O JORNAL ESCOLAR E A VOZ DA COMUNIDADE

Amarildo B. Carnicel
Bacharel em Jornalismo pela PUC-Campinas, Mestre em Multimeios e Doutor em Educação pela Unicamp. Professor da PUC-Campinas, do Labjor e Pesquisador do Centro de Memória da Unicamp

O presente estudo mostra, inicialmente, um cenário preocupante em que estão inseridos os veículos de grande circulação. Se, por um lado, aponta queda no número de leitores e de anunciantes, revela, contudo, que setores da mídia segmentada vivem um crescimento: o IVC (Instituto Verificador de Circulação) mostra que a tiragem aumenta ano a ano. Este estudo discute, também, aspectos ligados à especialização e à segmentação que enfoca cada vez mais nichos definidos de mercado e de leitores, incluindo aí as mídias local, de bairro e comunitária. É justamente nesta modalidade, a comunitária, que se encaixa nossa proposta de elaboração de um jornal comunitário no âmbito da sala de aula como instrumento de aproximação entre a comunidade e o ambiente escolar.

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Iniciamos esta reflexão apresentando trechos de uma cena descrita pelo jornalista Ricardo Noblat em A arte de fazer um jornal diário (2003) que mostra uma realidade sobre o perfil dos jornais impressos brasileiros e o rumo, desanimador, que vêm tomando. Mais: indica que os jornalistas, atores principais desse cenário, têm plena consciência dessa realidade e, mesmo assim, pouco fazem, e se o fazem, é de modo muito gradual. Nesta descrição, NOBLAT (2003: 11-13) apresenta a seguinte situação:

“Cenário: uma banca de jornal no centro de uma cidade.
Personagens: um jornalista que tenta comprar jornais e revistas e um cidadão de meia idade que lê as manchetes dos jornais expostos na banca.
Cidadão – Eu acho que conheço o senhor... O senhor é jornalista, não é mesmo?
Jornalista – É, eu sou... [...]
Cidadão – Por que os jornais são tão parecidos? Por que tratam quase sempre dos mesmos assuntos?
Jornalista – Porque notícias importantes interessam a todos eles. E são publicadas por todos. [..]
Cidadão – Por que os jornais têm tantas páginas?
Jornalista – Porque têm muitas notícias e anúncios.
Cidadão – E as pessoas têm tempo para ler tanta coisa?
Jornalista – Não. Cada vez elas têm menos tempo. [...]
Cidadão – E que tipo de notícias desperta mais interesse nos leitores?
Jornalista – Notícias sobre temas que afetam mais diretamente a vida deles. Notícias, por exemplo, sobre saúde, educação, sexo, ciências, políticas públicas...
Cidadão – Mas os jornais não estão cheio delas, não é?
Jornalista – É. Não estão... [...]
Cidadão – Os jovens lêem jornais?
Jornalista – Lêem pouco. E cada vez menos.
Cidadão – Mas o que os jornais fazem para atraí-los?
Jornalista – Não fazem muita coisa.
Cidadão – Se não atraírem leitores jovens, no futuro os jornais não terão mais leitores, estou certo?
Jornalista – Está sim, é mais ou menos isso.
Cidadão – Então a idéia dos jornalistas é acabar com os jornais...
Jornalista – O senhor me desculpe, mas tenho que ir embora”.

Como se pode observar, o cidadão de meia idade desfere uma série perguntas que acabam por encurralar o jornalista, que ao procurar as respostas mostra que mesmo sabendo que não está conduzindo o jornal para o rumo certo, insiste em errar. Pesquisas feitas em diferentes partes do mundo e levantamentos de dados estatísticos do IVC (Instituto Verificador de Circulação) revelam, numa primeira amostragem, que as inquietações do cidadão são pertinentes.

Antes de centrar atenção na realidade vivida pelos jornais brasileiros, consideramos conveniente apresentar um panorama com elementos que oferecem uma noção do cenário norte-americano a partir de pesquisa organizada pela Associação Americana de Jornais. Em 2001, a receita de publicidade dos jornais daquele país diminuiu 11,5% em relação ao ano anterior, a maior desde a grande recessão dos anos 30. A entidade entrevistou 4.003 adultos com idades entre 18 e 24 anos. Setenta e cinco por cento afirmaram que a internet ‘mexe’ com a imaginação deles. Em relação ao jornal impresso, apenas 45% deram a mesma resposta. A utilização da internet como fonte de notícia aumentou em 127% entre 1997 e 2000. O consumo de jornal impresso, no mesmo período, diminuiu em 12%. Mas o aumento do desinteresse do público não está restrito ao jornal impresso. Também no mesmo período, os telejornais nacionais e mundiais viram sua audiência cair em 14% , ou seja, dois pontos percentuais acima daquele índice vivido pelo impresso.

A insistência dos jornalistas em desenvolver um modelo de jornal que não agrada aos leitores está refletida em números divulgados pelo IVC em janeiro de 2003. Segundo o Instituto, em dezembro de 2002, os jornais diários brasileiros vinculados ao órgão venderam 3,4 milhões de exemplares, incluindo a vendagem de domingo, quando muitos veículos chegam a duplicar a tiragem. Desse total, 61% foram adquiridos pelos leitores em forma de assinatura e o restante na forma de compra avulsa. O quadro se torna preocupante quando são comparados os números obtidos no mesmo período do ano anterior, ou seja, dezembro de 2001. Em dezembro de 2002, a circulação total (assinaturas e vendas avulsas) caiu em 5,4%. Desse total, o número de assinantes diminuiu em 3,8% e as vendas avulsas em 8%, ou seja, ocorreu menor perda entre os leitores mais fiéis caracterizados pelos assinantes. Por outro lado, dentre aqueles leitores menos envolvidos, os compradores avulsos, a diminuição foi ainda mais significativa, atingindo 8% conforme foi dito.

Apesar da queda do número de leitores (assinantes e avulsos) no Brasil, os números do IVC permitem notar que quase 30% dos jornais cresceram em meio à crise, o que mostra que, apesar do cenário desenhado por Noblat no diálogo apresentado no início deste trabalho, há, sim, por parte dos jornalistas e dos empresários do setor, uma disposição em alterar o cenário – caso contrário, estariam dando tiro nos próprios pés e assinando suas sentenças de morte. As mudanças, indicadas por CABRAL (2003), apontam para o seguinte cenário: a circulação dos jornais que surgiram nos últimos seis anos já responde por 20% da tiragem verificada; o ranking dos dez maiores jornais sofreu quatro alterações de posição em apenas um ano (2002); e a existência de uma aceitação crescente de produtos mais segmentados. Segundo o jornalista, há seis anos, dos dez maiores jornais dos país, oito eram de interesse geral e apenas dois de nichos específicos. Em 2002, o quadro verificado é outro: da lista de dez, cinco são grandes jornais (assuntos gerais) e igual número são os jornais específicos ou segmentados. Os números mostram, portanto, que não é apenas o The New York Times que vê 90% de seu conteúdo desprezado pelos leitores mais fiéis. No Brasil, jornais como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, embora não ‘circulem’ uma aferição tão precisa (pelo menos, que tivesse sido divulgada) como aquela feita pelo jornal norte-americano, lutam para não perderem leitores. Lançamentos de novos cadernos, de novas seções e de suplementos especiais figuram entre as estratégias para, num primeiro momento, preservar seus leitores, e num segundo, ampliar esse quadro, conforme assinala CABRAL (2003): “Resta, portanto, como saída agregar ao produto o conteúdo desejado pelo leitor e, talvez principalmente, pelo não-leitor”.

SEGMENTAÇÃO JORNALÍSTICA – Embora largamente usado no meio jornalístico, o termo segmentação vem merecendo amplas discussões em teorias sobre marketing, o que não poderia ser diferente, afinal o jornalismo, não raro, independentemente da forma de expressão (impresso, rádio, TV, on-line etc.) é um produto empresarial.

No campo editorial, o que se percebe é que as grandes empresas estão buscando abocanhar fatias de mercado que estavam restritas a jornais populares autônomos, produzidos por empresas que buscavam um lugar ao sol. De norte a sul do país, o cenário atual mostra que há uma grande concentração de jornais populares nas mãos das grandes empresas.

Em São Paulo, por exemplo, o Grupo Folha, além da Folha de S. Paulo, publica o popular Agora São Paulo e o Grupo Estado produz O Estado de S. Paulo e o popular Jornal da Tarde. No Rio de Janeiro, o Infoglobo elabora O Globo e o popular Extra. No Rio Grande Sul, a RBS publica o Zero Hora e o popular Diário Gaúcho. No Ceará, a empresa publicadora do Diário do Nordeste mantém o popular Jornal da Rua.

Entretanto, embora os veículos de mídia impressa estejam se concentrando cada vez mais nas mãos das grandes redes – o mesmo fenômeno ocorre com empresas de mídia televisiva e radiofônica – o modelo não vem sendo aplicado corretamente. É possível encontrar num mesmo dia o mesmo texto publicado pelos diferentes jornais de um mesmo grupo empresarial. O que muda é o tom do título da matéria e a disposição gráfica dos elementos na página: cada qual adequado ao seu público. Neste sentido, observa OLIVEIRA (2003: 144):

“Nas edições especiais sobre os atentados do dia 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos [....] o Extra e O Globo publicaram quase na totalidade os mesmos textos, diversificando apenas os títulos e a diagramação, o que nos faz supor que no caso do agravamento da crise financeira as empresas utilizariam uma mesma equipe para fazer dois produtos diferentes.”

A adoção dessa estratégia de comunicação por parte das grandes redes (a veiculação de textos semelhantes em jornais populares, sejam eles vendidos em bancas ou com distribuição gratuita) é severamente criticada por BAHIA, para quem a empresa faz do rótulo ‘comunitário’ apenas uma fachada. BAHIA (1990: 246) afirma que

“se a pretexto de economizar custos, jornais de uma mesma cadeia empresarial simplesmente repetem as notícias, embora os públicos sejam diferentes; e se a despeito de usar o direito de seleção (por ser gratuito, o veículo tem o privilégio de escolher a sua audiência) os jornais se concentram maciçamente nas classes A e B, então a sua finalidade comunitária será apenas uma fachada para angariar simpatias e lucros.”

Nota-se, então, que o jornalismo segmentado ou especializado, mesmo quando usado de forma inadequada, conforme vimos em exemplo citado, pode ser um dos caminhos para a sustentação da mídia impressa diária.

Chegamos então a dois termos (‘segmentação’ e ‘especialização’) correntes no dia-a-dia do jornalismo, seja no âmbito das redações, das assessorias de imprensa ou âmbito acadêmico. Há profissionais e também pesquisadores que, num primeiro momento, afirmam que segmentação e especialização são nomenclaturas semelhantes na prática jornalística. Se, por um lado, a especialização tem merecido atenção especial por parte de alguns autores – afinal o Jornalismo Especializado é uma disciplina em nível de graduação em varias faculdades do país –, por outro lado, a segmentação não mereceu ainda a devida atenção por parte dos teóricos e pesquisadores da área e, por isso, é motivo de controvérsias. Como já foi dito, para alguns, são áreas semelhantes, para outros, a especialização prepara o jornalista para a segmentação, ou seja, é uma etapa que precede a segmentação.

BAHIA (1990: 215) define especialização jornalística como “informação dirigida à cobertura de assuntos determinados e em função de certos públicos, dando à notícia um caráter específico”. Essa especificidade pode, também, levar à segmentação. O autor apresenta um apanhado histórico que permite compreender melhor o termo ‘especialização’ e mostra como especialização e segmentação, não por acaso, são termos considerados semelhantes por muitos jornalistas, afinal, tratar as notícias de modo setorizado facilita a identificação dos vários segmentos de leitores, sejam eles fiéis a um veículo de informação geral, sejam leitores assíduos de um veículo específico.
Sobre a especialização, LUSTOSA (1996) apresenta um recorte histórico mostrando que, no período de censura, principalmente no campo político, coube aos jornalistas buscar formas de dialogar com o leitor. Aprofundando um pouco mais sobre o tema especialização, BAHIA (1990: 225) classifica desse modo a área de atuação do jornalista especializado:

“Primária é aquela que é parte inseparável dos veículos de assuntos gerais, como as seções (nos impresso) ou os programas (nos audiovisuais). Autônoma é a que tem veiculação e periodicidade próprias, sejam de notícias, sejam de publicidade. Seções e programas, ou veículos, procuram dirigir temas e linguagens específicos a um público específico.”

Nesta discussão que mostra que há uma linha muito tênue que separa a especialização da segmentação, pensamos que a especialização pode – ou não – levar à segmentação. Procuramos assim explicar: a especialização é uma área do jornalismo que trata do específico por meio de um processo seletivo, abrindo mão das generalidades e enfoca um tema ou área de interesse que venha ao encontro das aspirações do leitor. Assim, o jornalismo especializado visa, num primeiro momento, fazer do jornalista um especialista, permitindo que ele atue com maior tranqüilidade e desenvoltura numa editoria específica (citamos, como exemplo, o caderno de economia ‘Dinheiro’, da Folha de S. Paulo) como também num veículo da mídia segmentada em economia como, por exemplo, Gazeta Mercantil. Se a especialização limita o campo de ação, a segmentação procura aprofundar ainda mais o tema. O leitor da mídia segmentada apresenta como característica a vontade de ver o assunto esgotado.

JORNAL DE BAIRRO E JORNAL COMUNITÁRIO – A crescente e cada vez mais constante dificuldade, por parte das grandes empresas, em absorver os jovens jornalistas que deixam os bancos acadêmicos e se transferem para o mercado de trabalho faz com que significativa parcela de recém-formados busque basicamente dois caminhos, muitas vezes, autônomos: ou estruturam uma assessoria de imprensa e saem de porta em porta em busca de clientes, ou vislumbram, em nichos da sociedade, o espaço para se tornarem porta-vozes de uma determinada organização ou comunidade. Assim, vão proliferando informativos nos mais diferentes formatos, desenhos e para públicos específicos. Um segmento que vem ganhando bastante atenção por parte desses jornalistas são os bairros, independentemente das classes sociais que os compõem.

Para melhor compreensão desse fenômeno convém fazer distinção entre duas modalidades (jornal de bairro e jornal comunitário) que embora possam estar embasadas numa mesma teoria (a do jornalismo de classes sociais) caracterizam-se por práticas que são distintas. Convém, ainda, situar e mostrar as especificidades de cada modalidade no contexto da mídia (ou jornal) local e aí, faz-se necessário apontar características que distinguem o jornal local daquela mídia largamente difundida como grande imprensa.

Procuramos fazer essa distinção sem perder de vista que, qualquer veículo de comunicação, independentemente do porte e do público a que se destina, é sempre um fórum de diálogo. O que os distingue é a forma como será estabelecido este diálogo. O grau de abrangência de um veículo da mídia impressa bem como o poder de diálogo com o público a que se destina não pode ser aferido apenas pela forma de distribuição, tiragem e número de páginas. Essas características não significam, necessariamente, que o diálogo proposto pelo jornal tenha surtido o efeito esperado pelos jornalistas, tampouco o almejado pela comunidade de um bairro que muitas vezes não se reconhece nas páginas publicadas. O que distingue a natureza das informações veiculadas pela grande imprensa é o caráter da notícia. A posse do presidente do Senado ou da Câmara Federal certamente será assunto de destaque nos jornais de grande circulação. A posse do presidente da Câmara dos Vereadores ganhará espaço na imprensa local. E a posse do presidente da associação de um bairro periférico da cidade, que espaço merecerá no noticiário nacional? Nenhum. Afinal, jornais de grande circulação não destinam espaço a ‘assuntos menores’, de interesse restrito a uma comunidade.

Diante disso, o cidadão integrante das classes sociais menos privilegiadas, não se reconhecendo nas páginas do jornal, adota uma postura de desinteresse por aquilo que é publicado. Isso nos leva a crer que a distância entre o ‘cidadão comum’ e os centros de decisão e a conseqüente sensação de impotência diante das decisões, sejam na esfera federal ou mesmo no âmbito das redações, fazem com que alguns desses assuntos se tornem ‘menos importantes’.

Cicilia PERUZZO (2003), em trabalho publicado no Anuário da Unesco, apresenta e discute atribuições que caracterizam a mídia local. Mostra que o local é marcado por um espaço determinado (embora as demarcações territoriais não lhe sejam determinantes) em que o indivíduo é inserido, fazendo desse espaço local familiar e de partilha de sentidos. Ela aponta que o interesse pelo local torna-se cada vez mais evidente, tanto do ponto de vista das empresas que direcionam seu foco quanto dos indivíduos que por meio da valorização desse espaço tendem a fortalecer os laços de pertencimento.

O que se depreende é que há por parte dos dois tipos de mídia (local e nacional) uma constante apropriação dos elementos que até então poderiam definir as especificidades. O jornal local, pelo fácil acesso às tecnologias que permitem, de modo relativo, colocar seus leitores em contato com um mundo globalizado, começa a ganhar diferentes contornos. O grande jornal, interessado em explorar nichos de mercado cada vez mais específicos, começa a se apropriar de linguagem e conteúdo até então restritos à mídia local. É a configuração de uma desterritorialização que deixa cada vez mais nebulosa a identificação desses limites.

Se quisermos fazer um recorte ainda mais definido podemos segmentar a mídia local em duas áreas de atuação: o jornal de bairro e o jornal comunitário. O jornal de bairro não apresenta características muito diferentes daquelas já atribuídas ao jornal local. No tocante a características, conteúdo, forma e, principalmente, interesse, são muito parecidos. A diferença, muitas vezes, se evidencia, pelo campo de ação ou território em que atua. Se a globalização e o fácil acesso às tecnologias dificultam a identificação dos limites territoriais, a área de abrangência ou de circulação (e aí contempla o trabalho de distribuição) acaba por impor os limites territoriais que fazem do veículo um jornal de bairro.

JORNAL COMUNITÁRIO – Feitas as considerações sobre o jornal de bairro, nosso foco direciona-se agora ao jornal comunitário. É fundamental, segundo MARCONDES (1987: 161) a participação efetiva da comunidade nas tomadas de decisão e no processo de produção:

“Fazer jornal comunitário não é buscar grupos étnicos, religiosos, culturais, nacionais, geográficos, com mensagens ‘para aquele público’, como exploração de fatias de marcado. Tal procedimento é o mesmo do jornal não-comunitário. Por isso, os jornais de bairro, os jornais de colônias (judia, alemã, japonesa, por exemplo), os jornais do interior, são estruturalmente idênticos aos jornais de grande imprensa. O que se modifica é somente o público visado. A elaboração, o caráter, a vinculação e grupos políticos obedecem aos mesmos critérios da imprensa liberal de forma geral. [...] Um jornal comunitário, diferente disto, é elaborado por membros de uma comunidade que procuram através dele obter mais força política, melhor poder de barganha, mais impacto social, não para alguns interesses particularizados (anunciantes, figuras proeminentes), mas para toda a comunidade que esteja operando o veículo.”

Se é verdadeiro afirmar que as características do jornal local são muito parecidas com as do jornal de bairro (a diferença quase sempre está na área de abrangência e, às vezes, no porte financeiros dos empreendedores) é igualmente verdadeiro que o jornal comunitário é dotado de características que fazem da publicação algo bastante específico, embora muitas vezes a distinção entre local e comunitário não seja facilmente percebida. Tornou-se ‘conveniente’ a muitas empresas tomar emprestado o termo comunitário como forma de ganhar a simpatia e a confiança da comunidade. São veículos que, de forma não muito ética, fazem uso do rótulo para ganhar a imagem de relação íntima com a comunidade, de prestação de serviço a esse público, mas que, na verdade, visam vantagens como anúncios publicitários e outras benesses.

Sobre essa tentativa de apropriação do termo por parte de empresas para a obtenção das mais variadas formas de vantagem, PERUZZO (1998:152-3) afirma:

“No campo da mídia comunitária, nem tudo é muito pacífico e perfeito. Em muitos casos o comunitário se consuma apenas no nome. Há confluências de interesses divergentes, os quais podem ser agrupados em três grandes tipos: a) interesses voltados essencialmente para a construção do bem-estar das comunidades e favorecimento social local. Procura-se incentivar a participação ativa dos cidadãos no processo de comunicação. b) interesses de cunho político partidário e eleitoral. Objetiva-se a usar a mídia comunitária como veículo para campanha política de candidatos. c) interesses econômicos e comerciais.”

Como se pode observar, das três características apontadas, as duas últimas denotam que há uma apropriação indevida do rótulo ‘comunitário’ para uso particular. Os interesses particulares sobrepõem-se aos interesses da comunidade. Apenas a primeira característica deve ser considerada positiva, pois procura inserir o cidadão no processo de comunicação daquela comunidade.

Assim, deixando de lado os interesses políticos e comerciais, o conteúdo editorial deve privilegiar assuntos de interesse da comunidade. São questões comunitárias específicas como: a) reivindicações de melhorias no bairro (iluminação, conservação de praças, calçamento de ruas, reforma de praças esportivas etc); b) prestação de serviços ou utilidade pública (campanhas de vacinação, horário de funcionamento do comércio, postos de saúde etc); c) valorização de fatos e pessoas do bairro (divulgar pessoas que se destaquem pelo talento ou serviço social e humanitário).

Dessas questões comunitárias específicas, apenas os itens “a” e “b” são estampados, ainda que com pouca freqüência, nos jornais de média ou grande circulação. O item “c” só entra na pauta quando há sobra de espaço na agenda do repórter para fazer a entrevista e sobra de espaço físico na página, quando, por algum motivo, como revezamento de repórteres em feriados, o editor se vale das chamadas matérias de gaveta. Assim, não raro, bairro periférico só é mote de notícia em jornal de grande circulação quando ocorrem fatos considerados importantes como o de um apostador que ganha sozinho na loteria ou quando uma grande tragédia abala a opinião pública. Como as chances de ocorrência de um crime frio e impiedoso ou de uma chacina são estatisticamente maiores do que a possibilidade de a sorte grande sorrir para um membro da comunidade, esse bairro, então, será notícia sempre que ocorrer algo ruim, algo que pelo grau de crueldade aguce o interesse popular e aumente a vendagem desse jornal. “É exatamente a mesma coisa que acontece no sistema mundial de informação. Um país pobre só é notícia para as grandes agências que monopolizam a informação internacional quando ali ocorrem desastres, golpes de estado ou fatos insólitos.” (CALLADO e ESTRADA, 1986: 7)

PREENCHENDO LACUNA – É justamente para preencher essa lacuna (a de que os grandes jornais da cidade quase não noticiam o que há de positivo nessas localidades) e diminuir o estigma de que comunidade de bairro só é notícia nas páginas policiais, que surge o jornal comunitário, um veículo cujo objetivo principal é dar voz aos membros da comunidade e estabelecer um fórum de diálogo, de exposição de idéias, de divergências e de reivindicações, conforme assinalam CALLADO e ESTRADA (1986: 8):

“A função do jornal comunitário transcende o caráter da informação, tornando-se um instrumento de mobilização que estabelece a verdadeira comunicação entre os membros da comunidade, o debate de seus problemas e a participação de todos nas soluções a serem dadas.”

BAHIA (1990: 245) segue a mesma linha de raciocínio ao afirmar que “o jornal comunitário não na medida em que concentra notícias e opiniões, mas na proporção em que evoca a cidadania, se diversifica e se multiplica para dar voz ao maior número de correntes numa comunidade”.
O jornal comunitário também pode cumprir a função de buscar atender aos anseios da comunidade e divulgar as suas realizações, podendo se constituir em fonte de promoções comunitárias, oferecer caminhos para soluções de problemas, organizar eventos e liderar campanhas para a construção de escolas e postos de saúde etc. Nesse sentido, WONDRACEK (1978: 24) afirma: “São iniciativas que comportam a liderança de um jornal, desde que tenham a finalidade de promover o bem coletivo”.

Para CARNICEL (2005: 39),

“O jornal comunitário surge, então, da necessidade de um veículo que fale para uma comunidade específica. Um veículo em que sejam percebidos elementos da teoria da comunicação como o emissor, o canal e o receptor. Porém, diferentemente do fenômeno registrado na grande imprensa em que o emissor (no caso o jornalista) e o receptor (no caso, o leitor) não se conhecem, na mídia comunitária os membros da comunidade estão presentes nas duas extremidades: a comunidade que emite a mensagem é a mesma que a recebe.”

Apesar do esforço no sentido de, por meio das especificidades, caracterizar este ou aquele tipo de veículo, PERUZZO (2003) afirma que não há reservas de conteúdos. É relativamente comum um jornal comunitário abrigar um texto sobre notícia internacional (conteúdo, portanto, de um jornal local ou de grande circulação). Na outra ponta, é relativamente raro um jornal de massa estampar um texto com o perfil do campeão de um torneio de truco para a terceira idade organizado pela associação dos moradores do bairro (conteúdo típico de um jornal comunitário). Ou seja, a mídia local focaliza mais assuntos gerais enquanto a comunitária é mais dirigida, preocupa-se com segmentos sociais. O que esses jornais – o local e o comunitário – devem apresentar em comum é a preocupação de se tornarem um fórum de debates, de idéias, de reivindicações, de valorização de fatos e pessoas sem nunca perderem de vista o cumprimento da sua responsabilidade social, principalmente no que diz respeito à produção de textos que ampliem os direitos e deveres do cidadão.

JORNAL COMUNITÁRIO E CIDADANIA – Não cometemos erro quando afirmamos que o termo cidadania está cada vez mais na ordem do dia. Qualquer que seja o ambiente, qualquer que seja o suporte utilizado para a sua divulgação, o termo é algo corrente nas mais diferentes esferas da sociedade. Igrejas, escolas, empresas, clubes, ONGs etc. fazem da palavra cidadania bandeira a ser ensinada e praticada. A imprensa, independentemente da forma de comunicação (impressa, radiofônica, televisada ou internet), vem abrindo espaços (colunas, seções, páginas, vinhetas e programas especiais) com o objetivo de amplificar a realização de trabalhos e iniciativas, bem como o de despertar a sociedade para a prática da cidadania. Apesar da validade dessa iniciativa por parte da imprensa, percebe-se que muitos veículos de comunicação buscam pegar carona na moda da cidadania para obterem algum tipo de vantagem ao adotar indevidamente rótulo de empresa ou imprensa cidadã.

Porém, no que diz respeito aos veículos de comunicação, a prática da cidadania deve nortear todo e qualquer trabalho na área da mídia comunitária, conforme assinala PERUZZO. (2004: 56) Segundo a autora, mídia comunitária pode ser compreendida como: “uma comunicação que se compromete, acima de tudo, com os interesses das ‘comunidades’ onde se localiza e visa contribuir na ampliação dos direitos e deveres de cidadania.” BAHIA vê o jornal comunitário como um instrumento capaz de alertar a comunidade sobre esses direitos e deveres. Segundo ele,

“O jornal comunitário, não na medida em que concentra notícias e opiniões, mas na proporção em que evoca a cidadania, se diversifica e se multiplica para dar voz ao maior número possível de correntes numa comunidade”. (1990: 245)

Visto dessa forma, consideramos, portanto, que o processo de produção de um jornal comunitário deve ser pautado pela prática da cidadania. Para ser mais claro: consideramos jornal comunitário e cidadania práticas indissociáveis; uma só pode existir mediante a realização/presença da outra.
Numa visão mais ampla de jornal comunitário, aliado à prática da cidadania, percebemos que as ações procuram se contrapor ao domínio e, por que não, ao autoritarismo, muitas vezes imposto pelas sociedades de classe. Para que o cidadão assuma essa postura de contraposição, ele deverá ter acesso a uma carga de informação e de educação (terá, logicamente, que apresentar disposição e condições para assumi-la) que o prepare e que lhe dê segurança para o exercício dessa cidadania.

O que se percebe, entretanto, é que o assunto cidadania vem sendo tratado pela imprensa e usado em discursos de modo muito superficial. É como se o termo, em qualquer ação social, precisasse aparecer entre os objetivos de um projeto ou de uma proposta e entre seus resultados como forma de legitimar ou de fazer uma prestação de contas dos atos, seja de iniciativa individual, coletiva, empresarial ou organizacional. Ou seja, o trabalho não terá validade se a palavra cidadania (e aquilo que chamam de resultados de atos de cidadania) não estiver inserida, seja na proposta escrita, seja no discurso de quem atuará no projeto.
Sobre essa prática, MARTINS (2000: 112) afirma:

“Em qualquer veículo de comunicação é possível, com um pouco de observação, verificar que a palavra cidadania vem sendo utilizada como sinônimo do conhecimento de direitos e deveres.”

Não pretendemos neste estudo nos aprofundar sobre a utilização, indevida ou não, do termo cidadania, seja por iniciativas individuais, coletivas ou por parte dos meios de comunicação. Entretanto, não podemos nos furtar de apontar a importância dos meios de comunicação como instrumento de educação, de orientação e de alerta para o conhecimento e a prática da cidadania. Partimos do pressuposto de que a cidadania existe mediante a participação de toda sociedade em condições de igualdade – o que podemos afirmar é que essa igualdade não ocorre de modo efetivo.
Esse pressuposto, segundo MARTINS (2000: 116), depende, entre outras possibilidades, do acesso dos indivíduos à informação sobre as formas e os conteúdos da participação, sobre os direitos e deveres não somente a título de informação, mas, principalmente, no que diz respeito à ação. Neste sentido, o autor afirma:

“Tais informações hoje estão sendo difundidas por inúmeros aparelhos, desde as mais diversas mídias, sendo a eletrônica uma das principais dentre todas elas, até as escolas. Eis, portanto, um pressuposto de nosso conceito de cidadania: o acesso à informação, que hoje se apresenta como uma das mais valiosas mercadorias do mundo contemporâneo.”

O autor vai além quando afirma:

“Restringir o cidadão àquele que simplesmente conhece direitos e deveres é vê-lo enquanto um indivíduo passivo, que recebe e tem de cumpri-los passivamente, isto é, abdicando da possibilidade de ser sujeito no processo de elaboração deles. Dessa passividade e indiferença, vista por Gramsci como o ‘peso morto da história’, decorre também a acriticidade, ou seja, o indivíduo passivo respeita os direitos e deveres que lhes são impostos sem questionar seus princípios, suas finalidades, a que interesses eles servem, enfim, sem se envolver com a dinâmica sócio-política, econômica e cultural que os forjou e sedimentou na sociedade, tendo em vista uma determinada correlação de forças entre grupos sociais.” (MARTINS, 2000: 113).

As reflexões feitas pelo autor nos levam a pensar que o cidadão deve passar por um processo educativo, indo além da condição de cidadão (conhecedor de direitos e de deveres), do exercício pleno da cidadania, tornando-se um agente transformador da sociedade.

Nossa intenção neste artigo é mostrar aos profissionais que atuam diariamente em sala de aula um cenário da produção e do consumo de jornais diários brasileiros. Ao mostrarmos que a segmentação jornalística e o conseqüente estabelecimento de nichos de leitores (estamos falando especificamente do jornal comunitário) podem ser algo trabalhado em sala de aula, estamos propondo a realização de um novo modelo de jornal escolar. Estamos, nesta proposta, deixando de lado aquele modelo tradicional de jornal escolar em que os alunos falam do dia-a-dia da escola ou reproduzem redações escolares feitas nas aulas de Português sobre temas genéricos. Pretendemos conscientizar os professores sobre a importância da produção de um veículo que, embora produzido no espaço escolar, fale da comunidade, das pessoas que fazem o cotidiano do local. Imaginamos, assim, abrir os portões da escola para que a comunidade se aproxime de modo a se sentir parte integrante neste processo, que tenha voz nas decisões de como e o que publicar. Acreditamos que uma publicação jornalística produzida em parceria com a comunidade a que se destina perde o ‘tom’ de trabalho escolar (cobranças, avaliações, repreensões) e ganha nova dimensão ao ultrapassar os muros da escola. É a produção pelo prazer da participação.

Bibliografia

BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica – as técnicas do jornalismo (2). São Paulo: Ática, 1990.
CABRAL, João Augusto. “O futuro dos jornais brasileiros”. In: Comunique-se (www.comunique-se.com.br), 2003.
CALLADO, Ana Arruda; ESTRADA, Maria Ignez Duque. Como se faz um jornal comunitário. Petrópolis: Vozes, 1986.
CARNICEL, Amarildo. “O jornal comunitário como estratégia de educação não-formal”. Tese de Doutorado. Campinas: Faculdade de Educação – Unicamp, 2005.
LUSTOSA, Elcias. O texto da notícia. Brasília: UnB, 1996.
MARCONDES, Ciro Filho. Quem manipula quem? – Poder e massas na indústria da cultura e da comunicação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1987.
MARTINS, Marcos F. “Uma ‘catarsis’ no conceito de cidadania: do cidadão cliente à cidadania com valor ético-político”. In: Phónesis. V. 2, no. 2, Campinas: PUC-Campinas, 2.000.
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