície textual parecem ser, e realmente se revelam,
o fio condutor que confere coerência ao texto. O objetivo, inserido
nessa contextualização, ou situacionalidade, embora diluído
na busca do conceito de “mito” para expandir o tema, está
marcado na análise que o texto propõe – Analisamos
a seguir o sétimo mito segundo o qual: “É preciso
saber gramática para falar e escrever bem”, ou seja, o objetivo
é analisar o mito – resguardados aqui os níveis de
abrangência e de profundidade que o ato exige.
O levantamento bibliográfico, também dentro dos limites
que aqui assume a expressão – já que houve uma única
obra indicada e os autores buscaram o dicionário para inserirem
outras informações, consideradas importantes para os leitores
– sujeitos como eles principiantes nos estudos sobre o tema –
além de estar registrado ao final do texto, é marcado pela
transcrição e pela paráfrase reprodutiva. Paráfrase
esta que avalio como importante nas primeiras experiências com a
produção de textos de cunho científico, pois, por
meio desse “exercício intertextual”, o produtor do
texto faz inferências graças ao seu conhecimento prévio
e de mundo, insere exemplos extraídos pela aproximação
de outros textos e sai, mesmo que aos poucos, “da simples reafirmação
ou resumo do texto original” (MESERANI, 2002: 100):
Excerto 2 – desenvolvimento:
Para Bagno isso é um mito, afinal, os gramáticos nem sempre
são escritores de destaque e os bons escritores, muitas vezes,
afirmam ter pouca ou nenhuma intimidade com a gramática. O autor
cita, por exemplo, o poema Aula de Português de Carlos Drummond
de Andrade e a crônica Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim,
de Rubem Braga. Em ambos percebe-se explicitamente a crítica àquela
gramática que existe, mas não é usada pela maioria
dos falantes da língua, pois estes não têm domínio
sobre a gramática normativa, o que ocorre por diversas razões
que não serão discutidas no momento. Bagno cita ainda o
exemplo de Machado de Assis, que se espantou com sua ignorância
ao se deparar com uma gramática. Dizer que os escritores não
sabem gramática é generalização e, de certa
forma, exagero. A partir da leitura do texto O gigolô das palavras,
de Luis Fernando Veríssimo, nota-se que: apesar de Veríssimo
dizer que a gramática é dispensável e que ele não
sabe gramática, ele demonstra seus conhecimentos gramaticais quando,
por exemplo, coloca que “‘escrever claro’ não
é certo mas é claro”.
Esse excerto do desenvolvimento do texto permite perceber,
pelas marcas de uma leitura compreensiva, parafrásica reprodutiva,
que o texto desdobra-se e expande-se em novos significados, revelados
pelas inferências permitidas – o que lhe confere certa criatividade
– pelo conhecimento prévio, pelo conhecimento partilhado,
pelas leituras de mundo:
Excerto 3 – desenvolvimento:
Apresentamos, a seguir, um material de apoio, relativo à questão
abordada pelo trabalho. Selecionamos o poema Pronominais, de Oswald Andrade,
publicado em 1924 no Manifesto Pau-Brasil. E de conhecimento comum que
o renomado poeta modernista apresenta em suas obras uma visão crítica
da realidade brasileira. Pronominais analisa a verdadeira língua
falada no Brasil.
Pronominais
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.
www.secrel.com.br/Jpoesia/oswal.html//pronominais
Não é preciso estudar o poema a fundo para
notar a crítica feita a valorização da fala “gramaticalmente
correta”, na concepção daqueles que concordam com
o mito em questão. Vemos que na década de 1920 a relação
entre fala e norma gramatical já era questionada.
De acordo com o poema, a gramática “... professor e do aluno
e do mulato sabido” dita como se deve dizer: “Dê-me
um cigarro”. Contudo, “o bom negro e o bom branco da Nação
Brasileira”, ou seja, os brasileiros, dizem “me dá
um cigarro”. Grande parte da população brasileira
não aplicava e nem aplica, na linguagem oral, as normas gramaticais
que interferem no sentido do enunciado, como pronunciar o pronome oblíquo
depois do verbo. O “bom branco e o bom negro”, na maioria
das vezes, não conhecem a “gramática do professor
e do aluno”. Por isso pode-se dizer que eles não falam bem?
É evidente que não.
A tese – sempre considerando a abrangência
do seu conceito neste relato –, embora marcada por uma turbulência
provocada pelos argumentos parafraseados e o esforço engendrado
para organizá-los, perfeitamente justificável pelo conhecimento
partilhado dos alunos com o tema, fica garantida, em termos organizacionais
do texto, na sua conclusão:
Excerto 4 – conclusão:
Concluímos, portanto, que a gramática tem sua importância
para a língua e não pode ser desconsiderada. (...) A gramática
deve ser estuda sim; entretanto, é importante saber o que precisa
ser estudado quando e por quem. (...) Reforçamos que a gramática
é um instrumento de escrita e, por isso não dever ser cobrada
rigorosamente na fala.
Perceba-se que há uma ligação com
a introdução, na qual está inserido o “problema”,
ou questionamento: Os mitos lingüísticos apresentados por
Bagno relacionam-se à segunda definição, visto que
passam a visão de superioridade ou inferioridade de algumas variações
da língua portuguesa. Analisamos a seguir o sétimo mito,
segundo o qual: “É preciso saber gramática para falar
e escrever bem”. Isso aponta para o fato de que houve uma preocupação
quanto à manutenção da coerência, bem como
com a marcação da tese: Reforçamos que a gramática
é um instrumento de escrita e, por isso não dever ser cobrada
rigorosamente na fala.
Os textos, nesta primeira versão, foram entregues aos professores
das duas disciplinas que os corrigiram, dialogaram entre si e com os alunos,
intervieram, cada um no seu campo – um no conteúdo, já
que o assunto faz parte do programa de Lingüística I e outro,
professor de Língua Portuguesa I, na organização
textual do paper, construindo os sentidos em busca da textualidade.
Na segunda versão, os alunos atuaram como leitores mais críticos
dos próprios textos e procuraram, graças aos questionamentos
feitos à margem dos textos, reorganizá-los, com vistas à
clareza dos enunciados, procuraram no léxico e nos demais recursos
coesivos que lhes foram apresentados, o melhor modo de se revelarem mais
explicita e coerentemente na argumentação. Entretanto, o
foco aqui ficou na primeira versão, pois ela é que me permitiu
sentir, como leitora privilegiada, as primeiras relações
estabelecidas entre eles e o texto que leram. É com a visão
pela qual orientei o trabalho em sala de aula, a sócio-interacionista,
que também olho o texto selecionado. Por isso, vejo-o como um espaço
em que se encontram discursos dos alunos, apesar de muito timidamente
revelados por estarem fortemente amparados na fala de outrem. Contudo,
vejo-o também como o espaço onde leitura e escrita ocorrem
simultaneamente, no qual os sujeitos do processo observaram a língua
portuguesa em uso, considerando as condições de produção
no decorrer da sua construção. O paper permitiu aos seus
autores perceberem a necessidade de no texto de cunho monográfico
ou científico se estabelecer assunto, tema, objetivos, questionamentos,
para organizá-lo coesa e coerentemente. Assim, também perceberam
que, no texto, ocorre um processo de interlocução em que
leitura e escrita são atividades intercomplementares, na relação
cooperativa que estabelecem com o autor e o leitor.
Referências bibliográficas
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como se faz. São Paulo: Loyola, 1999. 2. ed.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino Fundamental. 1998.
MATÊNCIO, M. L. M. Estudo da língua falada e aula de Língua
Materna. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001.
MEDEIROS, J.B. Redação científica: a prática
de fichamentos, resumos, resenhas. São Paulo: Atlas, 2000. 4. ed.
MESERANI, S. O intertexto escolar: sobre leitura, aula e redação.
São Paulo: Cortez, 2002.
MORTATTI, M.R.L. Educação e letramento. São Paulo:
Editora Unesp, 2004.
SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. (orgs.). Lingüística Aplicada
e transdisciplinaridade. São Paulo: Mercado de Letras, 1998.
VILELA, M.; KOCH, I.V. Gramática da Língua Portuguesa. Coimbra:
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