O JORNAL NA VIDA DO PROFESSOR

Ezequiel Theodoro da Silva
Faculdade de Educação, Grupo Alle – Unicamp
Acorde – Campinas, SP

Esta reflexão, desenvolvida de maneira urgente para servir como fala de encerramento do 3º Seminário Nacional “O Professor e a Leitura do Jornal” (julho – 2006), procurará contemplar três tópicos principais: 1. Linguagem e Leitura; 2. Cotidiano e Leitura de Jornais; e 3. Jornal, Ensino e Escola. Cabe destacar que, ao invés de um trabalho com maior fôlego bibliográfico, esta exposição traz à tona, relaciona e tece idéias oriundas de nossa experiência com a leitura de jornais, como professor que somos e com projetos que vimos desenvolvendo na esfera da formação básica e continuada de professores em diferentes regiões do Brasil. Além disso, procuramos adicionar resultados preliminares de uma investigação que estamos realizando – e ainda finalizando – sobre a leitura/escrita de professores que participaram do Projeto Teia do Saber – Curso “Ler para Aprender” na Unicamp, nos anos de 2004 e 2005.

Linguagem e Leitura

Para o tratamento deste sub-tema, abrimos com a seguinte colocação do educador espanhol Jorge Larrosa:

“ ... as palavras produzem sentido, criam realidade e (...) funcionam como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos mas com palavras, não pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas palavras. E pensar não é somente ‘raciocinar’ ou ‘calcular’ ou ‘argumentar’, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido é algo que tem a ver com nossas palavras. E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso”. JORGE LARROSA BONDÍA (2001)

Neste trecho, Larrosa fundamentalmente nos remete aos estudos de Vigostky sobre a relação entre pensamento e linguagem. O paradigma é o do sociointeracionismo, calcado na natureza social – e interativa, transacional – do desenvolvimento da linguagem e, através deste, da sofisticação do pensamento humano. Isto quer dizer que necessitamos de vivências contínuas e cada vez mais amadurecidas com as diferentes linguagens, com os diferentes gêneros e tipos de linguagem de modo a enriquecer, a ir polindo a nossa inteligência sobre o mundo através do nosso pensamento.

Esta relação é de suma importância neste início de reflexão porque é na confluência do pensamento-linguagem ou, se quiser, a partir dessa confluência que levamos a efeito as nossas ações, reações e decisões em sociedade; portanto, quanto mais ricos os elementos enfeixados naquela confluência, mas ricas as nossas ações, reações e decisões. Em verdade, o nosso fazer e quefazer sociais, dentro de uma sociedade letrada e altamente complexa, dependem de ancoragens cada vez mais complexas, oriundas dos amálgamas conceituais desenvolvimentos por atividades de linguagem-pensamento.

Nunca é demais lembrar que dentro das sociedades modernas letradas existe o fenômeno da co-ocorrência e concorrência de linguagens e veículos (ou “mídias”, como se costuma dizer). Quer dizer: hoje em dia as diferentes linguagens (verbais e não verbais) acontecem instantaneamente na nossa vida, exigindo uma multiplicidade de competências de leitura frente aos meios e suportes que as fazem circular. E eles concorrem entre si na conquista da atenção dos leitores mesmo porque também se colocam ao serviço do mercado. Daí a existência de uma saturação de informações no mercado das mídias e daí talvez a nosso dificuldade em conseguirmos a atenção e a dedicação dos mais jovens para o livro, a revista e o jornal, talvez considerados mídias não tão atraentes às novas gerações. Outrossim, caberia perguntar se a avalanche de informações amalgamadas do mundo atual não afeta até a nós mesmo, tornando cada vez mais difícil a nossa convivência com os livros e/ou jornais.

Se os mundos ou universos da sonoridade, da gestualidade, das cores, etc não dependem da educação formal para serem adequadamente – ou minimamente – compreendidos pelas pessoas, o mundo da escrita depende das escolas e dos professores para ser entendido. O autodidatismo em leitura e escrita é muito pequeno em termos mundiais; a criança precisa sentar num banco escolar de modo a ser alfabetizada e letrada e assim poder acessar os bens culturais expressos pela linguagem escrita. E nesta esfera – a do ensino escolarizado – o Brasil tem fracassado muito, conforme mostram as avaliações de desempenho das nossas escolas (INAF, PISA, etc) Retomando a relação pensamento-linguagem anteriormente referida, isto pode significar um empobrecimento dos modos de pensar das nossas crianças pelos pecados cometidos no desenvolvimento e manejo da linguagem escrita e de todos os gêneros que a constitui em termos de práticas sócio-culturais.

Fechando esta primeira parte da reflexão, trazemos um pequeno trecho que mostra o maravilhamento de um analfabeto ao descobrir pela primeira vez a significação da escrita na vida dos homens:

“Na casa do Padre Perry, o único lugar ocupado era o das estantes de livros. Gradativamente cheguei a compreender que as marcas sobre as páginas eram palavras na armadilha. Qualquer um podia decifrar os símbolos e soltar as palavras aprisionadas, falando-as. A tinta de impressão enjaulava os pensamentos; eles não podiam fugir, assim como um animal não pode fugir da armadilha. Quando me dei conta do que realmente isto significava, assaltou-me a mesma sensação e o mesmo espanto que tive quando vi pela primeira vez as luzes brilhantes da cidade do Cairo. Estremeci, com a intensidade de meu desejo de aprender a fazer eu mesmo aquela coisa maravilhosa”. IN A Galáxia de Gutenberg, Marshall McLuhan

Jornal e Cotidiano

Depois de Gutenberg, o jornal foi sendo cada vez mais encarnado no modus vivendi dos cidadãos das sociedades letradas, enfeixando em si posicionamentos, notícias e diferentes tipos de serviço. Daí considerarmos esse veículo (o jornal) como um importante ícone – senão o principal – do mundo impresso, estabelecendo hábitos culturais específicos para a sua usufruição e colocando necessidades e competências peculiares para a vida em sociedade.

Exemplificando essa presença marcante e ostensiva, vejamos alguns costumes instaurados pela produção, circulação e consumo (ou leitura) de jornais em nosso cotidiano:

- Segmentação das seções para atendimento de gêneros, sexos, idades, etc
- Companheirismo em diferentes instantes da vida do cidadão; pense na companhia que o jornal faz em situações de espera (aeroportos, consultórios médicos, etc)
- Tratamento mais aprofundado dos fatos, em comparação com a televisão, rádio, etc, possibilitando releitura, identificação de fontes, etc

Ao pensarmos nas múltiplas influências dos jornais na vida do cidadão contemporâneo, convém sempre lembrar que o acesso ao mesmo ainda não é democratizado e socializado mesmo porque ele é vendido como uma mercadoria aos que podem pagar por uma assinatura ou por exemplares separados. Entretanto, no contexto da presente reflexão, o acesso ao universo da escrita e aos bens ali contidos ainda é uma meta a ser alcançada em nosso país, que hoje apresenta um quadro de leitura e de leitores dos mais vergonhosos do mundo, em que pese ser um país com significativa produção editorial e estar entre os primeiros do mundo no que se refere ao número de jornais publicados.

Jornal, Escola e Ensino

Destacamos e enaltecemos aqui três vertentes do jornal e do discurso jornalístico que mostram a sua importância para o ensino formal escolarizado. Mais especificamente, ao explicitar esses vertentes, desejamos tornar mais evidente a necessidade de sua utilização nas salas de aula, seja qual for a disciplina ou matéria ensinada pelos professores.

Dentro de vertente lingüística, podemos verificar que o jornal é constituído por um rico e diferenciado amálgama de configurações ou tipos de escrita (argumentativa, dissertativa, narrativa e descritiva) dentro de uma gramática que lhe é exclusiva. Além disso, relações internas entre as parte ou seções ou cadernos apontam para intertextos, relações entre palavra e imagem, etc que em muito enriquecem o potencial de leitura de uma pessoa.

Dentro da vertente cognitiva, o jornal acompanha o desenrolar dos acontecimentos do dia, trazendo possibilidades de atualização de conhecimentos, novos posicionamentos, análise, crítica e coisas do tipo. Outrossim, há que lembrar que os fatos aparecem em versões do próprio jornal, impondo a criticidade, a des-coberta, o des-velamento, a re-criação pela análise dos textos, etc Isto significa que o jornal estimula a curiosidade e a vontade de aprofundar os fatos pela leitura das versões.

Dentro da vertente da cidadania, devemos lembrar que o jornal (jour = dia) é sempre uma janela para o mundo que chega à minha casa todas as manhãs. Ainda que existam veículos mais velozes do que ele, como a televisão e a Internet, o tratamento dos fatos pela escrita exige um modo específico, mais reflexivo e seletivo de recepção. A partir dessa janela ou a partir dos horizontes por ela apontados, o leitor enxerga melhor as fronteiras da sua comunidade, compreende melhor os limites das suas participações e intervenções sociais, etc Enfim, conviver com jornais, ler jornais é sempre um modo de participar das coisas nosso tempo e intervir na mudança do rumo dos acontecimentos. Para melhor, é claro!

O ensino com jornais deve almejar sempre as operações complexas do pensamento: analisar, comparar, julgar, sintetizar, produzir pontos de vista, etc Isto, lembrando que o significado maior da leitura nos dias de hoje, pensando na complexidade da sociedade, é o de melhor qualificar as nossas ações, reações e decisões nas diferentes dimensões da vida. Nestes termos, vejamos uma notícia de jornal, produzida dentro de uma escola, a partir de uma excerto de Luis de Camões:

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

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Ah Camões!
Se vivesses hoje em dia
Tomavas uns antipiréticos
Uns quantos analgésicos
E Prozac para a depressão
Compravas um computador
Consultavas a página da Play Boy
E descobririas
Que essas dores que sentias
Esses calores que te abrasavam
Essas mudanças de humor repentinas
Esses desatinos sem nexo
Não eram feridas de amor
Mas somente falta de sexo.

Aluna de 16 anos, Maria Moraes, da Escola da Rinchoa (Portugal)

Temos também aconselhado que a arte – neste caso, a poesia – seja também utilizada para uma compreensão crítica daquilo que os jornais fazem com a vida da gente. Como a retina do escritor e do poeta muita vezes nos faz ver aquilo que não vemos ou não víamos, citamos alguns poemas que falam por sim mesmos sobre o conselho aqui mencionado:
 

              Jornal de Serviço - Carlos Drummond de Andrade

I
Máquinas de lavar
Máquinas de lixar
Máquinas de furar
Máquinas de curvar
Máquinas de dobrar
Máquinas de engarrafar
Máquinas de empacotar
Máquinas de ensacar
Máquinas de assar
Máquinas de faturamento
II
Champanha por atacado
Artigos orientais
Institutos de beleza
Metais preciosos
Peleterias
Salões para banquetes e festas
Condimentos e molhos
Botões a varejo
Roupas de aluguel
Tântalo
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VII
Peritos em exame de documentos
Peritos em imposto de renda
Preparação de papéis de casamento
Representantes de papel e papelão
Detetives particulares
Tira-manchas
Limpa-fossas
Fogos de artifício
Sucos especiais
Ioga

A linguagem do humor também é excelente para o tratamento dos jornais:

O Jacó vai colocar um anúncio no jornal.
- Gostaria de colocar uma nota fúnebre sobre a morte da minha esposa, diz ao atendente
.- Pois não, quais são os dizeres?
- Sara morreu!
- Só isso? - espanta-se o rapaz.
- Sim, Jacó não quer gastar muito.
- Mas o preço mínimo permite até 5 palavras.
- Então coloca: "Sara morreu. Vendo Monza 94”.

Jornais noticiam:
“Após cavarem 100 metros, cientistas ingleses acharam vestígios de fiação de cobre com 2.000 anos e concluíram que seus antepassados já possuíam uma rede de telefonia”.

Na semana seguinte os franceses - para não ficarem atrás - cavaram 200 metros e a manchete foi a seguinte: "Após cavarem 100 metros, cientistas franceses acharam vestígios de fibra ótica com 3.000 anos, anos e concluíram que seus antepassados já possuíam uma rede de telefonia de alta qualidade”.

Os portugueses - que não são nada bobos - uma semana depois resolveram cavar 1000 metros, e os jornais de Lisboa noticiavam: "Após cavarem 1.000 metros e nada encontrar, cientistas portugueses concluíram que seus antepassados já utilizavam telefone celular há cinco anos atrás”.