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ENTRE O OLHAR DO PESQUISADOR E AS AÇÕES QUE ENVOLVEM A PESQUISA: UMACONSTANTE INTERAÇÃO

BETWEEN THE LOOK OF THE RESEARCHER AND THE ACTIONS THAT INVOLVE THE RESEARCH: INTERACTION CONSTANT
 
Ilsa do Carmo Vieira Goulart(*)
 

Resumo
Este texto tem por objetivo trazer as diferentes ações do pesquisador junto ao seu objeto de estudo, destacando o olhar como a ação primeira desta rede de ações e, nesse movimento, enfatizar a ligação que ocorre entre o pesquisador e a sua pesquisa.
Palavras-chave: Pesquisa. Pesquisador. Ações investigativas.

Abstract
This text has for objective to bring the different actions of the researcher next to its object of study, being detached the look as the first action of this net of action and, in this movement, to emphasize the connection that occurs between the researcher and its research.
Keywords: Research. Researcher. Investigate Actions.

“Navegar é preciso
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e
a (minha alma) a lenha desse fogo.”
Fernando Pessoa

Imagem disponível em: www.velhosamigos.com.br/.../caravelas.jpg

As palavras de Fernando Pessoa parecem propícias para se destacar algumas características que se sobressaem no pesquisador; ouso apossar-me dessa fabulosa analogia numa atitude audaciosa de descrevê-lo e de nomeá-lo como um autêntico navegante.
Tomados pela coragem de descobrir, de conquistar novas terras de um mundo repleto de maravilhas e riquezas nele contido, desbravam audaciosamente aquilo que ainda não tinham sob domínio, os navegantes vão em busca de suas inquietações, enfrentam as dificuldades e barreiras postas pela incansável fúria oceânica. Sustentam-se da coragem, da audácia, da continuidade, da necessidade de navegar e, mais que a própria vida, mais que seus próprios interesses, o compromisso de prosseguir a viagem, de ir adiante se torna o seu maior propulsor. São seus atos que os constituem navegantes.
Este texto pretende destacar as ações de um pesquisador, frente a seu objeto de estudo, como instrumento de interrogação, perscrutação e análise. Apresenta o ato de pesquisar numa dimensão mais abrangente, envolvendo tanto o sujeito quanto o objeto numa interação recíproca, uma relação que acontece num processo de construção simultânea e contínua, durante a qual pesquisa e pesquisador alteram-se e transformam-se constantemente.
Dentre as múltiplas atuações que circundam o universo acadêmico, algumas ações podem ser caracterizadas por sua força perceptiva, se destacam pela sua ligação com os sentidos humanos: o olhar, o ouvir, o falar, o tocar e o sentir. Outras, reflexivas, por se tratarem de atividades cognitivas e reveladoras de práticas como o ler, o escrever, o analisar, o argumentar. Também há ações específicas de execução dos procedimentos metodológicos: observar, entrevistar, registrar, coletar dados, compará-los, enfim, são muitas as ações inseridas no contexto investigativo.
O que ocorre é uma pluralidade de ações, que envolvem um pesquisador e sua pesquisa; abordá-las separadamente seria inexequível para esse texto, visto que, ocorre uma interação entre elas; ao se executar uma ação perceptiva, pode-se efetuar uma ação reflexiva, ou o contrário.
Nesse artigo, buscar-se-á discorrer sobre as ações como uma rede interligada, cuja ação mobilizadora se faz por meio do olhar investigativo. Referir ao olhar, não por ser esta ação melhor, em detrimento de outra, mas, por apresentar uma função desencadeadora de outras ações; por ser uma das mais cobiçadas ações em escritos de diversos autores e por propiciar a verbalização deste conjunto de atos complexos que compõem a pesquisa.
O olhar como ação primária
Um indivíduo, ao assumir sua posição de pesquisador, imerge num mar de incertezas; não deve se consumir pela pretensão de conseguir respostas para todas as suas indagações ou mesmo atingir uma perfeita conexão da articulação dialógica entre o pensamento e a sua linguagem escrita, visto que:
Não há um porto seguro, onde possamos ancorar nossa perspectiva de análise, para, a partir dali, conhecer a realidade. Em cada parada nós no máximo conseguimos amarrar às superfícies. E aí construímos uma nova maneira de vermos o mundo e com ele nos relacionarmos, nem melhor nem pior que outras, nem mais correta nem mais incorreta do que outras. (Veiga-Neto, 1996, p. 30)
Como opção para se abrandarem as indagações, ou mesmo, se apreender o inapreensível, ao pesquisador foram-lhe reservadas ações particulares numa tentativa de adentrar em possíveis rotas que se conduzem à essência do objeto investigativo, para então perscrutá-lo e, por conseguinte, escavar e usufruir das riquezas que dele emanam. Cabe-lhe uma posição bem peculiar de concretizar uma focalização estabelecida pela ação problemática, inquietante, especulativa, sedenta de entendimento que ocorre no olhar. Um olhar movido de particularidades, como vem nos apontar Veiga-Neto (1996, p. 27) “(...) é o olhar que botamos sobre as coisas que, de certa maneira, as constitui. São os olhares que colocamos sobre as coisas que criam os problemas do mundo.”
Veiga-Neto (1996), ao escrever sobre olhar, esclarece que o uso da metáfora da visão dá-se pelo fato de ser um sentido capaz de mediar o homem com a realidade. O olhar passa a ser a janela para o mundo, apresenta toda uma infinidade de coisas em diferentes, formas, tamanhos, cores, origens, belezas. Apresenta a multiplicidade da realidade que nos cerca. No entanto, o olhar não apresenta a essência da realidade, deve-se precaver das primeiras impressões, das primeiras aparências, das ilusões que surgem e que delas ocasionariam grandes transtornos.
O autor explora o olhar sob duas grandes perspectivas: o olhar moderno e outros olhares, a que vem denominar de pós-moderno. Dentro desta segunda perspectiva, o pesquisador da educação, ao travar a luta para compreender e desvendar aquilo que podemos considerar de problemas educacionais, deve considerar que, no trabalho investigativo, não se obterá verdades absolutas, não é possível encontrar uma única definição ou uma única causa e, nem mesmo, conseguirá chegar a essência de seu objeto; que será impossível assumir uma posição unilateral de uma determinada relação ou categoria.
A partir dessa reflexão, pode-se constatar a relevância da ação do olhar-pesquisador sobre seu objeto de pesquisa, para sua constituição. A pesquisa se edifica por meio de um sujeito operante, a quem cabe o acionar e direcionar de uma investigação, que se estende, da sua construção, à sua efetivação. Traz como semente germinadora as inquietações entranhadas de sua interioridade. A problemática não se encontra inscrita nos objetos, elas são introduzidas pelo pesquisador num foco particular posto, primeiramente, pelo seu olhar.
Nessa perspectiva, Cardoso (1997) mostra, numa concepção mais aprofundada, que o ser humano é movido, em sua essência, por uma ação perceptiva, que o capacita à apreensão de um mundo fora de si. Destaca, também, o ato de conhecer o mundo por meio da visão, salientando que há uma ambivalência linguística que ocorre em nossa língua para designar esta ação através dos verbos ver e olhar. O autor estabelece uma distinção entre ambos, embora ressalte que haja uma movimentação distinta na efetuação destas ações, provocando-lhe uma interdependência, num processo de saltos que vão da significação a constituição de sentidos.
Define o ver como a ação de correr os olhos sobre algo, como um movimento passivo, dócil, de delicada desatenção para detalhes, é um ater-se para o todo. Já o olhar é penetrante, remete a uma ação, a uma atividade, uma centralização de um determinado ponto, é minucioso e estende-se às inquietações, quer saber mais, conhecer as partes e detalhes.
O autor expõe diferentes configurações a partir do ver e do olhar sobre o mundo. A visão supõe um mundo pleno, inteiro, leva-se pela crença de sua totalidade e acabamento, opera por uma soma e acúmulo, num plano horizontal. O olhar vai além das superfícies planas e lisas, ele se fixa na descontinuidade, escava nas sinuosidades, procura nas frestas instáveis e deslizantes deste mundo de interrogações.
Apropriando dessas considerações, pode-se afirmar que o pesquisador move-se de duas ações simultâneas: a visão que lhe apresenta o mundo do objeto de estudo, em sua abrangência e totalidade, e o olhar que distingue entre essa inteireza, as saliências, as lacunas, os enigmas próprios depositados no montante da essência do que se quer estudar.
No entanto, sabe-se que uma pesquisa não se constitui apenas de um único olhar, ela se equivale de outros olhares que surgem como ponto de apoio a novos outros olhares. É um deixar-se guiar por uma maneira de conceber, de pensar de autores diversos, sem inibir ou anular as particularidades, nem a individualidade daquele que executa a análise. Orientar o olhar interpretativo por meio do olhar do outro, sem deixar de assumir sua própria identidade.
As abordagens teóricas – a bússola de um pesquisador-navegante neste mar do conhecimento – também orientam o olhar para uma determinada direção, postura, atitude, que possibilita ao pesquisador uma relação de maior ou de menor proximidade com o seu objeto de estudo.
A História Cultural, por exemplo, propõe ao pesquisador um desafio intrépido: desbravar novos temas, direcionando-se a novos enfoques, a uma nova visão do objeto que se pretende pesquisar, assume como meta identificar as maneiras, as formas como uma determinada realidade é construída em diferentes tempos e lugares.
Sedimentados por esta abordagem teórica, que se interessa pelas histórias das atividades humanas, que se preocupa, não apenas com a narrativa dos acontecimentos, mas com as estruturas que a envolvem, que busca na opinião de pessoas comuns outra experiência das mudanças sociais. Pela procura sedenta de uma variedade de evidências (visuais ou orais), de uma variedade de questionamentos (individual ou coletivo), possibilita ao pesquisador expressar o passado através de um ângulo distinto: um ponto de vista particular direcionado pelo olhar do presente.
Embora o pesquisador esteja provido de fontes e indícios que apoiem o trabalho investigativo, a dosagem de aprofundamento e de direcionamento da pesquisa compete a uma visão que vem de uma particularidade do indivíduo e, com isso, o enfoque ou os recortes passam por uma espécie de funil, do qual decorrem as escolhas, as delimitações, a precisão de um olhar que é próprio de um pesquisador.
A intercessão entre pesquisador e pesquisa: uma reversibilidade de ações
Direcionar o olhar para a pesquisa é também conduzir o olhar para o pesquisador, pois o trabalho acadêmico traz as características daquele que o executa. Ao construir uma pesquisa, o pesquisador edifica um pouco de si mesmo.
Segundo Vorraber (2002), é necessário ater-se para o fato de que ao pesquisar, ao escrever e, acrescentaria, ao ler, ocorre um investimento em si mesmo.
O olhar possui uma retina filtrante, pela qual se revela as singularidades do sujeito: as expressões verbais e nominais, os pensamentos, o discurso escolhido. Sobressai um concatenar de ideias, um trabalho de dedicação e de empenho, bem como, os valores, os sentimentos, que enfim, ocasionam um emaranhado de outras ações, e assim, pode-se constatar o quanto do pesquisador está inserido dentro de uma pesquisa.
Partindo da premissa de que o pesquisador se constitui, concomitantemente, com sua pesquisa e, como tal, não se esgota, não se limita, se refaz a cada nova proposta de análise. Veiga-Neto (1996, p. 32) assegurará esta ligação intrínseca entre pesquisador e a pesquisa: “isso não significa falta de rigor mas significa que devemos ter sempre presente que somos irremediavelmente parte daquilo que analisamos e que, tantas vezes, queremos modificar.”
Pode-se considerar a aproximação entre pesquisador e pesquisa, como uma ação que se procede de uma congruência de interesses, de intenções, de preceitos e que pode ser denominada a partir de uma relação favorável de identificação.
Essa relação é marcada por transições decorrentes de uma alternância no agente e no predicado, ou seja, ocorre uma troca de papéis, uma oscilação ora de um sujeito operante e um objeto receptor, ora de um sujeito receptor e um objeto operante. E isso acontece por estar em atuação várias ações reflexivas de um sujeito (pesquisador) que ao mesmo tempo faz e recebe a ação.
Tal aproximação decorre de uma troca: parece que o tanto que se doa, seja talvez o tanto que se receba. Nessa permuta percebe-se inscrito uma ação de reversibilidade, que compreende um pesquisador que busca o conhecimento do seu objeto por meio de ações perceptivas; e uma pesquisa que permite, que possibilita ao seu executor constantes ações reflexivas, possibilitando-lhe mudanças, alterações e transformações constantes, tanto na execução da pesquisa quanto na escrita do texto. Ações que oferecem ao pesquisador um trabalho – ascendente espiral – formado de atos contínuos de (re)fazer, (re)tomar, (re)pensar, (re)estruturar, (re)escrever, (re)ler e (re)organizar.
Um emaranhado de ações interligadas por desejo único, constante de criar. O que seria a pesquisa se não a própria manifestação da ação reveladora de um olhar investigativo, que impera por sua criatividade e torna possível o conhecimento do outro e de si mesmo?
Diante de tamanha complexidade que contorna o mundo de uma pesquisa acadêmica, a única credibilidade a que se apoia um pesquisador-navegante é a necessidade de continuar, de prosseguir mesmo sem obter todas as respostas que lhe cabem, enfrentando as dificuldades reservadas pelo tempo, bem como, nas demoras de um tecer de investimentos, de estudos, de cuidados e de descobertas.
Compreender a profundidade dos abismos que estão ocultos na ação do olhar investigativo – como também, em outras ações – talvez explique a utilização dessa metáfora, por diferentes autores, numa tentativa de elucidar ou mesmo clarificar as complexidades das ações reflexivas que envolvem a relação entre o pesquisador e a sua pesquisa.

Referências

BURKE, P. (org.) A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
CARDOSO, S. O olhar viajante. (do etnólogo). In: NOVAES, A. (Org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
FISCHER, R.M.B. Escrita acadêmica: a arte de ensinar o que se lê. In: VORRABER, M. Caminhos investigativos III: riscos e possibilidades nas fronteiras. Rio de Janeiro; Dp&a, 2005.
VEIGA-NETO, A. Olhares. In: VORRABER, M. C. (Org.). Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. Porto Alegre: Mediação, 1996.
VORRABER, M. C. (Org.). Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. Porto Alegre: Mediação, 1996.
______. O diálogo entre a ciência e o mundo: uma agenda para jovens pesquisadores e pesquisadoras. In: VORRABER, M. Caminhos investigativos II: outros modos de pensar e de fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: Dp&a, 2002.
______. Caminhos investigativos II: outros modos de pensar e de fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: Dp&a, 2002.
______. Caminhos investigativos III: riscos e possibilidades nas fronteiras. Rio de Janeiro; Dp&a, 2005.
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(*) Ilsa do Carmo Vieira Goulart - Doutoranda da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, orientanda da Profa. Dra. Norma Sandra de Almeida Ferreira. Membro do Grupo de Pesquisa ALLE – Alfabetização, Leitura e Escrita. Graduada em Letras, pela Fundação de Ensino Superior do Vale do Sapucaí (1997). Especialista em Psicopedagogia pela UCB (2005) e Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp (2009).

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