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  REPRESENTAÇÕES SOBRE LEITURA E SOCIEDADE: UM ASPECTO DA PESQUISA HISLEIMAT

Ana Vera Raposo de Medeiros – Profª. do Departamento de Letras/ICHS/CUR/UFMT Instituto de Ciências Humanas e Sociais do Campus Universitário de Rondonópolis – ICHS/CUR - Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT

No decorrer das atividades de pesquisa do grupo HISLEIMAT que investigou alguns ASPECTOS DA HISTÓRIA DA LEITURA NO SÉCULO XX, EM MATO GROSSO, dando especial atenção ao enfoque da relação entre os leitores e sua entrada no mundo da cultura letrada, houve a necessidade da elaboração de formulários que contivessem informações a respeito dos sujeitos que compuseram o corpus da pesquisa, a saber: professores, advogados, livreiros, jornalistas, médicos, etc., num total de 32 informantes, o que deu origem às Grades Analíticas - grosso modo, o primeiro instrumento da pesquisa. A partir da análise destas grades analíticas, compostas depois da transcrição e tabulação de dados obtidos por meio de entrevistas com os sujeitos mencionados e, mais especificamente sobre um de seus itens, aquele referente às representações, tornou-se imperativa a organização de uma nova grade que detalhasse as informações levantadas nesse item. Surgiu, desta forma, a Grade Analítica das Representações Literárias e Sociais (GARLS) por meio da qual foi possível tecer novas considerações sobre as opiniões dos entrevistados a respeito de leitura, de sociedade, de autores, de obras, de leitores e sobre leitura na internet.
Para a compreensão das informações trazidas pela nova grade (GARLS), considerou-se que numa perspectiva para além da crítica histórica e social, a leitura é entendida como o produto da ação daquele que perfaz seu sentido, atribuindo completude ao texto. É, pois, o leitor que vivifica a leitura pelo ato de ler. Sua relação com a leitura e a sua história como leitor ajudam a compreender e mesmo explicar a história da leitura – a sua, bem como a de seu tempo, consideradas, evidentemente, as diversas interferências que possam acompanhar o processo de formação de leitores e de cada leitor.
JAUSS (1992:234) acentuou a importância do público como verdadeiro transmissor da continuidade da literatura no tempo (tradição), mas um transmissor dinâmico, não-estático, agindo não numa cadeia de recepções passivas, em sucessão causal, mas num campo de reações.
A GARLS apareceu para que fossem observadas, mais detalhadamente, estas transmissões e reações já que, por sua natureza, ela deteve-se sobre as representações dos sujeitos no que estes manifestaram quanto as suas impressões valorativas sobre livros, autores, gêneros literários e sobre a leitura na internet.
Impressão valorativa é aqui entendida como o posicionamento do entrevistado diante do seu grau maior ou menor de satisfação com cada item apreciado. Estas impressões que atribuem valor estão ligadas intrinsecamente à questão do gosto e a questão do gosto, por sua vez, liga-se a problemas formativos. Isto equivale a dizer que examinando-se a formação do gosto é preciso pensar nos agentes responsáveis por tal formação, aqui resumidos como: família, escola e grupos sociais.
Desde o nascimento as pessoas recebem da família, ou além do próprio modelo familiar, orientações sobre saúde, bem estar, padrões morais, formação moral e intelectual sendo esta, na maioria das vezes, adquirida ou reforçada na escola, que é, por seu turno, escolhida ou indicada pela família que, geralmente, busca nestas instituições linhas metodológicas, ideológicas, padrão social, etc. o mais afinados possível com suas posições sócio-culturais.
Na escola o indivíduo receberá estímulos que reforçarão ou reprovarão o gosto já iniciado pelo padrão familiar.
Além da escola, pode-se apontar as instituições religiosas, os clubes, as agremiações, etc. como agentes que também atuam na formação do gosto, já que esses grupos sociais também elegem um padrão que tende, via de regra, a ser seguido, tornando-se modelar para um dado segmento social.
Mas o gosto não é um padrão imutável ao longo do tempo. Por várias razões de ordem cronológica, psicológica, emocional, social, financeira, cultural, etc. o gosto pode variar ou ser mesmo totalmente alterado.
As mudanças no gosto, muitas vezes, estão relacionadas a reavaliações de valores e posicionamentos frente a um (novo) grupo social. Freqüentemente elas sinalizam um amadurecimento intelectual que se dá pela comparação entre o já conhecido e o(s) elemento(s) que traz(trazem) a novidade.
Quando a família, a escola ou outras instituições formativas elegem um padrão, normalmente, estamos diante do estabelecimento do cânon. O cânon, ou cânone refere-se ao conjunto de normas que orientam a constituição de um padrão que passa a prevalecer sobre outros critérios. Dessa forma, o padrão canônico prescreverá o valor, a beleza, a durabilidade, fidedignidade, etc. do elemento canonizado, que pode ser uma música, um padrão artístico, um livro, etc.
Ao longo dos tempos, o cânone esteve a dispor quais as obras, autores, os temas, e todo um conjunto de informações relativas ao material literário que deveriam orientar o gosto ou o padrão literário, por exemplo.
O cânone, palavra religiosa em suas origens, tornou-se uma escolha entre textos que lutam uns com outros pela sobrevivência, quer se interprete a escolha como sendo feita por grupos sociais dominantes, instituições de educação, tradições de crítica, ou por autores que vieram depois e se sentem escolhidos por determinadas figuras ancestrais. Algumas instituições chegam mesmo a sugerir que as obras entram no cânone devido a bem-sucedidas campanhas de publicidade e propaganda, o que parece também acontecer.
BLOOM (1995:25) diz que o cânone, assim que o tomemos como a relação de um leitor e escritor individuais com o que se preservou do que escreveu, e nos esqueçamos dele como lista de livros de estudo obrigatório, será visto como idêntico à literária Arte da Memória, não ao sentido religioso do termo. E graças a essa arte pudemos saber por meio de nossos entrevistados quais foram as suas preferências como leitores.
É importante lembrar que quem lê tem de escolher, pois não há, literalmente, tempo suficiente para ler tudo, mesmo que não se faça mais nada, além disso, e essa escolha é feita, freqüentemente, por meio do cânon – aquilo que circula na sociedade pelos meios de divulgação tais como: jornais e suplementos literários, antologias e currículos escolares e universitários, resenhas e críticas literárias, comendas e prêmios, chás de Academia e noites de autógrafos, nomes de logradores públicos e adaptações para outras mídias, como o cinema ou a televisão. Não entraremos, aqui, na discussão sobre a validade do cânone, nem sobre as forças que o delimitam, pelo infrutífero da empreitada. Mencionamos a questão do cânone para não perder de vista que entre as questões que envolvem a leitura – as obras e os autores consagrados pelo cânon podem explicar, nos dados apresentados adiante, a alta freqüência da citação de alguns títulos de autores mais populares (popularizados).
Para além da questão do gosto e da influência exercida pelos padrões canonizados, temos a inexorabilidade da escolha pessoal, da preferência particular manifestada pelos indivíduos que é, de certa forma, uma soma daqueles valores sociais com o seu perfil único e pessoal.
No nível individual de escolhas, as possibilidades são maiores e as razões de cada eleição não são tão simplesmente detectáveis, muito menos facilmente perscrutáveis.
No caso dos entrevistados e no que tange ao preenchimento das variáveis da GARLS, percebemos variedade nos itens relativos às preferências por livros, autores e gêneros de leitura, além de uma quase constância quanto à recusa de leitura na Internet.
Com relação aos autores mais citados, elencados pelo número de ocorrências, restaram: 10 referências a Machado de Assis, 8 a José de Alencar, 6 remissões a Jorge Amado, 5 menções a Monteiro Lobato e, empatados numa quinta colocação apareceram Manuel Bandeira, Olavo Bilac, Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco e Alexandre Herculano, todos referidos por três informantes. Este arrolamento de autores reflete a preferência dos sujeitos pelos autores clássicos da literatura nacional e portuguesa. Quanto às obras mais citadas figuraram: Iracema (J. A), com 3 menções, seguida pelas obras Memórias Póstumas de Brás Cubas (M.A), Amor de Perdição (C.C.B.), Capitães de Areia (J.A), Caçadas de Pedrinho (M.L), A Moreninha (J.M.M), O tronco do Ipê, Senhora e O Guarani (J.A) todos com duas ocorrências. Em relação aos gêneros de leitura identificamos 4 categorias: literários, periódicos, didáticos e religiosos; 29 pessoas disseram ter preferência pelo gênero literário – o que indica que quase todos os nossos entrevistados lêem literatura -, 31 pessoas informaram que lêem periódicos – o que significa que quase todos (31 de 32) lêem jornais e meios de informação em geral ; 10 sujeitos revelaram-se leitores de livros religiosos – sendo dois deles, padres; esse índice mostra que sujeitos com outras ocupações também fizeram alusão a leituras de livros, revistas e jornais religiosos; 6 pessoas informaram ler livros didáticos – considerando que, entre o corpus, 12 informantes são professores, vê-se que nem todos os professores se utilizam deste gênero, e as razões desta pouca utilização são por demais conhecidas não havendo motivo para tratá-las aqui.
Percebeu-se, entre os entrevistados certa preocupação com relação ao impacto cultural do computador enquanto máquina de clonagem de textos, ou seja, uma máquina capaz de reproduzir livros e bibliotecas. Há uma preocupação latente com o que poderia ocorrer se, como no caso da máquina de escrever, o computador viesse a substituir a tecnologia anterior (o texto escrito, o livro) com vantagem.
As vantagens da disponibilidade eletrônica de alguns textos são logo evidenciadas, particularmente após o surgimento da internet que torna possível a disseminação do conhecimento e da informação de forma imediata, abrangente, e a um custo relativamente baixo. No entanto poucos informantes fizeram referência à utilização dos computadores - talvez em razão da idade, ou por serem leitores de livros.
Mas o formato do texto eletrônico tende a tornar a leitura mais cansativa do que outros formatos com melhores recursos de visualização, o que parece desmotivar o leitor. Há, ainda, dificuldades inerentes às próprias tecnologias de reprodução de texto: leitores óticos de letras (OCR) garantem precisão quase total (99%), mas erros ainda ocorrem. Quando tais erros não são cuidadosamente revisados, evidentemente, a edição eletrônica atenderia apenas ao leitor comum, tornando-se inadequada para usos profissionais ou de pesquisa. Finalmente, há limitações quanto à seleção de conteúdos, como é o caso da impossibilidade de publicações recentes e importantes, que não pertencem ainda ao domínio público e que são protegidas pelas leis de copyright.
Outra queixa bastante recorrente entre os sujeitos da pesquisa, referiu-se a todo aparato tecnológico que a leitura na internet requer e que, nem sempre, está disponível: computadores, conexão eficiente, energia elétrica, linha telefônica, etc. Elementos que comparados à simplicidade do material impresso (livros e jornais) estimulam esta leitura desestimulando aquela.
É bem possível que o problema mais sério de acervos eletrônicos seja não tanto a limitação imposta pelo idealismo de oferecer ao público um produto de baixo custo e, portanto, inevitavelmente marcado por entraves que só o poder econômico pode corrigir (revisão de textos, etc.), mas, antes, o equívoco que resulta da percepção do computador como mera máquina reprodutora de seus próprios textos específicos (hipertextos), qualitativamente diversos dos textos escritos, o que coloca de imediato a questão das possíveis vantagens existentes na projeção de bibliotecas formadas não apenas por textos anteriormente existentes e traduzidos para o meio eletrônico, mas de hipertextos, ou seja, textos especificamente gerados a partir da nova tecnologia e, na prática e por motivos de ordem principalmente econômica, impossíveis de serem obtidos por outros meios.
Não custa lembrar que, em futuro próximo e dado o crescente acúmulo de conhecimento, a efetivação de projetos de bibliotecas eletrônicas pode ser uma necessidade, já que as bibliotecas que abrigam o livro impresso enfrentam problemas crescentes de manutenção e atualização. A corrosão do papel por substâncias ácidas, por exemplo, vai aos poucos provocando deterioração de acervos importantes. O problema maior, contudo, diz respeito ao acúmulo crescente de informação que as boas bibliotecas deveriam tentar incorporar e que, em razão da alta velocidade com que aparecem, ficam impossibilitadas. Talvez este seja um dos preços da modernidade.
As alterações na forma de coletar e arquivar conhecimento vêm sendo freqüentemente percebidas, mas não em termos de uma ameaça ao livro escrito, esse, aparentemente, de acordo com os entrevistados não corre o risco de desaparecer diante das possibilidades oferecidas pelo meio eletrônico.
Sobre a leitura na internet há três comentários expressos por entrevistados e embora a maioria não tenha respondido diretamente, manifestaram de algum modo sua preferência pela leitura de livros/jornais, ou seja, pelo material impresso:
1.”Leio, mas prefiro o livro.”
2.”Nunca vai ser a mesma coisa.” [comparando ao livro]
3.”A literatura e o cinema permitem o fluir da imaginação, enquanto que a TV e a internet são excludentes e em nenhum momento vão suprimir a linguagem escrita.”
Uma forma de se conceber a história de leitura seria um relato da progressão cronológica das obras escritas num determinado contexto. Sabemos, no entanto, que a história da leitura avança para além do texto, abrangendo o estudo das instituições como a escola, os governos e suas políticas de leitura, as bibliotecas, os gabinetes de leitura, as associações de leitura, e a história do livro. Envolvendo também o estudo de técnicas e tecnologias relacionadas à leitura. Além disso, desde que se tornou um negócio altamente lucrativo, a leitura passou a beneficiar a sociedade capitalista, tornando-se, portanto, impossível ignorar a história da produção e do consumo do material impresso, isto é, do mercado editorial.
A história da leitura tem despertado grande interesse já há algum tempo. Em algumas escolas européias, já faz parte dos currículos escolares, que a adotaram como nova disciplina. No Brasil, trata-se de um tema novo que, por isso, necessita de estudos, tendo um campo de pesquisa muito amplo que, por um lado, pode ser vantajoso, mas por outro, dificulta a escolha dos aspectos a serem abordados.
A este propósito, Robert Darnton, em jornal australiano, sugere cinco maneiras para se recuperar a história da leitura:
1.investigar para descobrir o que as pessoas imaginavam ocorrer quando se lia, ou seja, os ideais e as suposições referentes à leitura no passado;
2.analisar o ensino e o modo em que se processava o seu aprendizado;
3.investigar os relatos sobre as leituras de algumas pessoas, suas preferências e reações;
4.estudar a teoria literária através da estética da recepção;
5.estudar a evolução do livro no tempo e no espaço.
O autor conclui seu artigo afirmando que mesmo escolhendo um desses cinco caminhos, o pesquisador pode correr o risco de não conseguir atingir no âmago do problema em questão. Porém, segundo ele, vale a pena, pois compreender como o homem tem lido pode levar-nos a entender melhor a vida.
No entanto, a carência de fontes escritas (livros, anais, monografias, artigos, etc.) referentes à história da leitura no Estado de Mato Grosso influenciou sobremaneira na escolha da metodologia adotada para efetivação da pesquisa. Em face dessa escassez de material sistematicamente elaborado, a solução encontrada a fim de dar prosseguimento ao estudo foi a realização de entrevistas feitas a cidadãos mato-grossenses, o que nos remeteu à necessidade de recorrer à história oral como parte de nossa metodologia de pesquisa. Para tanto, partimos do pressuposto de que um elemento destacado de nossa atividade é o leitor enquanto sujeito consciente de sua ação de ler (receptor e reavivador do material lido).
MARTINELLI (1999) afirma que ... o relato oral, e especificamente a técnica da história de vida, permitiu trazer fatos, sentimentos, registros da lembrança pessoal, privada, silenciosa para converter-se em experiência social.
Mais adiante, o mesmo autor declara:
A história de vida reflete o comportamento do indivíduo dentro de uma coletividade, ou grupo social, não reflete o comportamento da coletividade onde está inserido o narrador. Não é lícito, por uma história de vida, fazer generalizações ou conclusões abrangentes em relação à totalidade.
Por isso é que foram recolhidas entrevistas variadas, para recuperar a história oral de vida dos informantes para, ao compará-las, traçar um perfil que retratasse o passado da sociedade mato-grossense, com base empírica, mas não esquecendo a importância de se estabelecer uma relação dialética entre os diversos tipos de fontes, assim, legitimando nossa história contemporânea.
No que tange às representações sobre a sociedade, a menção mais freqüente a Cuiabá, suas escolas, sua sociedade, decorre do fato de a grande maioria dos sujeitos entrevistados serem cuiabanos, ou terem estudado, morado ou trabalhado em Cuiabá a maior parte de suas vidas, mas há várias ocorrências de diferentes lugares (interior do Estado de MT e outros).
Nestas representações apareceram, por exemplo, comentários que variaram entre o reconhecimento de uma cidade “isolada” ou “acanhada” culturalmente, referido por alguns entrevistados como um dos traços mais marcantes de Cuiabá, até a celebração da “pujança” e “variedade cultural” de uma cidade que mantinha contato freqüente com a cultura européia, via navegação fluvial, apontada por outros.
Num artigo sobre História e representação, Falcon (2000) tratou da etimologia do termo, citando o latim repraesentare, com dois sentidos: um de “fazer presente” e outro de “apresentar de novo”. Ao longo da Idade Média, tais significações adquiriram, aos poucos, novas conotações, ora teológicas e míticas, ora políticas. Neste levantamento, privilegiamos dois dos sentidos de representação abordados pelo autor: o sentido da objetivação e o sentido da psicologia social.
No sentido da objetivação, Falcon (2000: 46) afirma que:
Representar pressupõe uma atividade ou ‘faculdade‘ da consciência cognitiva em relação ao ‘mundo exterior‘: re-apresentar uma presença perceptiva ou re-apresentar como presente algo que não é diretamente dado aos sentidos. No primeiro caso, a representação é um conceito-chave da teoria do conhecimento (epistemologia), tal como esta se desenvolveu na filosofia ocidental, desde a Grécia até a modernidade, tendo como seu centro o logos, ou consciência racional (...) representar, nesse caso, remete a uma atividade do sujeito do conhecimento e a sua capacidade de ‘conhecer‘, isto é, de apreender um ‘real‘ verdadeiro para além das aparências de um ‘real‘ produzido pelo senso comum. No segundo caso, a representação é um conceito-chave da teoria do simbólico, uma vez que o objeto ausente é re-apresentado à consciência por intermédio de uma ‘imagem‘ ou símbolo, isto é, pertencente à categoria do signo. Essas duas acepções de ‘representar‘ correspondem, na verdade, a percursos intelectuais distintos no contexto da cultura ocidental, na medida em que esta tendeu, quase sempre, a privilegiar a primeira em detrimento da segunda, do ponto de vista do critério da ‘racionalidade‘. Como conseqüência, a ‘fantasia‘, a ‘imaginação‘, a ‘ficção‘ foram postas sob suspeita e, no limite, remetidas ao campo do ‘irracional‘. (Lima, 1984: 11-51, apud Falcon, 2000: 46.)
Já quanto à representação no sentido da psicologia social, Cardoso (2000:10) cita um modelo de S. Moscovici que compreende os dois processos: objetivação e ancoragem a valores cognitivos e funcionais. Sua noção pode medir o idealismo com o qual “criamos” ou “construímos” o mundo e aplicamos-lhe processos semióticos de derivação mental. Mas Cardoso (2000) acha que esta afirmação não estabelece um consenso, pois ela entra em conflito com o fato óbvio de que não criamos mundos, mas sim que estamos em um mundo físico e um mundo social que longe está de ter o seu conhecimento redutível a mero efeito de construções sígnicas.
Essa realidade existencial é construída culturalmente, como explica Chartier (1995): “A relação não é de dependência das estruturas mentais para com suas determinações sociais. As próprias representações do mundo social é que são os elementos constitutivos da realidade social”.
Na tentativa de uma abordagem histórica sobre o tema, Cardoso (2000:13) diz:
Uma vez abandonado por muitos historiadores o projeto de uma história total, diversos estudiosos formulam o problema das articulações entre escolhas intelectuais e posições sociais na escala de pequenos grupos ou mesmo de indivíduos. Para Chartier, trata-se da única escala em que, sem reducionismos deterministas, seja possível entender as relações entre, de um lado, sistemas de crenças, valores e representações e, de outro, filiações sociais.
Nas representações manifestadas pelos entrevistados da pesquisa HISLEIMAT, percebemos a primazia da sociedade cuiabana no status cultural de Mato Grosso, pelo fato da capital apresentar maior oferta de objetos culturais, além do fato anteriormente observado quanto à procedência da maior parte dos sujeitos que compuseram o corpus da pesquisa.
O conceito de representação de CHARTIER (1995) sugere que o social só faz sentido nas práticas culturais e as práticas e grupos só adquirem identidade nas configurações intelectuais que constroem, nos símbolos de uma realidade contraditória representada, etc. Em se tratando de psicologia social, muitas vezes, as representações estão ancoradas na “epistemologia do sentido comum”, no conhecimento vulgar, ainda que não estejam de todo ausentes das construções científicas.
Dizia Jean-François Sirinelli (1992):
A história cultural é aquela que destina a si mesma o estudo das formas de representação do mundo no interior de um grupo humano cuja natureza pode variar (nacional ou regional, social ou política), das quais analisa a gestação, a expressão e a transmissão.
Outro psicólogo social, P. Mannoni (1988: 119) afirma que:
As representações sociais são, ao mesmo tempo, elementos mentais constitutivos e conteúdos de pensamento muito importantes. Não existem representações sociais sem pensamento, mas não há pensamento sem representação social. Ora determinantes, ora determinadas, elas dirigem nossa vida psicológica e orientam, de maneira decisiva, nosso saber - aquele de sentido comum, pelo menos.
Estudiosos das questões sociais estabeleceram que os seres humanos tendem, individualmente ou em grupo, a efetuar escolhas que orientem suas ações, em dada situação ou conjuntura, podendo servir para uma inferência confiável das motivações envolvidas naqueles processos decisórios que orientem as ações dos sujeitos individuais ou coletivos.
Vê-se, assim, que a questão da representação não constitui apenas um debate erudito ou bizantino, pois é sempre a história que está no centro da discussão, uma vez que, de acordo com o que entendermos por representação, assim será também nosso conceito de história ou de discurso histórico.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

ABREU, M. (org.). Leitura, história e história da leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2000.

BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Rio de Janeiro:1995

CARDOSO, Ciro Flamarion e Jurandir Malerba (orgs.). Representações – contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas, Papirus, 2000.

CHARTIER, A. M., HÉBRARD, J. Discurso sobre a leitura (1880/1980). São Paulo: Ática, 1995.

DARTON, Robert. História da Leitura. In: BURKE, Peter. A escrita da História. São Paulo: EDUNESP, 1992.

FALCON, Francisco. História cultural: uma nova visão sobre a sociedade e a cultura. Rio de Janeiro, Campus, 2000.

MANGUEL, A. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997

 
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