HOMENAGENS DO 17º COLE

Quem gosta de ler e ouvir poesia em versos ou prosa, quem gosta de livros, de viver dentro das bibliotecas, como muitos que estão aqui, sabem avaliar o que significa para mim ter ao meu lado: Affonso Romano Sant`Anna, Bartolomeu Campos Queirós, os familiares de Elias José e de Haquira Osakabe. Ter ao meu lado escritores, com os quais convivemos grande parte de nossas vidas, através de seus livros; com os quais apreciamos suas palavras, pensamos e andamos com elas pela casa, pelas salas, corredores, dormimos e levantamos com elas. Desses intelectuais, ganhamos, e por isso a nossa gratidão, um modo de ver e pensar o mundo, inusitado, singular e poético. 

Desde o 13º COLE, em 2001, essa sessão denominada “Homenagens” faz parte do evento. Foi idealizada como forma de reconhecimento a profissionais que atuam no mundo da leitura e do livro, no campo da recepção, da produção, do debate, e que de certo modo são pessoas que também estiveram conosco em vários COLEs: quer na organização e realização desse evento, quer proferindo palestras, ou autografando livros etc. Nela, nessa sessão, já foram homenageados: Lilian Lopes Martin da Silva, Hilário Fracalanza, Ezequiel Theodoro da Silva, esses reconhecidos pela sua atuação diretamente ligada às ações promovidas pela ALB durante esses 30 anos.

A partir do 16º, essa sessão ganhou um novo formato. Oferece três tipos de premiações: “Grandes homenagens”; “Presidência de Honra”, “Menção Honrosa” e um troféu especial da Associação de Leitura do Brasil.  

Nosso homenageado no último COLE foi José Midlim, pelo seu belíssimo gesto de ir em busca de livros e depois deixá-los à disposição de qualquer leitor que queira consultá-los, manuseá-los em sua biblioteca particular. Para este bibliófilo foi encomendado o troféu ao artesão Antonio Souza.

Nesta edição, do 17ªº COLE, coube a Afrânio Montemurro, artista plástico e ceramista campineiro, a criação do troféu ALB, especialmente para os nossos homenageados. 
E para nós, foi gratificante ter uma obra modelada em formas, cores com sementes, por Afranio Montemurro, que segundo suas palavras: trata-se de um modo de aproximar simbolicamente do trabalho de semear leitura e conhecimentos que é próprio dos homenageados. Dentro de cada semente, coloquei algumas bolas-de-gude que, quando movimentadas, produzem sonoridade. Além disso, cada bolinha, com sua transparência, luminosidade e cor mimetiza os embriões necessários ao processo criativo.  

Assim, em nome da Associação de Leitura do Brasil e da Comissão Organizadora do 17º COLE, abro as atividades desta mesa de homenagens, a esses quatro intelectuais: Affonso Romano Sant`Anna, Bartolomeu Campos Queirós, Elias José e Haquira Osakabe (in memorium). 

Para compor essa homenagem farão parte também desta mesa: Jason Murillo Prado; Rosane Villela, Vânia Maria Rezende e Maria Laura Mayring Sabinson que farão as saudações e que estão ligados às obras desses queridos homenageados. E ainda, Affonso Romano Sant´Anna, Bartolomeu Campos Queirós Silvia José (esposa de Elias José) e Teresinha Tisu Shumaker (irmã de Haquira Osakabe).  

Campinas, 20 de julho de 2009.

Coordenadora da Mesa: Norma Sandra de Almeida Ferreira
Presidente da Associação de Leitura do Brasil – biênio 2009-2

 

TROFEU DO 17º COLE

O 17. COLE homenageará, além de Manuel de Barros, poeta matogrossense, cujos versos compõem o tema desta edição do evento, quatro intelectuais que, por diferentes ocupações profissionais, se aproximam e estão afetivamente envolvidos com a questão da leitura e da trajetória da ALB nesses 30 anos. Para eles, ou seus representantes, será entregue o Troféu ALB, criado pela diretoria anterior. Neste Cole, o artista plástico e ceramista campineiro, Afrânio Montemurro, criou e executou peças em cerâmica, inspiradas no projeto sementes.

As sementes sempre fizeram parte de meu processo de criação. Ao tentar interpretá-las, optei por modelá-las à minha maneira, o que resultou em um trabalho interessante e intrigante. Ao buscar formas coerentes, fui ao longo do tempo aprimorando a modelagem e acrescentando elementos e cores. 
Para o 17o. Congresso de Leitura do Brasil – COLE – 20 a 24 de julho de 2009–, criei peças para quatro homenageados: Affonso Romano de Sant’Anna, Bartolomeu Campos Queirós, Elias José (in memorian) e Haquira Osakabe (in memorian).
Escolhi a forma-semente pela simbologia relativa ao trabalho de semear leitura e conhecimento. Dentro de cada semente, coloquei algumas bolas-de-gude que, quando movimentadas, produzem sonoridade. Além disso, cada bolinha, com sua transparência, luminosidade e cor mimetiza os embriões necessários ao processo criativo.” (Afrânio Montemurro – julho-2009)

Sobre o autor das peças
Nasceu em Campinas/SP, em 1943. É artista plástico e ceramista. Foi aluno de Bernardo Caro e das ceramistas Heloísa Alvim e Eva Ilg. Desde 1972, tem participado de mostras coletivas e individuais por todo o país. Expõe em salões oficiais de arte contemporânea em várias cidades. Recebeu o prêmio estímulo, da Prefeitura de Campinas, em 1996, com o projeto sementes. Atualmente, ministra cursos de cerâmica e criatividade em artes plásticas.

 

Nossos homenageados em 2009

Haquira Osakabe

Haquira ingressou na Unicamp em 1969 como auxiliar de ensino. Estava no IEL desde a sua fundação, e sua carreira de intelectual está indissoluvelmente ligada à história do Insituto, da qual constitui um dos capítulos mais memoráveis. Aposentado desde 1997, quando se credenciou como professor colaborador no departamento e no Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária, manteve até sua morte diversas atividades de orientação e de pesquisa em sua área de atuação.
Osakabe tinha graduação em Letras Vernáculas pela Universidade de São Paulo (1969), mestrado em Lingüística pela Universidade de Besancon (1971), doutorado em Lingüística pela Unicamp (1976) e pós-doutorado pela Universidade de Franche Comté (1982), pós-doutorado pela Universidade de Lisboa (1986) e pós-doutorado pela Universidade Nova de Lisboa (1999).Saiba mais.

Elias José

Elias José nasceu em Santa Cruz da Prata, distrito do município de Guaranésia, Minas Gerais, em 25 de agosto de 1936. Viveu em Guaxupé/MG com sua esposa Silvinha e seus três filhos: Iara, Lívia e Érico. Além de escritor, Elias José foi professor de Literatura Brasileira e de Teoria da Literatura na Faculdade de Filosofia de Guaxupé (FAFIG), tendo atuado também como vice-diretor, diretor e coordenador do Departamento de Letras e como professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira na Escola Estadual Dr. Benedito Leite Ribeiro. 
Saiba mais.

 

 

Bartolomeu Campos Queirós

Bartolomeu Campos de Queirós nasceu na cidade de Papagaio, no interior de Minas Gerais. Peregrino de corpo e mais ainda de alma, viajou o mundo e hoje vive em Belo Horizonte. Melhor dizendo, ele mora na capital mineira porque vive a voar para longe de tudo o que possa ser contido, limitado, rotulado – talvez por terem sido as paredes da casa de seu avô o seu primeiro caderno. Enfrentar os limites de um papel pode ter sido difícil, mas resultou no premiado* escritor que sabe embrulhar para presente os mais belos, sutis e indizíveis sentimentos humanos com a paciência feliz de quem ama a musicalidade das palavras que não podem ser buscadas; apenas podem ser encontradas por gente sábia e rara como Bartolomeu Campos de Queirós. Saiba mais.

 

Affonso Romano Sant'Anna

Artista e intelectual que une a palavra à ação. Com uma produção diversificada e consistente, Affonso Romano de SantAnna pensa o Brasil e a cultura do seu tempo, e se destaca como teórico, como poeta, como cronista, como professor, como administrador cultural e como jornalista.
Com mais de 40 livros publicados, professor em diversas universidades brasileiras, no exterior lecionou nas universidades dos Estados Unidos, França e Alemanha. Nascido em Belo Horizonte (1937), desde os anos 60 teve participação ativa nos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria linguagem e trajetória. SantAnna formou-se bacharel em Letras Neolatinas na Faculdade de Filosofia da UFMG e doutorou-se na mesma universidade em Literatura Brasileira, com tese sobre Carlos Drummond de Andrade. Em sua vasta bibliografia encontramos O intervalo amoroso (antologia L&PM); Textamentos (Rocco); Vestígios (Rocco) e A cegueira e o saber (Rocco). Saiba mais.

 

Homenagem a Elias José

Rosane Villela*

Boa tarde. Primeiro, quero parabenizar ao COLE pelos 30 anos de sua bela história. Segundo, quero agradecer o convite a minha participação nessa mesa redonda de homenagens. Sinto-me muito feliz e muito grata por estar aqui representando o COLE para falar sobre o Elias José, um escritor cuja trajetória se mescla aos objetivos e anseios desse evento.   

Não conheci o Elias José pessoalmente. Infelizmente. Mas troquei com ele algumas mensagens por internet (bendita seja ela!), por lhe ter enviado uma resenha que eu tinha escrito sobre o seu livro Ao Pé das Fogueiras Acesas, publicado pela Editora Paulinas. Faço parte de um grupo de discussão de literatura Infantil e Juvenil chamado Letra Falante que, na época, estava trabalhando com a temática indígena, e coube a mim a obra Ao Pé das Fogueiras Acesas.

Dias depois do envio da resenha, recebi o seu retorno carinhoso e generoso sobre o meu trabalho e seu pedido para a publicação do mesmo. Fiquei sensibilizada, lógico, por ele ter gostado, mas principalmente, do fundo de meu coração, feliz por ter podido, através dessa resenha, lhe dar a alegria de compartilhar o encantamento que sua obra havia me despertado e que, com toda a certeza, despertaria em qualquer leitor. Qual escritor não almeja isso? 

Pena que nosso contato foi muito curto, pela perda repentina de sua presença entre nós. Com certeza, seria uma boa amizade, como tantas outras que pude vivenciar através da troca de mensagens carinhosas que entraram em meu e-mail, quando da comunicação de seu falecimento pelo Érico, filho de Elias José.  Foram depoimentos que falavam não somente do autor, mas do homem que ele havia sido e, por isso, apesar de não tê-lo conhecido, senti-me como parte daquela família tão grande que o abraçava. 

Graças ao Ezequiel Theodore, sócio fundador e presidente de honra da Associação de Leitura do Brasil - ALB, a história da minha resenha não ficou esquecida. Ela foi publicada — como desejava o Elias José —, na revista virtual LINHA MESTRA, da ALB. Creio, aliás, que por conta disso, estou aqui e muito agradeço. Elias, mesmo não estando entre nós, me possibilitou esse contato. Uma história que rendeu outras. Quantas mais haverá por aí que não sabemos? Elias se fez presente em todos os sentidos e, com certeza, muitas histórias ainda serão desvendadas para celebrar a sua vida.

Também, podemos imaginá-lo (como, com certeza, ele gostaria) por meio das histórias de seus livros, e de sua bibliografia, da qual me aproprio agora para que o conheçam melhor.

Elias José nasceu em Santa Cruz da Prata, distrito do município de Guaranésia, Minas Gerais, em 25 de agosto de 1936. Viveu em Guaxupé, Minas Gerais, com sua esposa Silvinha e seus três filhos: Iara, Lívia e Érico.

Além de escritor, Elias José foi professor de Literatura Brasileira e de Teoria da Literatura na Faculdade de Filosofia de Guaxupé, tendo atuado também como vice-diretor, diretor e coordenador do Departamento de Letras e como professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira na Escola Estadual Dr. Benedito Leite Ribeiro.

Começou a publicar em 1970, quando a Imprensa Oficial de Minas Gerais lançou A Mal-Amada, uma surpreendente coleção de minicontos, com o apoio de Murilo Rubião, que reunia contos publicados em suplementes literários do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Portugal. Antes disso, já tinha conquistado o segundo lugar no Concurso José Lins do Rego da Livraria José Olympio Editora, em 1968. Depois, publicou O Tempo, Camila e o Inquieta Viagem ao Fundo do Poço, que ganhou o Jabuti da Câmara Brasileira do Livro como Melhor Livro de Contos e, ainda, o prêmio Governador do Distrito Federal como Melhor Livro de Ficção de 1974.

Elias José tem contos e poemas traduzidos e publicados em revistas literárias e antologias de autores brasileiros no México, Argentina, Estados Unidos, Itália, Polônia, Nicarágua e Canadá. Foi, por várias vezes, selecionado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil para representar o Brasil em feiras de livros internacionais. 

Faleceu aos 72 anos, vítima de complicações de uma pneumonia, enquanto curtia férias com a família em Guarujá, no litoral paulista, no dia 02 de agosto de 2008.

Essa referência bibliográfica se encontra, hoje, no Instituto Cultural Elias José (ICEJ), fundado em 2008, por iniciativa de Silvia Monteiro Elias, viúva do escritor. Trata-se de uma entidade de cunho literário, cultural e artístico, com sede em Guaxupé, Minas Gerais, que conta com pessoas que fazem parte do chamado “Amigos do ICEJ”, e que tem como objetivo a divulgação da literatura infantil, com o intuito de manter viva a obra de Elias José.

Recentemente qualificado como entidade filantrópica, em 27 de maio de 2009, o Instituto Cultural Elias José faz o que o autor fez em sua vida inteira: leva o gosto pela leitura através da interação do livro com a criança, propiciando encontros com escolas e instituições através das contações de histórias, poesias rimadas e apresentações teatrais. Tem também, em sua sede, um sebo em funcionamento — com a ajuda de doações de livros feitas por pessoas da comunidade local —; uma Biblioteca Infanto-Juvenil com mais de 1.000 livros no acervo, aberta ao público de segunda à sexta-feira; e, com o seu Projeto Caixa Mágica de Surpresa — que consta de livros transportados em caixas confeccionadas com ilustrações do livro publicado pela Editora Paulus, Caixa Mágica de Surpresa, — leva os livros até as crianças que não tem tanto acesso a essa forma de prazer.

Um belo projeto que, metaforicamente, ilustra todo o trabalho de Elias José. Traz a fantasia embrulhada numa caixa de papelão, como quando ele a trazia em seus livros. Pois, para Elias José, a fantasia é tudo. No livro Pequeno Dicionário Poético-humorístico Ilustrado, da Editora Paulinas, em seu poema Imaginário, ele diz:

Se só pisássemos em terra firme,
sem luzes, sem cores, sem asas na cabeça,
sem sonhos, sem fantasias, sem infância,
sem artes e artistas e crianças,
como seríamos pobremente infelizes!...

É o IMAGINÁRIO
que abre as portas do sonho,
da fantasia, do faz-de-conta,
com ou sem a palavra abracadabra.

O livro, para Elias José, é mágico, pois, segundo ele, “mágico é uma palavra que mora nos caminhos da infância”. E, da sua infância, mágicas eram as contações de histórias cheias de crenças e de medos por parte dos colonos da fazenda de seu pai. Mágicas também as histórias que ouvia pelo rádio e por parte de sua avó paterna libanesa, a dona Joana. Essa, apesar de nunca ter sido alfabetizada nem em sua terra nem aqui no Brasil, sabia encantar. Ele afirmava, “(...) como sabia encantar. Contava com gestos e caras, a modulação da voz segundo a ação ou os personagens. Aquelas histórias faziam a gente voar até o Líbano, nosso paraíso preferido.”

Elias José teve uma infância privilegiada com relação à afetividade e ao estímulo do imaginário. E dizia que se ele tinha virado escritor, se criava histórias e poesias, era porque tinha tido o seu imaginário infantil muito, mas muito bem alimentado. 

Em seu livro Literatura Infantil: ler, contar e encantar crianças, da Editora Mediação, ano 2007, ele não somente chama a atenção para a importância de como despertar esse alimento do imaginário através dos diferentes meios de comunicação, como também fala do que falta para que esse alimento se processe da melhor maneira possível:

“(...) O jornal, a revista e o livro contam histórias. O rádio, a TV e a internet contam histórias. As letras de música contam histórias, quase sempre de amor. Num quadro de pintura sem se perceber uma narrativa, com pessoas, tempo e espaço, há uma história feita de imagens, sem palavras. Os discos, filmes e peças de teatro contam histórias. Os quadrinhos e as propagandas contam histórias. Há belos livros, feitos só de narrativas através de imagens. O que nos falta, que parece estar voltando nas melhores escolas, mas que ainda está desaparecida da vida familiar, é a história contada e lida de maneira mágica, feita para encantar as crianças. Histórias que não querem vender nada, como nas narrativas da publicidade. Histórias sem vontade de passar lições religiosas e morais, sem vontade de ensinar nada, mas lidas ou contadas pelo simples prazer de envolver nas tramas das narrativas. Pelo afeto e pelas palavras e gestos, criam-se e recriam-se mundos e seus habitantes fantásticos. Histórias contadas pelo que tem o homem de inventar, de ficcionar poética e teatralmente.(...)”.

Elias era assim. Sabia que o seu melhor caminho de contribuição era o das crianças e adolescentes e não deixou de trilhá-lo. Seis anos após a sua estréia literária em livro, publicou Curtições de Pitu, pela Melhoramentos, em 1976, e, a partir daí, imprimiu a sua marca na literatura infantil e juvenil nas mais de centenas de livros publicados, muitos em reedições várias pelas diversas editoras de nosso país.  

Uma missão. Elias defendia a literatura infantil e juvenil como um bem maior, necessário à vivência de qualquer ser humano. Elias José foi Elias José, com toda a sua veracidade, com o seu prazer transparente na elaboração do texto, a alegria que jorrava de seus escritos, a imensa multiplicidade e diversidade de seu talento e a sua profunda simplicidade.

E assim ele se fez grande ante seus leitores, crianças, adolescentes e adultos, professores, educadores, editores, estudiosos de literatura, jornalistas, familiares, amigos e escritores.
Por isso, que falar de Elias José não é falar apenas de suas obras e sim, também do homem, do educador, poeta, escritor e amigo das crianças, para quem escrevia com total responsabilidade, espírito lúdico e compreensão do real através do simbólico.

Multifacetadas, suas obras comunicam pelo uso exato da palavra autoral, escolhida a dedo de acordo com a intenção e a especificidade a que se destinam. Elias José sabia que as palavras não são indiferentes e têm identidade. São únicas. Por isso, ele conseguia dar sabor a sua expressão, levando-a ao patamar da Arte quando o leitor também se exercitava no domínio da palavra. Expressando as descobertas e possibilidades de seu texto e criando outras. Criador e criatura envolvidos, inventando-se e reinventando-se num processo contínuo de diálogo e conhecimento...   

Em seu depoimento ao livro organizado por Ieda de Oliveira, O que é qualidade em Literatura Infantil e Juvenil – com a palavra o escritor, da Editora DCL, Elias José diz:

“Literatura é arte, feita com palavras, com o imaginário solto, sem compromisso de informar ou ensinar, com o grande desejo de emocionar, de sensibilizar, de mexer com a inteligência, com o “eu poético” do leitor e com o seu imaginário ficcional, provocando o prazer de ler e a vontade de também escrever.” “Quando estas importantes qualidades textuais forem reconhecidas” — continua ele —, “a leitura será colocada no seu devido lugar na escola: a prioridade e superioridade sobre qualquer outra atividade. Seja a leitura referencial como a didática e a literária, todas importantes, mas cada uma com qualidades e funções bem percebíveis.”.

Assim era Elias José. Um autor apaixonado pelo que fazia, preocupado com a arte da literatura e com a educação. Um mestre na arte de formação do leitor através da arte de mobilização. Trazia suas palavras para a realidade da criança e do professor, promovendo respostas criativas, necessárias e indispensáveis ao estar no mundo. Sua literatura é fonte de maravilhamento e de reflexão pessoal. Sua literatura é fonte de espírito crítico para a formação do ser.

Assim era Elias José. Um autor cujas obras alcançam o leitor pela sua ludicidade; pelo seu poder encantatório no ritmo que imprime aos seus escritos; pela sonoridade de suas palavras; pela sua poesia; e pelo conteúdo que abrange temas complexos ou triviais tratados de maneira descomplicada e com leveza.

Tenho muito a agradecer a ele. O mergulho na riqueza de sua obra me fez uma leitora e uma escritora mais sensível. 

Elias José, autor do presente, que conversa, brinca e compartilha no encantamento da literatura. Autor do passado, no respeito à preservação da memória da tradição e dos costumes; e autor do futuro, das futuras gerações pela contação de histórias que traz um denominador eterno: o sonho, o imaginário e o prazer.

Muito obrigada a todos. Muito obrigada ao COLE pela oportunidade de homenagear nosso querido Elias José.

*Rosane Villela representou o 17º Cole na homenagem a Elias José. Professora de inglês de crianças, adolescentes e adultos, nos cursos IBEU e Oxford, graduou-se em Letras pela PUC-Rio. Publicou, além de textos em sites, revistas e jornais, o livro de poesia Navalha no verso, pela Editora 7 Letras.
É membro-fundadora da Letra Falante, grupo de discussão de literatura infantil e juvenil. Apanhando a lua... , publicado em 2008 pela Editora Paulinas, é seu primeiro trabalho para o público infanto-juvenil.  Outra obra, ainda inédita, será lançada pela mesma editora.   

 

Querido Bartolomeu, de todos nós, de todas nós.*

Percorrendo a sua vida e a sua obra, desconfiamos de que você tenha sido abençoado por algum deus sutil e protetor da arte, amante da poesia. Retribuindo a essa distinção com que a sua individualidade foi contemplada, em troca, você potencializou a vida em muitas formas e dimensões, desdobrando-se em espaços, seres, fantasias. Na sua auto-apresentação, situamos referências ao seu nascimento (no ano de 1944, em Papagaios, MG), às suas origens versáteis, a que associamos marcas excêntricas do humor e da poesia, impregnados na sua interioridade e na sua linguagem:

“Sou mineiro de muitos interiores: Papagaio, Pitangui, Bom Despacho, Divinópolis, Belo Horizonte. Nasci em agosto, com sete meses. Por ser assim alguns dizem que sou virgem; outros me apontam escorpião. Pelos meus muitos e frequentes afogamentos, e sempre caio de cabeça, desconfio secretamente que sou aquário.

Com tantas dúvidas aprendi desde cedo a escolher-me. Um dia faço-me cigano, no outro voo com os pássaros, no terceiro sou cavaleiro das sete luas para num quarto desejar-me marinheiro.”1

As faltas, as carências, as dores, que também fazem parte dos mútiplos eventos da vida, você soube driblar, sujeito ao encantamento de que o ser humano e o artista podem metamorfosear-se, nascendo a cada dia. Levado pela possibilidade de constantes renascimentos, a sua existência e a sua obra têm sido tecidas de maneira preciosa, para você e para nós, perfazendo caminhos de exuberante vitalidade criadora, atingindo a essência de universalidade.

Na sua crônica “... das saudades que não tenho”, reconhecemos a alusão à condição adulta do menino na infância, desmitificando falsas visões sobre a criança, mas também vemos refletidas peculiaridades de uma dimensão inédita do seu caráter - confirmado pelas condições externas da educação e da cultura -, afeito à solidão, ao silêncio. E associamos os “afogamentos” à profundidade das experiências interiores solitárias, propiciadas pela sua face “aquariana”.

“Nasci com 57 anos. Meu pai me legou seus 34, vividos com duvidosos amores, desejos escondidos. Minha mãe me destinou seus 23, marcados com traições e perdas. Assim somados o que herdei foi a capacidade de associar o amor ao sofrimento. [...] Mesmo nascendo com 57 anos estava aos 60 obrigado a ser ainda criança. [...] Nesse tempo, eu me equilibrava entre a nostalgia de ter nascido e o medo da morte. Conceito que conservo até hoje com meus aproximados 500 anos.”2

Os mergulhos de cabeça, em que a subjetividade se recolhe e se resguarda no aprofundamento, parece mesmo proceder do tempo do menino dos “muitos interiores”, afetado pelo sentido do mistério, do invisível, acordado por perdas e dores, e cercado de afetos, histórias, memórias cotidianas, familiares, regionais, e de tradições remotas – heranças de medos e segredos velados. O menino antecipa a relação madura com a existência e com a realidade, atento e sensível, assimilando experiências que carregam o peso de anos com faltas ancestrais.
São tantos o Bartolomeu! Seria possível saudar todos em um? Queremos saudá-lo nas suas várias dimensões. O escritor apurado e exigente, que se tem destacado na história da literatura nacional contemporânea, contribuindo, extraordinariamente, para a qualificação da produção editorial para crianças e jovens no Brasil, desde o início da década de 70. Amado pelos leitores infantis, juvenis e adultos; valorizado pela crítica e pelas pesquisas acadêmicas, pelos muitos prêmios nacionais e internacionais; homenageado e condecorado inúmeras vezes, por várias instituições; lido em outros países, traduzido em francês, inglês, espanhol, dinamaquês. Bartolomeu de intensa e incessante produção intelectual e literária, à frente de funções editoriais; organizador de antologias; tradutor; escritor de uma obra rica, e, embora vasta, cuidada, primando pela concisão poética.
Aplaudimos, então, o Bartolomeu, exímio construtor de universos literários, em que a matéria-prima é a fantasia, forjada nas mãos do artífice do verbo que elegeu a arte como ofício. Que tem na palavra e na forma do imaginário o veio inaugurador de vida. Que se entrega lucidamente às questões que envolvem o seu fazer, pensado, elaborado e refeito a partir de aguda consciência crítica e do compromisso estético.
Saudamos a dimensão de Bartolomeu disciplinado na sua lida lapidar, construtor de sonhos, do novo, que reconstroi o tempo perdido, a Infância imemorial. A construção poética generosa você compartilha, Bartolomeu, exercendo a escrita literária como ato que não se basta, incompleto. Evocando palavras suas, “escrever é arriscar-se, ao tentar adivinhar o obscuro, enquanto ler é iluminar-se com a claridade do já decifrado”, “jogo de invenções e possibilidades”3. Neste sentido, a poesia da sua literatura prossegue iluminando e, na imensa teia de recriação dos leitores, cresce em contínua vibração.
Saudamos o Bartolomeu preocupado com a qualidade do texto oferecido às novas gerações, comprometido, particularmente, com a qualidade da criação literária. O seu pensamento se volta à formação do futuro leitor, tendo em vista o adulto que venha a ser capaz de usufruir as grandes obras universais:

“[...] eu me indago: será que esta literatura para jovens que está sendo produzida em nosso País hoje irá formar um leitor da grande obra universal? [...] De minha parte , exijo muito do escritor, principalmente do infantil, pois acho que ele tem uma responsabilidade muito grande: ou ele entra no mundo único, da brincadeira da infância, ou irá construir uma obra que será capaz de formar um futuro leitor da grande obra universal.”4

                        Saudemos o Bartolomeu de ações dinâmicas de amplosentido político, empenhado na transformação social, sonhando com caminhos de liberdade e justiça, acreditando que a leitura possa ser um desses caminhos. De rica formação, adquirida inclusive no Instituto Pedagógico de Paris, o educador e arte-educador segue trabalhando em paralelo ao ofício do escritor, sendo presença destacada em várias instâncias de atuação, desde os anos 70. É relevante a sua contribuição, respaldando movimentos de empresas, fundações, setores governamentais e privados, com reflexões importantes ao desenvolvimento de projetos de promoção da leitura. Sua atuação se estende a ministrar conferências e seminários sobre educação, leitura, literatura, e a funções de assessorias e gestões.

Foi presidente da Fundação Clóvis Salgado do Palácio das Artes de Belo Horizonte; Horizonte; membro do Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais; do Conselho Curador da Escola Guignard; membro do Conselho Curador da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte. Em uma das ações mais recentes, responsabilizou-se pela redação e leitura do manifesto “Por Um Brasil Literário”, lançado na Festa Literária de Parati (FLIP), em 2 de julho de 2009, por iniciativa de instituições responsáveis por alguns projetos de leitura no Brasil. O seu texto considera que “todas as atividades que têm a literatura como objeto central serão promovidas para fazer do País uma sociedade leitora”, acreditando que

“Liberdade, espontaneidade, afetividade e fantasia são elementos que fundam a infância. Tais substâncias são também pertinentes à construção literária. Daí, a literatura ser próxima da criança. Possibilitar aos mais jovens acesso ao texto literário é garantir a presença de tais elementos – que inauguram a vida – como essenciais para o seu crescimento.”5

Como crítico de arte, Bartolomeu integra júris e comissões de salões; realiza curadorias; prepara museografias de exposições.

O Bartolomeu crítico, de aspirações politizadas, inerentes ao educador, ao arte-educador e ao escritor, tem na interface o Bartolomeu de feições humorísticas, contador de histórias insólitas, algumas próximas do non sense, procedente do próprio cotidiano e de comportamentos estranhos de figuras humanas – revelações do repertório espantoso e cômico da vida, que o olhar do escritor flagra. O humor em que as sutilezas do riso vão até ao ponto da ironia tem na expressão de Bartolomeu a contrapartida alegre, produzida pelo jogo lúdico da criação literária: “Toda palavra eu corto, recorto, parto, brinco com ela. É que o humor abranda.”6  Saudamos no caráter do escritor a convivência do ludismo brincalhão com o humor fino, que faz pensar e perceber faces reversas.

Fiel à destinação poética, Bartolomeu, você tem cumprido a vida como uma multiplicação criativa e, livre, você tem se reinventado nos muitos voos. Leveza e brevidade na escrita são reflexos da sua relação com a temporalidade:

“Acho muito difícil lidar com o tempo. Tem um tempo que já passou, que eu não toco mais, e tem um tempo que está para vir, mas não sei a medida dele. Então tenho feito textos cada vez mais curtos. [...] Não dou mais conta de fazer promessas longas.”7

Somos privilegiados e privilegiadas por sermos contemporâneos, Bartolomeu, e na convivência pessoal e nas leituras, desfrutar a sua presença, a sua amizade, o seu afeto, e, principalmente, a cumplicidade que nos une – leitores e artista, quando povoamos a beleza da sua linguagem. Rendemo-nos aos frutos do que o deus da arte legou ao seu espírito: a sua criação literária, lavrada com palavras plenas da abertura que você lhes atribui, considerando-as “portas e janelas”8. A sua palavra poética perpetua sopros infinitos de vida, tanto para você, quanto para os que o leem hoje e os que o lerão no futuro. 

No percurso da destinação poética de Bartolomeu, saudamos o encontro harmonioso entre o filósofo, o menino e o poeta. O filósofo, de perspicácia metafísica, aliado do silêncio, de onde vem o senso reflexivo, base do refinamento da literatura do escritor. Da prematura convivência entre o espírito reflexivo do homem e a natureza espontânea da criança, forma-se a percepção complexa do poeta: “Carrego a minha infância cotidianamente. Daí o meu respeito pelas crianças”9. O seu último livro – Tempo de voo – nos dá a chave, contendo a síntese do encontro entre Menino e Adulto-escritor. A narrativa poética passa a limpo as inquietações com a efemeridade da vida, a perplexidade com a passagem do tempo, que povoam a consciência humana e criadora. O conflito se processa no diálogo do menino e o adulto, propiciando a revelação de um sentido reconfortante do tempo:

 “Voltei para o antes. Carregava comigo minha antiga infância. E o menino que morava em mim não mais travou sua língua. Continuou a me interrogar sobre coisas impossíveis de responder. Meu coração, pesado de perguntas, se agitava, festivo, ao supor que o tempo é um saboroso presente. Franzi novamente a testa.”10

Na obra intelectual e literária de Bartolomeu cruzam-se diversas perspectivas: educativa, político-social, humorística, filosófica, psicanalítica, poética, entre outras. Mas, na coexistência da Criança e do Homem, vislumbramos o manancial de permanente fluidez da poesia, alimento da palavra artística; essa afinação entre os seres, distantes na objetividade cronológica mas inseparáveis na confluência subjetiva dos tempos da existência, é o amálgama que atravessa a literatura do escritor.

Saudamos, então, este menino e este homem em sintonia no artista Bartolomeu Campos de Queirós e na sua arte. Eles, juntos, definem um estilo; fundamentam uma visão estética; preservam a fantasia; sustentam formas expressivas que equilibram a manifestação lúdica e o amadurecimento crítico.

A palavra do poeta que você é, Bartolomeu, transgride fronteiras prosaicas, banais, turvas. Reinventa, renova, ressuscita, inaugura. Escrever poeticamente é a bênção maior, porém, não confundida com talento gratuito, sem esforço e labor. A arte, para você, é dar o melhor que você tem na lapidação da escrita, buscando precisão e simplicidade levadas ao essencial. Nas linhas do seu texto se inscreve a liberdade, porque, para você, “viver em estado poético é viver em liberdade”11, e a palavra criadora pode realizar a transposição de enigmas e mistérios com um sentido de vida: “[...] acho que eu me busco pela literatura. Creio que ela faz mais bem a mim do que ao leitor. Por meio dela sou capaz de suportar e de carregar o tempo para o ainda indecifrável, para o que me aflige.”12

Saudemos o Bartolomeu poeta. E que deuses de todas as crenças continuem protegendo-o e acalentando a poesia no homem e no escritor, que nascem a cada dia, confiando na vida com a sua surpreendente capacidade renovadora. Para você, Bartolomeu, que entende que “viver é nascer todo dia, é jogar fora um monte de coisa e tornar a inventar.”13, evocamos a maior bênção, que é a do fluir poético no curso do renascimento cíclico, mantendo-lhe o poder de arte e de vida!  

NOTAS
1) QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Depoimento. In: Ah! Mar... Projeto gráfico de Walter Ono e Mário Cafiero. São Paulo: Quinteto, 1985, p. 31.
2) _________. Crônica “... das saudades que não tenho”. In: ABRAMOVICH, Fanny (org.). O mito da infância feliz . São Paulo: Summus, 1983, pp. 27-8.
3) _________. “Carta poética”. Fazendo escola. Ano 3, n. 6, páginas não numeradas. Uberaba: Secretaria Municipal de Educação, 1996.
4) _________. “Em busca do tempo perdido”. Estado de Minas, Belo Horizonte, 16 fev. 1997, p. 6. Entrevista a Carlos Herculano Lopes. 
5) _________. Manifesto “Por um Brasil literário”. Disponível em http:// www.brasilliterario.org.br.
6) _________. “Por parte de Bartolomeu Campos Queirós”. In: LIMA, Ebe Maria de. Literatura sem fronteiras. Belo Horizonte: Muiguilim, 1998, p. 124. Entrevista à autora.
7) ________.  “Uma inquietude encantadora”. Notícias do Salão n. 4, Rio de Janeiro, 11-21 set. 2003. n. 4. p. 3. Entrevista a Márcio Vassallo.
8) _________. “Carta poética”. Fazendo escola. páginas não numeradas.
9) ________.  “Uma inquietude encantadora”. Notícias do Salão n. 4. p. 1.
10) ________. Tempo de voo. Ilustração de Alfonso Ruano. São Paulo: Comboio de Corda, 2009, p. 47.
11) ________. “Nossa literatura infantil viaja para outros países”. Estado de Minas, Belo Horizonte, 28 mar. 1989. Entrevista - Segunda seção.
12) ________. “Uma inquietude encantadora”. Notícias do Salão n. 4. p. 1.
13) ________. Entrevista a Paula Saldanha. Vídeo O autor e sua obra. Rio de Janeiro: FNLIJ, 1988.

 

* Saudação feita por Vânia Maria Resende/ Educadora, doutora na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela USP; autora do ensaio crítico “A dimensão poética da narrativa de Bartolomeu Campos Queirós”, na obra O menino na literatura brasileira, editora Perspectiva.
 
Campinas, 20 de julho de 2009.