Maria Angela Borges Salvadori - Universidade São
Francisco - USF
Os resultados parciais de pesquisa que são apresentados
neste texto fazem parte de um projeto que vem sendo desenvolvido junto
ao Programa de Mestrado em Educação da Universidade São
Francisco cuja temática básica envolve as relações
entre educação, trabalho e juventude, em especial nas décadas
de 1930 e 1940. O lugar privilegiado para a observação dessas
relações tem sido os Centros Ferroviários de Ensino
e Seleção Profissional (CFESP), escolas criadas a partir
de 1930 com a finalidade de formar os trabalhadores da ferrovia, particularmente
aqueles ligados às oficinas de reparo e manutenção
dos trens. Em relação às fontes, a pesquisa vem levantando
documentos, inicialmente, junto ao acervo documental da Companhia Paulista
de Estradas de Ferro sob a guarda do Museu Ferroviário de Jundiaí,
ligado à Secretaria de Educação daquele município;
são boletins publicados pelo CFESP, relatórios dos presidentes
das empresas, principalmente Paulista e Sorocabana, alguns materiais escolares
e um pequeno conjunto de imagens fotográficas.
As primeiras experiências de formação profissional
do ferroviário foram feitas na Oficina Mecânica instalada
em prédio anexo ao Liceu de Artes e Ofícios de São
Paulo, em 1924, já marcadas pela influência de uma geração
de engenheiros da Politécnica responsáveis pela divulgação
de idéias tayloristas no Brasil. Inicialmente, jovens trabalhadores
das ferrovias foram encaminhados para essa oficina. Os bons resultados
obtidos levaram à Companhia Sorocabana a instalar, em 1930, o primeiro
Curso de Ferroviários que abrangia a formação de
aprendizes ajustadores, torneiros frezadores, caldeireiros ferreiros e
eletricistas e tinha a duração de quatro anos nos quais
eram distribuídas, além das disciplinas específicas
destinadas à instrução profissional, aulas de português,
exercícios físicos e noções de higiene. Os
trabalhos práticos eram orientados pelas "séries metódicas",
conjuntos de desenhos de peças, organizados por graduação
de dificuldades, que deveriam conduzir a ação do aluno.
O pioneirismo da Sorocabana na organização dessas escolas
rapidamente se alastrou por outras empresas ferroviárias e, em
1934, esses Centros Ferroviários passaram a contar com o apoio
e o subsídio do governo do Estado de São Paulo.
Este objeto básico de pesquisa, contudo, abre muitas possibilidades
de análise, múltiplos questionamentos: estudar a história
dos Centros Ferroviários de Ensino e Seleção Profissional
significa retomar a história social do trabalho no Brasil na medida
em que tais escolas, divulgadoras dos processos de racionalização
da produção, foram certamente uma resposta das empresas
de transporte ferroviário à capacidade organizativa de seus
trabalhadores e, neste sentido, usaram a bandeira da profissionalização
técnica em oposição à formação
em serviço ou, como diziam seus idealizadores - particularmente
os engenheiros Roberto Mange e Ítalo Bologna -, substituíram
a instrução comum pela "instrução racional"
objetivando promover uma despolitização do jovem ferroviário
na medida em que foram apartados os espaços da formação
e do trabalho, rompendo a relação entre mestres e aprendizes
- professores e alunos - e substituídos os saberes oriundos da
convivência solidária pela instrução solitária
das séries metódicas (DE DECCA, 1983; ANTONACCI, 1993).
Neste sentido, essa educação profissional era um esforço
para a imposição de um esquecimento da identidade do trabalhador
ferroviário construída ao longo de décadas de luta.
Assim, parece ser possível pensar em processos educativos que apenas
aparentemente são contraditórios: a educação
era pensada como lugar privilegiado de construção da nação
(CARVALHO, 1998) e, neste sentido, lugar por excelência para a criação
de uma memória nacional; mas era também, no caso da educação
profissional implantada em moldes tayloristas, esforço para a supressão
de uma outra memória, bem menos unitária e homogênea
ligada às lutas operárias. Se educar era comemorar, rememorar
a pátria, aprender era também promover o esquecimento da
divergência e da dissidência. Olhar para as práticas
desses Centros Ferroviários de Ensino e Seleção Profissional
implica também em considerar as especificidades desta escola que,
claramente, não se confundia com as demais, de ensino "regular",
seja por seus conteúdos e organização curricular,
seja por seus objetivos mas que, ao mesmo tempo, chamava para si procedimentos
que estavam vinculados claramente à educação naquele
período: organização de classes homogêneas,
seleção de alunos, orientação vocacional,
seriação, exames, crença no papel regenerador da
educação, vinculação entre escola, educação,
higiene e saúde como vetores para a construção da
nação e, em especial para os objetivos desta pesquisa, a
inclusão dos conhecimentos produzidos pela psicologia experimental
então considerados alicerces de uma pedagogia científica.
Simultaneamente, os Centros eram também fábricas nas quais
os alunos, enquanto aprendiam, produziam peças que eram efetivamente
utilizadas na ferrovia e nas quais os símbolos do trabalho fabril
eram bastante evidentes: as máquinas, os uniformes de trabalho,
os logotipos das companhias, a distribuição dos espaços,
entre outros. E, ainda, estudar tais centros ajuda a pensar sobre os significados
sociais atribuídos à juventude ou, antes disso, o modo como
essa categoria foi pensada e construída naquele período,
particularmente com a influência dos saberes médico, biológico
e psicológico.
Tratar-se-á aqui, particularmente, de olhar mais atentamente quais
foram os padrões, critérios, idéias e práticas
que orientaram os Centros Ferroviários - seus médicos, engenheiros,
psicólogos, entre outros - para os processos de seleção
de candidatos a alunos e futuros ferroviários, o que implica em
enfrentar também a questão da juventude. Parte-se da hipótese
de que a psicologia educacional de matriz comportamental, a partir dos
anos 1920 principalmente, desempenhou um papel fundamental na construção
de diferenciações entre infância e juventude e, neste
processo, esta última foi caracterizada mais em função
de atributos supostamente quantificáveis, absolutos, que sociais.
Esta psicologia, segundo Foucault (2002: 133), tinha a "preocupação
de alinhar-se com as ciências da natureza e de encontrar no homem
um prolongamento das leis que regem os fenômenos naturais".
Daí que seus resultados, muitas vezes, sejam condensados e apresentados
em fórmulas matemáticas resultantes de um procedimento científico
caracterizado pela quantificação e pela verificação
experimental (FOUCAULT, 2002); daí, também, o título
desta comunicação posto que esta categorização
psicológica da juventude teve no corpo seu objeto e seu alvo de
intervenção, de modo a estabelecer a juventude mais como
etapa biológica de desenvolvimento do organismo que como experiência
social e historicamente constituída. Todavia, esse processo não
é desprovido, evidentemente, de contradições pois
os esforços para a implantação de dispositivos disciplinares
que incidem sobre o corpo implicam o reconhecimento, ainda que sutil,
de sua possibilidade de rebeldia, como tão bem explicou Foucault
(1999) a partir dos termos "estratégia" e "tática";
as relações de poder são inseparáveis das
resistências.
A experiência de seleção de futuros alunos nos Centros
Ferroviários de Ensino e Seleção Profissional indica
que a psicologia, ou uma certa psicologia de forte influência nos
meios educacionais e escolares naquele período, e a psicometria
promoveram uma leitura da juventude - de modo especial da juventude operária,
já que assim podemos chamar esses jovens que prematuramente, logo
após o término da escola primária, com cerca de 13
anos, precocemente ingressavam no mundo do trabalho, ainda que pela porta
da escola - que buscava individualizar a experiência e desqualificar
o sujeito a partir de sua sujeição a todo um sistema de
classificação cujos critérios lhe eram exteriores
ou alheios, porém impostos como verdadeiros já que oriundos
de conhecimentos científicos. O que se observa é a valorização
do diagnóstico do especialista - o médico, o psicólogo
e o engenheiro - nos processos de recrutamento de futuros alunos em detrimento
da vontade do sujeito, da sua escolha, o que significa pensar em estratégias
de poder muito próprias `a modernidade que, pautadas por um padrão
iluminista de ciência e de racionalidade, justificam-se e ganham
legitimidade. Assim, o princípio dessa nova formação
era o apagamento da condição do trabalhador ferroviário
em relação ao seu pertencimento a um grupo e um esforço
por dar-lhe uma nova identidade que, construída a partir do ingresso
nos CFESP, se vinculava mais a atributos e qualidades individuais - dimensão
do tórax, habilidades motoras, acuidade visual, rapidez de gestos,
aspectos do desenvolvimento mental e emotivo, desenvoltura no tratamento
com a séries metódicas - do que por uma experiência
social compartilhada. Esta "sujeição do sujeito"
buscava operar desde os processos de escolha dos futuros alunos até
os cursos de aperfeiçoamento mantidos pela instituição.
Esta perspectiva fica bastante clara nas falas daqueles que defendem a
seleção e a orientação profissional como condições
fundamentais para a felicidade do indivíduo, da família
e da pátria, instrumento objetivo para a resolução
dos problemas sociais. Num artigo publicado em 1934 na Revista de Educação,
Juventina Santana discutia a importância dos exames psicológico
e médico enquanto instrumentos capazes de impedir que os jovens
se tornassem tanto "perigo social" quanto prejudiciais a si
mesmos. Assim, os testes oriundos da psicologia experimental garantiriam
a verificação objetiva de capacidades e aptidões,
evitando que, no futuro, o adulto trocasse constantemente de profissão
ou fosse "desencorajado por fracassos sucessivos" provocados
pela escolha de uma profissão cujas exigências estariam para
além de suas capacidades. Os testes de inteligência, neste
sentido, são fundamentais para a determinação tanto
da duração da vida escolar do aluno quanto da modalidade
educacional para a qual ele deve ser encaminhado. Aliado ao exame psicológico,
encontra-se o exame médico a partir do qual são obtidas
informações fundamentais para a orientação
e escolha profissional relativas à adequação física
e fisiológica do indivíduo à profissão pretendida.
Por último, Juventina trata das questões relativas à
"higiene mental":
" Comumente, vemos indivíduos revoltados contra
seu mister do qual se desgostam por não terem eles próprios,
ou seus pais ou responsáveis pela sua educação ou
orientação, obedecido às suas tendências naturais.
Dado o choque entre as aptidões do indivíduo e o trabalho
que exerce e que não pode abandonar, por não possuir outro
meio de vida, o seu temperamento vai se tornando irascível. Isto
faz com que a pessoa caminhe a passos largos para o esgotamento nervoso
que, num crescendo, lhe acarretará a ruína orgânica
e malefícios para a família, chegando mesmo a levá-lo
à psicopatia declarada. É este um dos pontos em que a Orientação
Profissional tem entrelaçamento íntimo com a Higiene Mental.
A Orientação Profissional visa, portanto, robustecer as
funções psíquicas antes que arruiná-las. Com
a higidez psíquica vem a higidez corporal, uma na dependência
da outra. Um erro na escolha da profissão pode, muitas vezes, conduzir
o indivíduo ao crime, freqüentemente através da vadiagem"
(SANTANA, 1934: 56).
Assim, a psicologia, a medicina e a higiene aparecem como
saberes capazes de explicar cientificamente, de modo neutro, imparcial
e inquestionável, portanto, os conflitos sociais; elas transformam
o sentido da vontade: a resistência , via rebeldia e recusa, deixa
de ser expressão de uma escolha, deixa de ser possibilidade de
conduzir-se como sujeito e passa a ser resultado, inadaptação.
O problema social não era mais "caso de polícia"
e sim de saúde pública. Era esse também o teor de
outros textos publicados na Revista de Educação: Aristides
Ricardo, em 1939, criticava o ingresso numa profissão feito a partir
da "influência" , sempre considerada perversa, de pais
e/ou amigos movidos por fatores emotivos. Tal escolha deveria ser feita,
antes, por medidas objetivas que considerassem as aptidões naturais
demostradas pelas crianças e adolescentes (RICARDO, 1939); Frontino
Brasil, diretor de escola pública em Sorocaba, escrevia sobre uma
"nova era, cheia de paz" que estaria à espera dos "nossos
obreiros ora sacudidos por constantes agitações cujos prejuízos
fácil é aquilatar" desde que obedecidos os critérios
de organização racional do trabalho que começavam
pela seleção racional do futuro operário (BRASIL,
1939).
Estes conhecimentos e pressupostos foram amplamente utilizados nos Centros
Ferroviários de Ensino e Seleção Profissional do
Estado de São Paulo que possuíam seções e
departamentos específicos de psicometria e medicina; por várias
vezes, aparecem como temas de publicações endógenas
e/ou partes de balanços e relatórios das diferentes companhias
ferroviárias paulistas. Em 1942, por exemplo, o boletim n.º
10 do CFESP traz o trabalho da professora Lourdes de Campos Viégas
a respeito de medidas antropométricas e índices de robustez,
elaborado na Seção de Psicotécnica juntamente com
a inspetoria médica. A professora inicia seu estudo explicando
que o ingresso de alunos estava condicionado à idade - entre 14
e 16 anos - e à aprovação nas quatro etapas do processo
seletivo: prova de conhecimentos gerais (pois os aspirantes a alunos deveriam
saber ler, escrever e realizar as quatro operações básicas),
exame médico, provas psicotécnicas de aptidão e verificações
"caracteriológicas e sociais" (VIÉGAS, 1942: 3).
Seu objetivo específico, contudo, é determinar um padrão
antropométrico e fixar um índice de robustez que seja adequado
ao futuro trabalhador ferroviário e, para isso, a autora trabalha
com as variáveis idade, altura, peso e perímetro torácico,
tecendo comparações entre os padrões dos candidatos
que se apresentam aos CFESP e jovens de outras partes do mundo, especificamente
Bélgica, França, Suécia, América do Norte
e "Lisboa" (sic), apontando a existência de condicionantes
relativas ao clima, à raça e às "próprias
diferenças de ordem social" no que se refere à constituição
de padrões antropométricos (VIÉGAS, 1942: 6) que,
todavia, não impedem a definição de um índice
que possa ser usado como parâmetro para a inclusão ou recusa
de um candidato. Para as medidas antropométricas, são estabelecidas
cinco categorias: normal ou média, de transição superior
ou inferior e extremas (excepcionais superior ou inferior) (VIÉGAS,
1942: 22). No caso da definição do padrão de robustez,
há uma discussão sobre o "índice de Pignet",
calculado pela fórmula "altura - peso + perímetro torácico"
, e o "índice ponderal" para o qual é preciso
"extrair a raiz cúbica do peso para transformá-la em
valor comparável à altura". Em ambos os instrumentos
de medida, altura e peso são determinantes, porém, no índice
ponderal o perímetro torácico é deixado de lado,
razão pela qual a autora parece preferí-lo ao outro. Como
se vê, parte do processo de seleção de seleção
dos futuros alunos, depois trabalhadores, passava pela submissão
a instrumentos de medição que incidiam sobre o corpo determinando-lhe
padrões de normalidade a partir da ordenação de saberes
técnicos que, evidentemente, eram estranhos aos próprios
jovens.
O Serviço de Psicotécnica do CFESP trabalhada com uma grande
quantidade de testes e aptidão ligados à inteligência,
memória, percepção de formas, senso técnico,
acuidade dos sentidos, habilidades, coordenação e orientação
dos movimentos, entre outros, a partir dos quais era estabelecido o perfil
psicotécnico do aluno, com a atribuição de notas
que variavam de zero a dez. As fichas gerais dos alunos continham ainda
um "resumo da ficha médica", um "resumo da ficha
social", inclusive com informações sobre os pais e
espaços para outras observações. Ítalo Bologna,
inclusive, ao falar sobre o trabalho de seleção de jovens
no CFESP ressalta a importância dessa "investigação
social" assimilando um vocabulário muito próximo àquele
usado pela polícia e indicando uma criminalização
das classes populares (BOLOGNA, 1942).
Essa idéia de perigo associada à juventude operária
também aparece na fala de Raul Briquet durante a Quinta Conferência
de Educação realizada em Niterói, em 1932. Briquet,
um dos pioneiros da psicologia social no Brasil, médico por formação
e signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova (BOMFIM, 2004), afirmava que o início da adolescência
se dava aos doze anos e terminava aos dezoito, tratando esta etapa também
pelo adjetivo "juvenil" . Segundo ele, essa era a fase na qual
surgiam "sentimentos e impulsos"; os jovens eram vistos por
ele como sendo "superlativos", conduzidos pela lei do tudo ou
nada; desprovidos do senso de medida, submetidos a "crises de antagonismo",
"tudo é arrebatamento, sofreguidão, excesso de vigor
físico e mental" ou, no outro extremo, "apatia".
Cabia ao adulto, para Briquet, fazer esta idade da tormenta chegar ao
equilíbrio que deveria reger a vida adulta saudável (BRIQUET,
1933) e tudo indica que a educação profissional dos jovens
foi um dos caminhos pelos quais se considerou ser possível conduzir
o jovem a esta estado de equilíbrio, tentando subtrair-lhe, precocemente
no caso dos CFESP, as possibilidades de contestação e mudança.
Lembro-me, aqui, das primeiras falas de Benjamin sobre a noção
de experiência, em 1913, quando era ainda bem jovem, portanto, e
afirmava ser a experiência uma "máscara do adulto",
"inexpressiva", "impenetrável", sempre a mesma.
Neste texto, Benjamin diz que dois tipos de pedagogos se debruçam
sobre os jovens: uns, cheios de experiências, complacentemente esperam
que os arroubos juvenis sejam aniquilados pelas responsabilidades impostas
pela vida adulta; outros, segundo ele ainda mais cruéis, "querem
nos empurrar desde já para a escravidão da vida" (BENJAMIN,
2002: 22). Nos anos 1930, a proposta de formação profissional
conduzida pelo CFESP pareceu aproximar-se mais desta segunda opção.
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