Flávia Brocchetto Ramos - Profa. Dra. Departamento de Letras
– UCS - Programa de Pós-Graduação em Letras
- UNISC
Taciana Zanolla - Bolsista – PROBIC II FAPERGS - Universidade de
Caxias do Sul – UCS
Formar leitores competentes é um dos objetivos mais perseguidos
pela educação. Encontram-se experiências de êxito,
mas, na maioria das vezes, os professores e até mesmo pais mostram-se
frustrados com os resultados obtidos. Propomos um olhar sobre as histórias
de leitura de quinze alunos de 3ª série do ensino fundamental,
matriculados em escolas públicas de Caxias do Sul, a fim de investigar
os fatores que favorecem o desenvolvimento da competência leitora.
O estudo baseia-se em entrevistas realizadas a partir da leitura da obra
Indo não sei aonde buscar não sei o quê, de Ângela
Lago (2000), e aponta que o tema, o título, a forma de acesso e
o local de leitura, assim como o gênero, influenciam a criança
na escolha e na qualificação do livro. Além disso,
o depoimento dos alunos sugere estratégias para o desenvolvimento
de habilidades de leitura.
Introdução
A formação de leitores competentes é um dos principais
objetivos da educação escolar. Nesse sentido, trabalham
os professores, que insistem junto aos pais sobre a importância
do incentivo à leitura, sugerindo que leiam com os filhos, contem
histórias, peçam para que as crianças relatem suas
leituras, presenteiem com livros... A importância da leitura é
destacada em muitas reuniões de pais e em diversos cursos ministrados
a docentes. No entanto, geralmente, vemos pais e professores frustrados
com os resultados das estratégias empregadas. A maioria das crianças
não gosta de ler pois não entende o que lê. Essa situação,
que pode ser observada diariamente, é também apontada por
pesquisas do ENEM e do PISA. O Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Básica — SAEB —, no início
de 2004, constatou que, no Brasil, 59% dos estudantes da 4ª série
do Ensino Fundamental ainda não desenvolveram as competências
básicas de leitura. E essa situação também
ocorre no ensino superior, com alunos apresentando sérias dificuldades
de leitura de textos acadêmicos e literários.
Diante disso, propomos um estudo da história de leitura de crianças,
a fim de investigar os fatores que favorecem o desenvolvimento da competência
leitora nos leitores iniciantes. Este estudo é parte da pesquisa
A produção de sentido e a interação texto-leitor
na literatura infantil, desenvolvida na Universidade de Caxias do Sul
com o apoio da FAPERGS. O projeto estuda a leitura infantil enquanto fenômeno
construído pelo leitor a partir da sua interação
com a ilustração e com a palavra e das linguagens entre
si. O referencial teórico da investigação é
abrangente, mas, em especial, emprega-se a semiótica greimasiana
e o estatuto de literatura infantil apresentado por Regina Zilberman.
Busca-se analisar o modo como palavra e imagem se relacionam na leitura
de obras infantis e contribuem para a construção de significado.
Neste artigo, analisamos as falas de quinze crianças que cursam
a terceira série em escolas públicas de Caxias do Sul, investigando
o que motiva esses sujeitos para a leitura e o que as afasta dos livros.
Os dados são coletados através de entrevistas episódicas,
na modalidade individual, adaptada de Bauer e Gaskell (2003). A professora
titular indica os cinco melhores leitores de cada turma de terceira série
do ensino fundamental. As crianças e seus pais são informados
sobre a finalidade da entrevista e a forma como ela será conduzida.
A participação de cada aluno depende da permissão
de seus responsáveis, que preenchem, por escrito, uma ficha de
autorização.
A entrevista consiste apenas de um encontro entre entrevistadora e entrevistado.
Não há acompanhamento anterior ou posterior a ele. No primeiro
momento, a entrevistadora retoma com a criança a lógica
e a finalidade da entrevista. A seguir, questiona o aluno sobre sua história
de leitura, envolvendo aspectos como o acesso aos livros, o local e o
horário para a leitura, as concepções de livro e
literatura, os títulos lembrados, entre outros. Num segundo momento,
apresenta uma obra infantil para que a criança leia. Por fim, o
aluno fala sobre a narrativa lida, revelando os sentidos atribuídos
a personagens, conflito, tempo, espaço, enredo e desfecho, entre
outros aspectos, a partir da interação com os códigos
lingüístico e visual.
As quinze crianças cujas entrevistas constituem o corpus deste
estudo leram a obra infantil Indo não sei aonde buscar não
sei o quê, escrita e ilustrada por Ângela Lago (2000). Apresentamos
os dados sobre a história de leitura dos sujeitos entrevistados,
relacionando essas informações à competência
leitora demonstrada durante a leitura do texto proposto e ao interesse
pela leitura. Através desta análise, buscamos os fatores
que favorecem o desenvolvimento da competência leitora em crianças
das séries iniciais do ensino fundamental.
As histórias preferidas
Os dados levantados indicam que as histórias mais atraentes às
crianças são aquelas que apresentam como personagens principais
animais e aquelas em que predominam aventura e/ou mistério e os
clássicos. É interessante notar que a temática e
o repertório citados pelos leitores costumam ser semelhantes no
contexto de cada escola, mas se diferenciam entre os estabelecimentos
visitados. Foram entrevistadas crianças de quatro escolas, sendo
duas delas situadas em uma realidade urbana e as outras duas ligadas ao
espaço rural.
Na primeira escola, situada no espaço urbano, as histórias
preferidas têm animais como protagonistas. Essa tendência
é confirmada através dos títulos mencionados nas
entrevistas. O Rei Leão e O ratinho manhoso foram lembrados pelas
crianças, as quais também insistem na importância
de aprender através da leitura. Livros que tratam de temas relativos
ao meio ambiente, apresentando problemas como o lixo, a água e
a poluição, foram citados. Apenas uma menina indicou aventura
como uma temática que a atrai nos livros, citando A Branca de Neve
como uma de suas obras preferidas.
O segundo estabelecimento visitado também está ligado à
realidade urbana. Nesse contexto, observamos a busca de aventura e mistério
nas narrativas. Títulos como Talismã no Tibete e Você
tem medo de fantasma? foram apontados. As histórias de animais,
como O coelho que perdeu a unha, também aparecem, mas de forma
secundária. Surgem, entre esses entrevistados, narrativas contemporâneas,
como Vovó Delícia, de Ziraldo, e Anjinho, de Eva Furnari,
e poesia, sendo mencionado o poema “Bailarina”, de Cecília
Meireles. Os clássicos são pouco citados, e uma aluna chegou
a afirmar que não gosta de lê-los, definindo-os como “histórias
de Era uma vez”.
Nas duas escolas ligadas a realidades rurais, nota-se a predominância
de clássicos entre as histórias preferidas pelas crianças.
Os títulos citados foram Pinóquio, A Bela e a Fera, Peter
Pan, Cinderela e Chapeuzinho Vermelho, notando-se também o fato
de essas crianças mencionarem muitas obras nas suas entrevistas,
o que não ocorreu nas outras escolas.
As crianças também apreciam a leitura de gibis, com destaque
para as histórias da Mônica. Mickey e Donald são citados
como personagens, não sendo identificado se o suporte é
livro de literatura ou gibi. Essas ocorrências são esparsas
em todas as escolas, sem predominância do gênero em um ou
outro estabelecimento.
As diferenças observadas em relação à temática
nos diferentes contextos a que pertenciam os entrevistados podem estar
ligadas à realidade sociocultural dos alunos e também à
abordagem dada à literatura pelos professores. Para explicar melhor
essa constatação, seriam necessários estudos aprofundados
sobre a realidade sócio-econômica e cultural dos sujeitos,
o que extrapola os objetivos de nossa investigação. No entanto,
esses dados parecem indicar que os títulos e temáticas privilegiados
em sala de aula, assim como o conjunto de obras oferecido pela biblioteca,
influenciam as escolhas e gostos dos alunos em relação à
leitura, fato que comprova o papel dos mediadores de leitura (pais, familiares,
professores, amigos) na relação da criança com os
livros.
Podemos observar também uma característica comum entre as
obras: a maioria foi adaptada para o cinema. Uma das crianças chegou
a citar Harry Potter como um livro que lhe interessa, embora não
o tenha lido. A divulgação de uma obra através dos
meios de comunicação parece aproximá-la do leitor,
seja porque as editoras lançam livros de acordo com as tendências
do cinema e da televisão, seja porque os próprios leitores
procuram textos que foram adaptados para outras linguagens. O processo
de transposição da literatura para filme, por exemplo, transforma
a linguagem semi-simbólica do livro para outro meio com que o leitor
tem mais afinidade. Esse meio multimídia reúne imagem, som
e movimento, chegando de forma mais rápida e simples ao destinatário.
A preferência pelo enredo fácil em que os elementos de uma
cena de filme são dados implica pouco esforço de quem interage
com o visto. A apropriação, por parte do leitor, de um texto
híbrido visual ou apenas verbal ocorre de forma diferenciada, e
o espaço de experiência de leitura também é
específico. Tal fato é considerado um empecilho e mesmo
prejudicial ao desenvolvimento infantil por muitos professores, principalmente
na questão do gosto pela leitura. Isso demonstra que o universo
da televisão, do cinema, dos videogames ainda não é
assunto da atenção docente, nem de leitura consciente, apesar
de predominar no universo da produção cultural contemporânea.
No entanto, as entrevistas realizadas com as crianças mostram que
os meios visuais atuam como mediadores de leitura, ao contrário
do que pensam os familiares e até mesmo a escola. A pesquisa mostra
que, através desses meios, o leitor se interessa pela literatura.
Se essa influência for aproveitada na escola, em lugar de combatida,
pode se tornar um grande estímulo à leitura entre as crianças.
Ao valorizar a literatura que atrai seus alunos, o professor estimula-os
a ler e descobrir na leitura um prazer. Conquistados os leitores, pode
propor outros textos, ampliando seus horizontes de expectativas e desenvolvendo
sua competência leitora.
A apresentação da obra e o papel da imagem
Além do tema, a ilustração é um atrativo considerado
pelos entrevistados como um aspecto muito importante em um livro, influenciando
a escolha e a leitura. Em suas falas, afirmam que as imagens devem ser
bem coloridas e precisam ser abundantes. Desta forma, o primeiro contato
com a imagem do livro infantil ocorre no momento da escolha e é
decisivo para a seleção de uma obra. Nas entrevistas, observou-se
que a criança é atraída especialmente pela visualidade,
sendo as cores e formas aspectos essenciais para a compreensão
do texto, conforme referências de Parsons (1992) sobre os estágios
de compreensão estética. Este autor demonstra que o primeiro
estímulo situa-se na ativação da sensibilidade ao
mundo colorido que se apresenta. Assim, para o iniciante, o processo de
leitura, como um ato solitário, tem como principal fator de atração
o campo visual e estético. A leitura centrada na visualidade significa
que as crianças ainda não conseguem interagir com a linguagem
verbal, talvez porque a escola ainda não as instrumentalizou para
a leitura de tal tipo de texto.
De acordo com os entrevistados, as imagens também são importantes
no momento da leitura. Seu papel seria confirmar, repetir o que é
dito pela palavra. Assim, as ilustrações constituem um apoio
para a leitura dos iniciantes, pois possibilitam que apreenda o que não
consegue compreender pela palavra, além de oferecer-lhe segurança,
uma vez que pode confirmar o que está escrito. Desta forma, a imagem
preenche lacunas em relação ao vocabulário e ao conhecimento
de mundo dos leitores iniciantes, possibilitando uma leitura mais fluente
e prazerosa. Essa função da ilustração não
é referida somente pelas opiniões dos entrevistados. Quando
questionados sobre suas memórias de leitura, recordam imagens dos
livros, falando sobre os cenários e a caracterização
de personagens.
É interessante notar que todas as crianças entrevistadas
citam a presença da imagem e do colorido como uma qualidade dos
livros, mas, quando questionadas sobre a importância da ilustração
na obra, a maioria afirma que ela poderia ser dispensada, dando a entender
que o sentido é veiculado somente pela linguagem verbal. Essa contradição
no discurso dos entrevistados indica que, embora o código visual
seja importante para a efetivação da leitura por eles, não
admitem sua funcionalidade por ser desprestigiado por pais e professores.
Além disso, tendem a relegar à imagem um papel secundário
no momento da leitura, recorrendo a ela somente quando o código
lingüístico é insuficiente para a compreensão
do texto. Assim, perdem-se possibilidades de significação
veiculadas pela visualidade, que ultrapassam a mera repetição
do verbal. Conforme Camargo (1995), a ilustração pode descrever,
narrar, pontuar, simbolizar, persuadir e normatizar o texto, chegando
a extrapolar os sentidos produzidos pela palavra.
Essa concepção de imagem como decoração e
de palavra enquanto portadora-mor do sentido fica clara também
na abordagem das narrativas visuais. A maioria dos entrevistados não
tem contato com esse tipo de texto. As crianças que leram obras
do gênero afirmam gostar, mas as consideram próprias para
a pré-escola e a 1ª série, níveis em que os
alunos ainda não dominam o código lingüístico.
Segundo os entrevistados, não são livros para ler, mas para
imaginar. Um deles inclusive possuía um exemplar de narrativa visual,
mas doou-o à escola, pois já aprendeu a ler a palavra e
agora lê livros em que estejam presentes as duas linguagens. De
acordo com essas falas, a leitura da imagem é um nível que
foi superado pela leitura do verbal. Apenas uma criança disse que
considera difícil entender narrativas visuais. Esses fatos evidenciam
a abordagem equivocada do universo visual feita na escola, atribuindo
à ilustração papel meramente decorativo e ignorando
um aspecto importantíssimo na relação da criança
com o livro: a presença da imagem, do colorido. Apesar disso, os
entrevistados comentam sobre as figuras, o tamanho, o tipo da letra, a
capa e o formato dos livros de que mais gostaram, confirmando a importância
da visualidade na apresentação da obra e na interação
com o leitor.
Outro critério observado na seleção do livro é
a extensão do texto verbal, justificado da seguinte maneira por
uma das entrevistadas: “[...]Quando eu era mais pequena, eu pegava
os livros menores, daí conforme eu vou crescendo, eu vou pegando
os livros maiores”. As crianças demonstraram preocupação
com o formato e o tamanho do livro. A obra não pode ser muito extensa,
considerada “leitura de grande”, mas também não
deve ser muito curta, o que desprestigia o leitor. Afirmam que gostam
de livros que tenham “bastante figura e bastante coisa para ler”.
Elas se orgulham ao dizer que leram partes dos livros das avós,
sem ilustrações e com muitas palavras, e se apressam em
explicar que as narrativas visuais são obras adequadas para as
crianças menores.
O acesso ao livro e a hora da leitura na escola
Para a maioria dos entrevistados, o acesso ao livro ocorre principalmente
por meio da biblioteca da escola. Os momentos para a literatura na escola
ocorrem geralmente na biblioteca, durante o período destinado à
troca de livros. A leitura na sala de aula acontece quando as crianças
terminam as tarefas e “não têm nada pra fazer”.
Todos esses momentos envolvem uma leitura solitária, que pode se
tornar bastante difícil para os alunos com dificuldades na compreensão
do texto. Uma das alunas, ao fazer a apreciação da obra
lida durante a entrevista, afirmou que, por ter feito uma leitura rápida
do texto, não conseguira compreender a totalidade, mas havia gostado
das partes que entendeu. Desta forma, evidencia-se que o prazer proporcionado
pela compreensão do texto, pelo sentir-se capaz é um fator
fundamental para que as crianças gostem de ler. Uma forma de incentivar
o gosto pela leitura seria, então, instrumentalizar os alunos para
que possam compreender o que lêem. Essa operacionalização
cabe, principalmente, na escola, através da atuação
do professor como mediador de leitura.
No entanto, apenas três entrevistados citaram momentos de contação
de histórias em sala de aula, sendo que uma lembrava da leitura
de obras pela professora da pré-escola. Outra criança afirmou
que ouve histórias de boas autoras, mas não citou títulos
nem autorias. O terceiro entrevistado mencionou a leitura de histórias
pela professora. Esses dados sinalizam que a interação com
o texto, mediada pelo professor, não é uma prática
freqüente em nossas escolas. À leitura é destinado
um espaço secundário entre as atividades escolares: os alunos
lêem sozinhos, após concluírem suas tarefas. Não
há momentos para aprender a ler, processo que vai muito além
da decodificação da palavra. Durante a leitura, é
preciso estabelecer relações, inferir, elaborar hipóteses,
buscar informações que as comprovem ou as rejeitem... O
papel do professor, enquanto ponte entre o sujeito e o objeto lido, seria
apresentar bons textos a seus alunos e mostrar possibilidades de significação,
provocando-os para que observem e atribuam significado aos aspectos do
texto.
Desta forma, nota-se uma contradição na postura da escola,
pois, ao mesmo tempo em que deseja crianças leitoras, a ação
correspondente é feita apenas através da entrega de livros
para que elas leiam sozinhas e/ou em casa. Essa constatação
sinaliza incoerência entre os objetivos que se almeja e as estratégias
utilizadas para alcançá-los. Como esperar que os alunos
destinem um espaço em sua vida para a leitura, literária
ou não, se, na escola, não lhe é atribuída
essa importância? Ou, o que é ainda mais preocupante, sem
uma ação docente qualificada que lhes ofereça condições
para que a leitura se efetive?
O lugar da leitura... em casa
Ao analisarmos a forma de acesso aos livros, constatamos que o repertório
de leitura da maioria dos entrevistados constitui-se, quase que totalmente,
pelos exemplares emprestados na biblioteca escolar. Assim, constatamos
a ausência da família no processo de formação
do leitor. No entanto, encontramos também uma minoria de pais e
familiares que são grandes responsáveis pela motivação
da leitura entre as crianças, embora geralmente não possuam
conhecimentos aprofundados sobre leitura e literatura infantil. Alguns
alunos entrevistados afirmaram ter livros em casa, por recebê-los
dos pais, irmãos, padrinhos, tios ou amigos da família.
Há relatos interessantes das crianças, como a menina que
ganha obras da mãe e vai ler também na casa dos tios, onde
encontra “um monte de livros”. Na fala dos entrevistados,
percebemos que muitos pais e familiares não apenas compram os livros
ou os dão de presente, mas também contam histórias,
emprestam textos às crianças, escolhem livros com elas,
reservam um espaço especial para a leitura na casa, colocando o
sofá para ler... Além disso, são os responsáveis
por acompanhar a leitura das obras que os alunos trazem da biblioteca
escolar. As crianças que relatam essas experiências em sua
história de leitura são as que afirmam ler mais e gostar
de ler. Elas têm um repertório maior de leituras e leram
com competência o texto apresentado durante a entrevista, Indo não
sei aonde buscar não sei o quê.
Por outro lado, embora o critério de seleção para
as entrevistas fosse a escolha dos melhores leitores de cada classe, alguns
entrevistados afirmaram que não gostam muito de ler. Na história
de leitura dessas crianças, encontramos alguns possíveis
motivos. Um menino relatou que sempre lê quando sua prima está
em casa, pois “a mãe quer que ela veja como que eu leio pra
ver se eu tô lendo”. A mãe, que não pode acompanhar
as leituras do filho porque trabalha, deixa para a prima a responsabilidade
de fiscalizar a leitura do menino.
Outra criança, ao ser questionada sobre a audição
de narrativas, contadas pela mãe, disse que era o pai quem contava
histórias quando ela era menor, pois a mãe não gosta
de ler. A entrevistadora, então, perguntou se o pai gosta de ler,
ao que a menina respondeu: “Ele não gosta muito, mas ele
lia quando a gente era pequeno” .
Nos dois relatos analisados, estão implícitas idéias
sobre leitura que se fizeram presentes em outras falas dos entrevistados
e justificam o distanciamento existente entre as crianças e os
livros. No primeiro caso, a leitura é apresentada para o menino
como uma obrigação, um “dever de casa” cujo
cumprimento dever ser fiscalizado, deixando-se de lado as características
essenciais da literatura, que despertam o gosto pela leitura de obras.
É difícil encontrar prazer em uma atividade que é
cobrada dessa forma. Na história da menina, nota-se que ela segue
o exemplo dos pais, os quais não são leitores; ou seja,
assim como o pai, ela não gosta de ler, mas o faz, eventualmente.
Quando questionados sobre o local de leitura, todos os entrevistados citaram
áreas da casa, especialmente o quarto e a sala, aparecendo também
a cozinha. As crianças lêem em diferentes momentos do dia,
sem predominância de turno ou horário. Afirmaram ler “quando
não tem nada pra fazer, quando tem alguma coisa que eu não
gosto na tv”, ressaltando a preferência pela televisão,
a qual atribui ao espectador um papel passivo, ao contrário da
literatura. Poucos entrevistados afirmaram ler também antes de
dormir, o que já constituiria um hábito. Por essas falas,
percebe-se que a leitura é vista como uma experiência subjetiva,
íntima e pessoal, já que as crianças geralmente procuram
ambientes silenciosos e calmos. No entanto, o tempo destinado a ela é
o que sobra, quando não há outras coisas a fazer. Se, no
discurso, a leitura é considerada uma atividade importantíssima,
por coerência, deveria ter assegurado um espaço especial.
Assim, o incentivo e acompanhamento dos pais levam algumas crianças
a ler e a gostar de ler, enquanto a omissão colabora para que elas
permaneçam longe dos livros. Apenas comprar obras não garante
que os filhos descobrirão o prazer da leitura; é preciso
incentivá-las lendo, contanto histórias... Da mesma forma,
não adianta aconselhar o filho a ler se essa não é
uma prática habitual ou, pior ainda, se afirmam não gostar
de livros. Não se trata de cobrar dos responsáveis pelas
crianças conhecimentos aprofundados sobre leitura e literatura,
mas de levantar procedimentos que auxiliem ou não as crianças
a descobrirem a riqueza dos livros. Sabemos que as concepções
dos adultos sobre o contanto com obras/textos dificilmente serão
modificadas. Assim, mediar o processo a leitura, apresentando textos às
crianças e instrumentalizando-as para a construção
de significados, é papel da escola. No entanto, é extremamente
preocupante constatar que os melhores leitores assim o são porque
receberam da família o acompanhamento e o incentivo. Nas falas
dos entrevistados, não foram mencionadas experiências de
mediação de leitura em sala de aula. Assim, as crianças
que recebem motivação em casa ou têm mais facilidade
podem interagir com os textos e têm grandes chances de se tornarem
leitores, enquanto aquelas que têm dificuldade e não contam
com o apoio da família afastam-se dos livros. É importante
lembrar que o desenvolvimento da competência leitora não
ocorre espontaneamente, como parece crer a comunidade escolar, e há
diversos estudos na área educacional que comprovam a necessidade
da mediação docente para o aprendizado da leitura enquanto
construção de sentidos.
Ler... para quê?
Os entrevistados, de um modo geral, manifestaram uma preocupação
em ler para aprender. As crianças afirmaram que a leitura da obra
deve ensinar, seja a ler melhor, a respeitar a natureza ou a aprofundar
conhecimentos sobre um determinado assunto ligado a conceitos que são
abordados na escola ou sobre o qual têm curiosidade. Esse dado sinaliza
que as crianças assumem a postura do adulto, sejam professores
ou pais, os quais demonstram desconhecimento da natureza da leitura e
da literatura. A leitura de textos informativos e científicos objetiva,
primeiramente, a obtenção de conhecimento e informações,
mas a do texto artístico, entendido aqui como o literário,
envolve em primeiro lugar o conceito de verossímel, ou seja, apresenta
o possível não o verdadeiro. Se o que mostra é uma
possibilidade e não uma verdade, o papel do leitor é outro,
não basta seguir pistas, mas se colocar no esquema proposto e atribuir-lhe
sentido. Parte da significação está, pois, no leitor,
o que implica os diversos sentidos construídos a partir da leitura
de um texto. Afinal, a literatura é polissêmica e o papel
do leitor é inserir-se no jogo de linguagem.
Como esperar que a criança entre nessa brincadeira com palavras
se não conhece suas regras? Não há jogo sem normas.
O mesmo ocorre com a leitura. É preciso ler da esquerda para a
direita, por exemplo, unindo as letras para formar palavras, depois as
palavras para formar frases, e as frases para formar parágrafos...
Os signos precisam ser relacionados aos conceitos que representam e os
conceitos precisam ser relacionados entre si para constituir a significação.
Se há mais de uma linguagem no mesmo texto, como palavra e imagem,
o processo precisa ser feito com os dois códigos e também
entre eles. Como esperar que o leitor iniciante aprenda tudo isso... sozinho?
O estudo das histórias de leitura aponta temas e gêneros
de textos que atraem a criança. Também mostra a importância
da visualidade, que envolve desde a ilustração até
o projeto gráfico, na interação que ela estabelece
com a obra. Desta forma, encontram-se critérios utilizados pelos
leitores iniciantes para a seleção de livros, o que pode
ser de grande utilidade para professores e pais na hora de escolher uma
obra que se pretende apresentar à criança. No entanto, o
dado mais significativo (e preocupante) indicado por esta investigação
parece ter sido a falta de estratégias para o desenvolvimento das
habilidades de leitura na escola. Embora a educação escolar
espere da família apoio à aprendizagem dos alunos, é
seu papel instrumentalizá-los para a interação com
diferentes tipos de texto. Encontramos crianças fascinadas pelo
mundo dos livros porque a família cumpriu, a seu modo, esse papel.
E a escola? Acreditamos que seu papel seja superar o improviso e criar
estratégias de qualificação da experiência
de aprendizagem.
Referências bibliográficas
BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa
com texto, imagem e som: um manual prático.
2.ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
CAMARGO, Luís. Ilustração no livro infantil. Belo
Horizonte: Lê, 1995.
LAGO, Ângela. Indo não sei aonde buscar não sei o
quê. Belo Horizonte: RHJ, 2000.
PARSONS, Michael. Compreender a arte: uma abordagem à experiência
estética do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo. Lisboa:
Presença, 1992.
ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil na escola. São Paulo: Global,
1984.