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  LITERATURA E HISTÓRIA: A CRIANÇA E OS MISTÉRIOS DA EXISTÊNCIA NA HERANÇA AFRICANA NO BRASIL

Mônica Regina Ferreira Lins - Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

“A Cosmovisão Africana não surge fora do espaço e do tempo. Pelo contrário, é analisando a história da África que podemos identificar sua dinâmica civilizatória e a formação de sua Cosmovisão. A África, entretanto, é um continente grande demais e múltiplo em demasia em suas expressões culturais”.
Eduardo Oliveira

O ano de 2003 traz uma importante novidade para a legislação educacional brasileira, a Lei Nº 10.639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira, na forma do artigo 26 A acrescido a Lei Nº 9394/96 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). No rastro das políticas públicas de reparação e ação afirmativa, trata-se de um marco na história das leis educacionais no Brasil e dá tratamento no campo curricular a uma demanda histórica do movimento negro.
Ainda é cedo para avaliarmos a repercussão desta legislação nas práticas escolares e na formação dos professores, entretanto, esta representa um avanço, do ponto de vista institucional, na direção de uma escola como palco de construção de identidades individuais e sociais contempladas pela diversidade de contribuições históricas de uma sociedade multicultural e pluriétnica. Em que pese, ainda, o considerável desconhecimento da referido artigo da LDBEN em amplos setores do meio educacional, já se reproduzem iniciativas em território nacional de experiências educacionais voltadas para a ruptura com uma transmissão da cultura nacional de forma universalizante e homogeneizadora, como em Campinas (SP), o CEAFRO em Salvador (BA), Belo Horizonte (MG), Macaé (RJ). Partindo desta perspectiva o presente texto buscará refletir sobre a Escola como instituição privilegiada para um outro tipo de sociabilidade de crianças e jovens constituída à luz da diversidade das experiências humanas.
Historicamente a escola vem produzindo crianças “mudas e telepáticas” e ao tomar emprestadas as palavras do poema de Vinicius e tema deste Congresso, faz-se necessário ouvir esse silêncio. Que vozes vêm sendo caladas? Que culturas vêm sendo silenciadas? Como o “eu” da criança negra é construído a partir da reprodução de uma monocultura branca? Como a identidade individual e social enquanto construção se firma sem a presença do outro?
São perguntas que indicarão caminhos que serão percorridos por este texto. Stuart Hall (2003) defende que a natureza de toda a identidade é hibridizada e caracteriza a África como elemento que sobreviveu à diáspora. O povo africano que espalhou-se em vários territórios vive no exílio a tentativa de preservar uma identidade cultural e tem um forte senso do que é a “terra de origem” , embora esta não seja mais a sua única fonte de identificação (2003).
Entendemos a literatura como prática social, carregada de historicidade, nela encontramos o que Hall chama uma de “narrativa da nação” :

“... tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Essas fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação.. .” (1997: 52)

As propostas de leituras realizadas pela escola podem contribuir para a fixação de um determinado discurso de “brasilidade”. Para Hall a cultura nacional é um discurso composto por instituições culturais, símbolos e discursos. Assim no Brasil especificamente, tivemos construída historicamente a estratégia de perpetuar determinadas tradições e de inventar outras . A difusão da tese de que os povos indígenas e africanos foram formados em suas origens por um único povo e a ação de tatuar nas percepções de nossas crianças e jovens a superioridade da cultura européia, e a centralidade desta em nossa formação vem cumprindo um papel de fundar um determinado tipo de identidade.
A literatura infantil formou-se como um gênero textual que cumpria um papel de delinear uma determinada concepção de infância no século XVII e, principalmente, no século XVIII, no processo de consolidação da burguesia. Lajolo e Zilberman nos indicam como o surgimento deste gênero dirigido à infância teve como uma de suas características o modo como o adulto queria que a criança visse o mundo e “Dessa maneira, o escritor, invariavelmente um adulto, transmite a seu leitor um projeto para a realidade histórica, buscando a adesão afetiva e/ou intelectual daquele” (2004: 19). Segundo as autoras houve no Brasil uma adesão ao projeto educativo e ideológico europeu que entendia a escola e a literatura como aliados fundamentais na formação de cidadãos e inspirou uma literatura infantil patriótica e ufanista. A omissão da representação dos vários brasis explica-se pelo contexto histórico da época e pelo projeto de nação que estava sendo gestado, permeado pela idéia de progresso do projeto modernizante burguês
Em Os Meses, do livro Poesias Infantis de Olavo Bilac, temos um exemplo dos valores que permeavam a construção da memória nacional, nele as datas comemorativas de cada mês são apresentadas em reforço a um determinado modelo de civismo. Na escolha do que deveria ser lembrado no mês de maio e a Abolição da Escravatura são representados da seguinte forma:

Treze de maio! A desgraça
Findou de todo uma raça!
- Aos beijos dando-se as mãos
Os brasileiros se uniram, e o
cativeiro aboliram,
Ficando todos irmãos

Hall (1999) afirma que raça é uma categoria discursiva e não biológica. O conceito de raça, baseado nas teorias evolucionistas e deterministas, norteou a ideologia da superioridade racial durante décadas e formatou uma política de identidade, discursos e práticas sociais que deixam marcas até hoje. O poema define o 13 maio como o evento que pôs fim à escravidão, embora esse processo tenha sido muito mais complexo, tenha iniciado bem antes de 1988 e revelado outros heróis, além de não ter selado a paz, tornando todos irmãos, como afirmava Bilac e a tradição inventada. Ao resgatar os heróis proscritos, que durante décadas foram entregues ao esquecimento, reabilita-se o passado, desta forma surge em contraposição e em reparação aos anos de história silenciada a comemoração do Dia da Consciência Negra e a elevação de Zumbi dos Palmares a condição de herói.
Com o objetivo de pensar para as séries iniciais a Literatura como “lugar de memória’ e como fonte histórica, faz-se necessário indicar a valorização cultural de nossas origens africanas, das lembranças dos antepassados oriundos da África, como uma forma de luta contra o racismo. A memória representa também a escolha do que queremos lembrar. O que ficou marcado em nossas lembranças, é um elemento da identidade, da percepção de si e do outro e a literatura infantil e de variados tipos de texto pode contribuir para a formação da auto-imagem da criança.
Em “Deixei o meu Coração embaixo da Carteira” Yvone Costa de Souza conta-nos suas lembranças de experiências em que sentiu na pele o racismo, dos passeios felizes com a mãe e a irmã:

“Toda prosa, lá íamos nós , com nossas bonecas brancas nos seus carrinhos felizes da vida.
E de novo ouvíamos os meninos da vila sentados na calçada, caindo na risada e cantando: ‘Lá vem as Luluzinhas pretas!...’ Era horrível, tão constrangedor e humilhante, que até hoje não me esqueço o quanto isto me deixava triste e envergonhada. É claro que respondia aos meninos, com uma resposta ‘bem dada’ ensinada pela minha tia-avó. Mas mesmo esta defesa não pôde impedir a marca discriminatória que ficou.
Os adultos que tentavam orientar esta situação. Principalmente meus pais, diziam que os meninos” não sabiam o que estavam falando” e que “queriam implicar.”. ” ( 2002: 16 )

Em “Tear africano”, livro de contos, baseado em sua maioria em “fatos reais colhidos das vivências históricas de um povo, emigrante forçado do Continente Africano e migrante na sociedade brasileira” (2004: 7) Henrique Cunha Junior traz a bagagem africana de saberes variados e um depoimento nas Palavras Introdutórias:

“Considero ter nascido em berço esplêndido. De família, porém digna, sou afortunado por ter mãe e pai conscientes de nossas africanidades. Tive um teto, comida todos os dias e educação. Não sofri, e, quando a sociedade tentou, sempre tive proteção da família, dos amigos, das nossas histórias, do nosso jeito de poder viver. Nasci em meio a conhecedores da identidade cultural. Sou produto de um movimento negro que desfilava todos os dias na minha casa, que persistia na família desde os meus avós - que produzia protestos, poesias, declamações e falava sempre de nós. Aprendi que a grandeza de cada um é a grandeza coletiva. E a pequenez também. Que onde há fome e racismo não existe igualdade e dignidade humana, muito menos justiça”. (2004: 8-9)

Nos dois relatos a marca da família, mas, e a escola que marcas deixa em nossa identidade?
A escola não pode prescindir da leitura e da palavra. Bakhtin traz a palavra como arena das contradições, nos ditos e os não ditos da sala de aula encontramos valores sociais que se confrontam. Durante décadas a escola tem sido reprodutora das verdades de uns e suprime a fala de outros. Enquanto expressão de uma cultura monológica apaga vozes e pontos de vistas.
A partir do relato de três experiências diferentes que vivi e do lugar social de professora desenvolverei esta abordagem, procuro refletir sobre as práticas implementadas pela escola que renuncia visões de mundo diferentes e favorece o eurocentrismo e o etnocentrismo dominante. Nos discursos universalistas, no criacionismo como profissão de fé, visualiza-se as práticas que reforçam o preconceito devastador que deixa marcas difíceis de serem escondidas. A escola, ainda, se faz reprodutora da ideologia do “embranquecimento”, do mito da democracia racial e da mestiçagem.
Por fim, na terceira experiência um exercício de contar histórias com e para as crianças, que não apaguem os vestígios de outras identidades, que reconheça as diferenças e semelhanças de diferentes visões de mundo. E pela leitura de diferentes tipos de texto, desmontar esteriótipos e oferecer ao leitor o papel de construtor ativo.

Três escolas, muitos olhares – vozes que silenciam, silêncios que gritam.

No morro Zé silencia: “Minha mãe é macumbeira”


Começo em 1999, num Morro da Zona Norte , região que no passado servira de refúgio para negros que fugiam do trabalho escravo, numa escola marcada pela violência do tráfico. Não havia recreio, somente 15 minutos para a merenda, da fila entravam no refeitório e do refeitório para a fila. Professores, disciplinadores da ordem e do espaço não podiam permitir que mais de dois alunos fossem ao banheiro e turmas diferentes não podiam se encontrar, pois havia risco de briga motivada pelas diferentes adesões às facções do tráfico e até os poucos profissionais que tinham carros não podiam guardá-los dentro da escola. Cheguei nesta escola já no 2º semestre, voltando de licença-maternidade e de licença para aleitamento. Suponho que por ser na época dirigente sindical fui “cirurgicamente” lotada numa turma que havia amargado três desistências de professores, uma delas havia pedido exoneração, fato contado em tom de comemoração pelos alunos. A turma era de alunos, quase todos negros, que tinham entre 8 a 17 anos e ainda não eram alfabetizados.
Dos muitos casos que teria para contar, e professores da rede pública têm um repertório recheado de histórias contundentes, passo a narrar a história de Zé. Arredio, foi quem primeiro manifestou a sua descrença com a minha presença à frente daquela turma e com o seu olhar construía uma redoma em torno de si para se proteger de mim. No início, não cumpria nenhuma tarefa, não dava nenhuma opinião, brigava o tempo todo e sempre que era confrontado quebrava o lápis do seu opositor. Certa vez topou construir um cenário em argila para uma contação de histórias que seu grupo faria e pela primeira vez dirigiu-se a mim para dizer: “Eu não gosto de você porque você vai fazer igual às outras: vai nos abandonar.”. Aproveitei aquela revelação para me aproximar dele, protegê-lo e ser protegida por ele, pois cada coração conquistado representava uma chance a mais de êxito naquela difícil tarefa.
Zé mostrou que o ”chão da escola” pode ser muito duro e frio. Suas imposições são como cárceres de idéias e sentimentos. Havia um dia que a sua agressividade era mais evidente, dia da “aula de religião” , ministrada por uma fiel de uma igreja evangélica do morro. Desde o início me opus àquela prática e dizia a meus alunos que eles não eram obrigados a assistir e que poderiam ficar comigo, porém, os que me acompanhavam eram novamente “devolvidos” à sala para a dita aula, com a justificativa de que tal procedimento era necessário para evitar brigas com os alunos de outras turmas que estivessem no refeitório. Será que o objetivo não seria evidenciar a hierarquia de mando e disciplinar uma voz destoante? Os argumentos a favor de tal concepção eram variados: “os nossos alunos são muito violentos e a aula de religião pode acalmá-los” ou “Eu também sou contra, mas é o único horário que temos para respirar”. Em resposta à minha oposição àquela prática homogeneizante de visão de mundo instituída, a pauta do Centro de Estudos geral da escola que discutiria a implementação da proposta curricular do município foi substituída por uma palestra de membros de uma Igreja Messiânica, que também nos ensinaram a fazer arranjos de flores. Em seguida os encontros coletivos dos professores foram transformados em encontros por séries, assim, a minha reunião de estudos restringia-se a dois únicos professores. Percebi que o Zé não estava sozinho.
Sua mudança de comportamento era significativa nos dias da dita “aula de religião”, quando a religiosa entrava em sala sentia-se motivado a chutar as mesas. Perguntei-lhe o porquê de tanta revolta e recebi a seguinte resposta: “Eu tenho vergonha. Eu moro no centro de macumba da minha mãe e ela sempre fala que isso é do demônio”. Resolvi, então, ficar para assistir, o que, a princípio, deixou a evangélica muito feliz, pois acreditava que ficaria ali para garantir-lhe a ordem e os bons costumes durante o seu culto. Compartilhei com Zé e outros alunos não apenas o desconforto, mas a indignação com aquela prática excludente em território público que é a escola. Em altos brados iniciou o que chamou de oração e disparando profecias apresentava um Deus ameaçador, que puniria vigorosamente os adoradores de imagem e aqueles que cultuavam o demônio: “os macumbeiros verão satanás”.
Dirigia-se ao Zé chamando-o para a busca do Reino dos Céus, o seu foco principal era a conversão daquela criança negra, que aos 11 anos de idade ainda não sabia ler e escrever, criado dentro de uma religião de matriz africana, encarcerado dentro da própria escola e sob a vigilância de facções do crime organizado em sua comunidade, pouco sorria e represava seus sentimentos. Dizia que não gostava de ninguém e logo em seguida caía em silêncio. Era um silêncio que me dizia muitas coisas.
Impedida de debater aquela e outras graves questões do cotidiano escolar com o coletivo da escola, decidi que na minha sala de aula não haveria mais aquele exercício de intolerância e que a promoção da paz entre eles seria promovida com uma estratégia diferente daquela que encontrei instituída e acordada. Fomos jogar futebol, líamos sobre futebol, contávamos histórias de futebol, produzíamos textos sobre futebol. Como só havia um professor de Educação Física, nem todas as turmas tinham aulas e a minha era uma delas. Só o fato de poderem sair de dentro refeitório para o pátio já lhes dava sensação de liberdade. E o Zé sorria.

Num morro da Zona Sul uma voz pergunta: “A África fica aqui ?”

Haiti
letra: Caetano Veloso
música: Gilberto Gil

Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque com a pureza de meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

A experiência que passo a relatar aconteceu em 2004, numa escola situada num morro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Das janelas da escola a vista para o mar. A beleza da paisagem carioca contrastava com as paredes pichadas, portas e janelas quebradas. Os quadros brancos, da cara manutenção, mal podiam ser utilizados, pois faltavam canetas. O cheiro dos banheiros impregnava o refeitório. Boa parte das salas não tinham murais e/ou portas. A sala de leitura era minúscula, mal iluminada, calorenta, não cabia uma turma inteira e os livros empoeirados, ficavam esquecidos nas estantes. Sem ter profissional responsável pela sala de leitura, o seu uso restringia-se apenas a projeção de vídeos, atividade sempre prejudicada pelo som baixo da televisão, pelo fato da sala ser vazada, como outras, de ter péssima acústica e nela ouvirmos todo o barulho circulante na escola. A copiadora não funcionava, sem folhas de papel, ou mesmo livro didático, tínhamos que sobreviver ao deserto de recursos materiais e estruturais.
Faltavam aos quadros funcionais da escola: professores, inspetores, merendeiras, agentes educadores de secretaria, coordenador pedagógico. Várias turmas de 5ª a 8ª série chegavam a ter 60 alunos na freqüência, embora a freqüência diária por turma girasse em torno de 15 alunos presentes.
Vivenciando uma violenta disputa pelo controle do tráfico, aquela comunidade freqüentava as manchetes principais de todos os jornais cariocas e dos telejornais de todas as emissoras de TV e via-se ameaçada pela invasão da facção criminosa do morro vizinho e pela ocupação da polícia militar. Os relatos eram os mais variados:


“ Eu não estou vindo à escola porque a gente tem que defender o morro.”

“Minha mãe perdeu o emprego. Ninguém quer contratar gente que mora aqui, porque quando a guerra começa não dá pra descer o morro.”

“Aqui quem fala demais morre e a gente tem que jogar bola com a cabeça do traidor.”

“Tá certo, a dona do asfalto morreu porque acelerou o carro. Mas, foi legal o carro dela estava cheio de caixas de bombom e o ( ...). mandou distribuir para gente. Ah! Mas, os cigarros ficaram com os “soldados” que estão na mata.”

Aqui, já como professora de história, lecionava na 5ª, 6ª, 7ª e 8ª séries, uma turma em cada série. Em cada uma delas histórias de vida surpreendentes, de adolescentes que ainda não haviam ingressado na vida adulta, mas já viviam as múltiplas facetas de uma guerra cotidiana, que dava os contornos de sociabilidade a vida daqueles que deveriam estar protegidos, como afirma a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Destacarei alguns exemplos de como a auto-imagem desses jovens e a imagem do outro se apresentava em nossas aulas. A naturalização do preconceito atravessava as relações pessoais entre eles e professores, para se instalar nas interpretações de conceitos e fatos históricos.
Em todas as turmas a troca de apelidos pejorativos envolvendo aspectos físicos, cor de pele, opção sexual, manifestações da sexualidade feminina, ou mesmo a carência material das famílias de muitos, destruía a auto-estima de uns, estimulava a agressividade em outros, silenciava e aterrorizava muitos alunos, que preferiam mergulhar no anonimato, não falar nada para serem esquecidos.
Teria muito a narrar sobre nossas discussões na 8ª série sobre as guerras mundiais, o holocausto, o nazi-fascismo, e o incrível interesse e associações que estabeleciam com a guerra do tráfico. As discussões na 5ª série sobre o belo e sobre a mitologia grega. Com a história dos Jogos Olímpicos trouxe para a discussão toda a simbologia da vitória de Jesse Owens em 1936. Com Owens, o “Antílope do Ébano”, neto de escravos, Hitler amargou o fracasso de sua tentativa de provar ao mundo a superioridade da raça ariana, da raça pura, após ter criado um cenário espetacular, grandioso, esperava coroar o alemão Lutz Long, este, no entanto, é vencido pelo negro americano, que levou outras 3 medalhas. Hitler recusou-se a cumprimentá-lo, assim como o presidente americano também não recebeu o maior atleta dos jogos e a imprensa alemã da época noticiou a vitória de Owens, dando destaque para Long, como o “vencedor da raça branca”. A mais nova de todos pergunta: “ É por isso que nós chamamos os traidores e gente que vem de fora de alemão?”.
Se as apropriações dos eventos históricos parecem ser imediamente transportadas por eles para as experiências vividas no presente, pergunto: Como determinados laços simbólicos de racismo e preconceito aparecem nos discursos dos alunos quando discutimos aspectos históricos da África na 6ª série e escravismo na 7ª série? Que instituições foram promotoras do discurso racista entre aqueles adolescentes que compunham uma maioria de negros? Que papel histórico o currículo cumpriu? Que histórias infantis deixaram de ser lidas para eles?
Importava demonstrar a eles que não havia uma só África e aqueles que aqui vieram contribuíram de forma especial para formação sócioespacial de nossos vários brasis, e trouxeram em suas memórias um patrimônio cultural material e imaterial essencial da cultura brasileira. Nas primeiras vezes que falei de África com eles impressionei-me com as gargalhadas que davam cada vez que a palavra África era proferida. Os dois meninos que exerciam liderança sobre a turma atendiam pelas alcunhas de “Cheiroso” e “Mindingo”(sic!), eram negros, porém voltavam-se para um menino mais negro que eles e bradavam bem alto que ele vinha da África, provocando risos na turma, enquanto os adolescentes negros se chamavam uns aos outros de “macaco africano”, “urubu”, “cabelo de bombril”, “neguinha do morro”, desfilando uma coletânea de agressões verbais intensamente racistas.
“Cheiroso” adorava cantar o chamados “proibidões” do funk, com apelos eróticos, machistas e de apologia ao crime, mas também gostava de Racionais Mc’s e de suas músicas de denúncias da condição do povo pobre e negro, da violência policial, das diferenças do modo de viver das classes sociais dentre outras temáticas sociais. Perguntado sobre a sua simpatia pelo grupo de Rap ele disse: “Eles falam da vida da gente da favela”.
Vejamos um trecho da música Negro Drama, composta pelos Racionais Mc’s

NEGRO DRAMA,
Entre o sucesso, e a lama,
Dinheiro, problemas,
Inveja, luxo, fama,

NEGRO DRAMA,
Cabelo crespo,
E a pele escura,
A ferida a chaga,
A procura da cura,

NEGRO DRAMA,
Tenta vê,
E não vê nada,
A não ser uma estrela,
Longe meio ofuscada,

Acredito serem muito tênues as fronteiras de compreensão que “Cheiroso” estabelece entre a opressão contida nas letras dos “proibidões” e o protesto contra a exploração e a exclusão social das letras, muitas vezes melancólico, de hip hop e rap.
Em relação ao período de escravidão com os alunos de 7ª série já traziam determinados esteriótipos construídos. As idéias sobre a inferioridade do negro e de que estes seriam pessoas dóceis, aptas para o trabalho manual, acomodadas diante do castigo físico implementado por um sistema violento e cruel. Além das frases chaves do senso comum: “ Os negros são os mais preconceituosos. Os jogadores negros e ricos, só gostam de mulher loura.”
Precisávamos tirar o foco exclusivo do açoite, para também estudar como se manifestou a resistência dos negros à escravidão, suas negociações com o sistema e qual a importância daquela resistência para a configuração da história brasileira. A resistência dos quilombos e das irmandades, a preservação cultural de uma população que teve que se reinventar no cotidiano. De um lado o desafio de construir uma imagem positiva do povo negro, e de outro, a necessidade de percepção do passado escravista como um dos nexos de compreensão histórica do presente, palco de desigualdades sociais.
Um aluno, uma voz que se levanta ao fundo pergunta: “A África fica aqui?”.
Na voz do poeta a constatação de que “ninguém é cidadão” e de que o “O Haiti é aqui”
Na favela, as vozes que não tem vez, no rap dos Racionais Mc’s:

“[...]O drama da Cadeia e Favela,
Tumulo, sangue,
Sirene, choros e vela,
[...]Olha quem morre,
Então veja você quem mata,
Recebe o mérito, a farda,
Que pratica o mal,

E vê ,
Pobre, preso ou morto,

Já é cultural,
Histórias, registros,
Escritos,
Não é conto,
Nem fabula,
Lenda ou mito,
Um brinde pra mim,
Sou exemplo, de vitórias,
Trajetos e Glorias,

[...]O dinheiro tira um homem da miséria,
Mais não pode arrancar,
De dentro dele,
A Favela,

São poucos,
Que entram em campo pra vencer,
A alma guarda,
O que a mente tenta esquecer,
[...]E um Pretinho,
Seu caderno era um Fuzil,

Um Fuzil,
NEGRO DRAMA,

Segundo Marco Aurélio Luz as favelas seriam “verdadeiros quilombos que abrigam imigrantes do êxodo rural” (2002: 94), boa parte delas situadas nas montanhas que atravessam o Rio de Janeiro, outras surgiram fruto dos ataques do governo de Carlos Lacerda, que esvaziou os bairros negros da presença da tradição africana, deslocando seus habitantes para os bairros periféricos.

Lendo as muitas histórias que se espalham pelo mundo: a herança de muitas vozes, múltiplas origens.

“Raro é o sonho que começa e acaba na mesma noite.
A verdade não está num só, mas em muitos sonhos...“
(provérbio africano)

A experiência agora relatada desenvolveu-se em 2004 no Colégio de Aplicação da UERJ com turmas de 1ª e de 2ª série . Ano de Olimpíadas em Atenas, boa oportunidade para um projeto envolvendo a Grécia suas mitologias e sua influência histórica em todas as áreas do conhecimento. Os conteúdos específicos da série e projetos paralelos desenvolveram-se a partir das discussões sobre as nossas origens enquanto povo brasileiro e enquanto seres humanos. Como parte constitutiva dessa abordagem a chamada cosmovisão (lendas e mitologias) dos povos indígenas e africanos; a origem dos números e das linguagens matemáticas; a alfabetização cartográfica, com o estudo da constituição do espaço geográfico e da história dos bairros; a história de vida de nossas crianças, através da produção de auto-biografias.
Partindo de leituras como “Bisa Bia, Bisa Bel” de Ana Maria Machado, e “Histórias de Avô e Avó” de Arthur Nestrovsk, trabalhamos com entrevistas e o resgate da memória de outras gerações. O sub-projeto “Relíquias de família” com os objetos, fotos, roupas antigas, contribuiu para desenvolver o conceito de tempo e memória, mas também para estabelecer laços afetivos como podemos perceber no dizer de algumas crianças: “Eu ganhei da minha mãe este objeto, que foi da minha avó e vai ser dos meus filhos”.
Pensamos no lugar que a história de vida cumpre na formação de identidade. Os objetos, as fotos, os dizeres dos avós materializam a herança de seus antepassados num tempo histórico próximo, porém, do ponto de vista sócio-cultural bastante diferente das experiências vividas pelas crianças. Quando a criança pergunta sobre suas origens busca a compreensão sobre si mesma e na sabedoria do passado oferecida nas vozes dos mais velhos, resignifica o presente e reflete sobre o futuro que brota do passado.
Preocupávamos em contribuir na construção de uma identidade individual e social pautada no encontro de etnias, sociedades e visões de mundo. Para tanto, trouxemos a literatura infantil e suas relações com o mundo e com a história, entendida em sua dimensão formadora e enquanto construção ativa de uma comunidade de leitores que acessou leituras das mitologias gregas, africanas e indígenas. Os pequenos leitores puderam estabelecer relações, produzir sentidos e nessa interação com o texto produzir conhecimento sobre a formação cultural de nosso povo.
A questão da criação do mundo e do homem é uma pergunta que atravessa o tempo e já produziu inúmeras respostas mágicas, míticas, científicas, religiosas com implicações diversas no imaginário e na fé de diferentes povos. Os mitos tinham um significado real para os homens e era comum deuses com características humanas, como os deuses de Homero, que a exemplo dos deuses das mitologias africanas e indígenas podiam ser vingativos, ciumentos, traidores, cruéis, férteis.
Da teoria do caos, um abismo, uma massa confusa onde se misturavam a terra, o mar e o ar. Do acasalamento entre Céu (Urano) e Terra (Gaia) nascem os Titãs e o mais jovem deles, Cronos mutila seu pai Uranos e do sangue que cai no Oceano, nascem as Erínias (as Fúrias) e Afrodite a deusa do amor. Prometeu e seu irmão Epimeteu tinham a tarefa de criar o homem e atribuir-lhe e aos outros animais as faculdades necessárias para a manutenção de sua sobrevivência. Epimeteu gastou todos os seus recursos, concedendo os mais variados dons aos animais, e não restou nada que fizesse o homem superior aos animais. Prometeu, trouxe o fogo para o homem e garantiu a sua superioridade sobre os animais. Algumas versões apresentam que a primeira mulher Pandora fora enviada para punir o homem por este ter aceito o fogo roubado por Prometeu. A sua curiosidade em abrir uma caixa, em que cada deus colocara um bem, permitiu que estes escapassem restando apenas guardada a esperança.
Reginaldo Prandi escreveu uma adaptação literária para as crianças da mitologia dos orixás. Olorum vivia no Orum (Céu) com os orixás, foi o criador do Orun e do Aiye (terra), mundo espiritual e físico, respectivamente. A Oxalá coube a missão de criar o mundo, no caminho sentiu sede e extraiu um vinho do tronco de uma palmeira, acabou bebendo demais e deixou o saco da Criação no chão. Odudua interessado em realizar a tarefa em questão e receber para si todas as glórias, presenteou Exu e foi recompensado, roubou o saco da Criação de Oxalá e fez a Terra, os minerais, os bichos, as plantas. Olorum ordenou, então que Oxalá completasse a Criação, criando o homem e a mulher. Outros orixás, filhos de Olorum, o Ser Supremo, também participaram da Criação do mundo.
É importante prestar atenção em semelhanças, por exemplo, na presença de um deus que cumpre a missão de ordenar o mundo, na versão bíblica sobre a criação do mundo contida nos Gênesis, encontramos o caos, o céu e a terra formados pela providência divina, além da criação do homem e da mulher. Eva, a primeira mulher, criada a partir da costela de Adão, também sucumbiu à sua curiosidade e comeu a maçã que espalhou o pecado por toda a humanidade:

“ No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.”(Gênesis.Capítulo 1, versículos 1-2)

As visões de mundo em algum momento parecem se encontrar na sua origem, a caixa de Pandora e a maça de Eva, por exemplo, simbolizam a imperfeição humana, o bem e o mal que fogem do controle da criação divina pelos ímpetos femininas. O que faz, entretanto, que nossos alunos, na maioria das escolas, possam ouvir, ler e opinar sobre a curiosidade incontrolável de Pandora e Eva, sobre as versões acerca da criação do mundo dos gregas na antiguidade e do cristianismo pregada na Bíblia e não podem ouvir falar do saco da criação do mundo de Olorum? Por que podemos ler e contar sobre os Feitos de Epimeteu e Prometeu e não podemos contar sobre os feitos de Obatalá e Odudua?
O poderoso Zeus, deus grego, e o poderoso Xangô, orixá africano, são portadores da justiça, intervém como árbitros na discórdia, ambos trazem a simbologia do machado de duas pontas que apontam para duas direções opostas. Algumas destas características encontramos no Deus pré-cristão, Jeová, o Deus do Velho Testamento. Nas histórias de Hera, esposa de Zeus e de Oxum, esposa de Xangô, ambas protetoras da maternidade, a presença da falsidade como subterfúgio para afastar suas opositoras, uma vez que Zeus e Xangô se relacionam com outras mulheres. Hera disfarçou-se de ama-seca e persuadiu Sêmele, amante grávida de Zeus, a seduzi-lo para que mostrasse todo o esplendor de sua divindade, sabendo que esta não resistiria aos clarões que circundariam o corpo de Zeus e cairia fulminada, assim como é figura central na história dos 12 trabalhos de Hércules. Oxum protagonizou uma contenda com Obá, uma orixá que disputava o amor de Xangô, convencendo a rival de que o amado comeria uma sopa com as suas próprias orelhas e que esta seria uma forma de ter o amor de Xangô para sempre. Pensando em prendê-lo Obá fez o que Oxum dissera e preparou um prato em que a sua própria orelha aparecia boiando e o ofereceu a Xangô que sentiu grande repulsa diante de estranha iguaria.
Muitas outras analogias poderiam ser feitas, mas em essência as mitologias servem para a expressão de concepções de mundo, dos homens e da natureza. As pestes, as revoltas da natureza ou as desventuras humanas podiam ser explicadas pelas fúrias dos deuses, os oráculos serviam para transmitir as vontades divinas. Na Grécia, Delfos, “o umbigo do mundo” era o mais famoso. Na África , Ifá, é o orixá do oráculo, jogava os seus dezesseis búzios mágicos. Prandi, conta para as crianças e para todos nós, que Ifá conhece todas as histórias vividas em todos os tempos, procura a causa dos problemas e prescreve quais presentes devem ser oferecidos aos orixás.
A língua, a religião, os costumes e as tradições formam as identidades desses povos. A hierarquização dos saberes realizada pela nossa sociedade grafocêntrica tende a valorizar as sociedades que primeiro usaram a escrita como forma de registro de sua tradição oral, assim, os gregos tinham uma vantagem: eram escritores e puderam contar não apenas com Homero, herdeiro da poesia oral e contemporâneo da escrita alfabética, mas também Hesíodo, um pastor poeta, que representou e deu sentido a tradição oral a partir de seus registros sobre o nascimento dos deuses e a condição humana que carregavam, foi ele quem fez de Zeus “o pai dos deuses”.
Se pensarmos nas aproximações entre as diferentes mitologias, chegaremos logo ao movimento de sincretização, onde na Umbanda, por exemplo, os santos se fazem análogos aos orixás e as entidades indígenas comparecem nos cultos afro-brasileiros, especificamente na Umbanda. Segundo, Luz:

“ O culto aos caboclos é dedicado ao espírito dos ancestrais que estavam na terra brasileira antes do negro aqui chegar, são os donos da terra. Como tais são cultuados, isto é, na forma africana de homenagear os ancestrais que ocuparam primeiramente um determinado território. (2002:88)


A idéia do sopro, da ventania, das caixas e baús que carregam histórias e valores; os múltiplos portadores que espalham pelo mundo tradições, males e virtudes são marcas textuais de muitos dos livros lidos em sala de aula. Em “Como as história se espalham pelo mundo” de Rogério A. Barbosa, conto da literatura oral nigeriano, a viagem pela diversidade cultural africana acontece através de um ratinho que percorre vários lugares da paisagem africana, encontra os pigmeus, visita mosteiros e mesquitas, contempla um culto em homenagem aos orixás, perambula entre mercadores no Marrocos, se impressiona com as pirâmides do Egito. O roedor viaja espalhando histórias e tradições. O livro passa a idéia de que o ratinho viajante a partir de suas leituras particulares de mundo transforma o seu olhar numa janela de entrada para outras culturas. Quando líamos este livro uma aluna perguntou surpresa: “ O Egito fica na África?”. Esta pergunta puxou o fio de outras perguntas: aos 8 anos de idade que visões da África já haviam sido construídas fora da escola? Por que se surpreendeu ao saber que o Egito ficava na África? Como os desenhos animados apresentam a África.
No conto africano “O Baú de Histórias”, as histórias estavam guardadas numa caixa de ouro e pertenciam a Nyame, o Deus do Céu. O ancião Ananse, tece uma teia e vai a procura das histórias guardadas quando é desafiado pelo Deus do Céu que lhe propõe a superação de três difíceis obstáculos em troca das histórias. O frágil Ananse utiliza a sabedoria e consegue pagar o preço pelas histórias de Nyame, como prêmio recebe do Deus do Céu, o baú de histórias. Ele abre o baú e todas as histórias se espalham pelo mundo. O livro termina com os dizeres: “Contei minha história. Entrou por uma porta, saiu pela outra. Quem quiser que conte outra”. As lendas e contos revelam as narrativas de tradições locais, entram e saem pelas portas da oralidade, encontrando novas narrativas e formando outros textos e apreensões.
Em “O presente de Ossanha” contada por Joel Rufino dos Santos, o criador Olorum, dá a cada filho uma parte do mundo e para Ossanha dá a floresta e suas muitas serventias para serem partilhadas com quem precisasse, este, no entanto, guardou as plantas só para si. Xangô irritado chamou Iansã, senhora dos raios e das tempestades, para dar uma lição no orixá egoísta. Ela abanou com a saia o horto de Ossanha, provocando uma ventania que espalhou as plantas pelo mundo. O menino da História que recebe o presente de Ossanha é chamado de “moleque”, menino escravo que tinha como principal utilidade brincar com o filho do seu dono. O seu nome ... Ninguém sabe.
E mesmo se pensarmos em “como as histórias se espalham pelo mundo” chegamos em outro livro de Rogério A. Barbosa, “Duula a Mulher Canibal”, fruto de suas pesquisa em relatos sobre mulheres canibais da tradição oral somali, que, segundo o autor, e facilmente percebido pelas crianças, os antigos contos têm situações e passagens que se aproximam de outras histórias de conhecimento universal. Duula, tem passagens que nos faz lembrar as histórias de João e Maria, Chapeuzinho Vermelho, e também a Bíblia Sagrada. E sobre isso diz Barbosa:

“Isto, a meu ver, reforça a discutida tese dos contos populares terem uma origem comum, remodelados e adaptados de acordo como meio ambiente e a habilidade dos narradores. Senão, como explicar que contadores de história no interior da Somália falem sobre temas e episódios tão conhecidos?” (2002: p. 7)

Thompson (1992) afirma que a história oral é tão antiga quanto a própria história e lembra como Michelet, ao escrever História da Revolução Francesa, contrabalançou os documentos escritos com a tradição oral popular. Nas sociedades pré-letradas a tradição oral constituía-se numa evidência histórica importante. Citando o clássico de Jan Vansina “Oral Tradition: a study historical methodology” (1965), apresenta inúmeras categorias e expressões da tradição oral africana. Essa tradição africana de preservação da história de seus ancestrais viajou nos navios negreiros que aprisionavam corpos, mas não conseguiam roubar-lhes a alma e a cultura africana, suas histórias, suas linguagens derramaram-se por outras partes do mundo, misturando-se em outras expressões culturais locais, numa relação dialética de troca de sentidos.
Possibilitar, desde as séries iniciais o contato com as múltiplas versões e pontos de vistas acerca de nossa existência e das heranças culturais formadoras de nossa identidade social, indica a possibilidade do direito às diferenças. Trabalhamos com a hipótese de que a criança poderá organizar seus conhecimentos e posicionamentos valorativos a partir de um repertório de experiências pautado no respeito ao outro, entendendo a diversidade cultural em suas relações de diferenças e semelhanças.

Concluindo para dizer que muito há que ser dito

“Porque vocês sabem que um livro, ainda que aparentemente se refira às coisas das quais ele trata, na verdade é com os outros livros que ele se relaciona – essa coisa que agora se chama “intertextualidade” – e quando se lê um livro, é nos outros que se pensa.” (Larrosa: 1998: 37)

Partindo da idéia de Hall (1999) de que todas as nações modernas são híbridos culturais, os nossos muitos brasis permanecem existindo apesar de todas as tentativas de uniformização cultural. O ensino da História e Cultura da África e dos afrodescendentes no Brasil, mais do que reparar os danos sofridos em anos de escravidão e posteriormente de exclusão, tira dos porões a história negada pelos vencedores.
Porém, ainda, ouvimos algumas indagações se esta legislação não estaria impondo concepções. Estaríamos diante de um novo tipo de escolarização do leitor e da leitura? Os novos textos no campo de educação étnico-racial que surgem ensinam uma nova moral? As atuais políticas de ação afirmativa não seriam discriminatórias e paternalistas?
Ainda há muito o que fazer. Certo dia, ouvi um depoimento de uma professora sobre um livro indicado para a leitura na turma de sua filha, em que, segundo ela a protagonista era uma menina que passava por delicadas situações de constrangimentos por ser negra: “Muito maniqueísta. Os negros são bonzinhos e os brancos são maus.”. Certamente, uma legislação e um conjunto de políticas públicas não desconstroem os esteriótipos e refazem tão rapidamente os olhares firmados em décadas. Será que o mesmo livro lido por uma pessoa negra, ou por alguém envolvido com as discussões no campo do anti-racismo teria tido as mesmas apreensões? Teria o autor implementado uma determinada visão doutrinária?
Retomando o que disse Larrosa sobre a intertextualidade, nos relacionamos com um livro a partir de outras leituras e de outras experiências por nós vividas. Cada leitor completará o texto a partir de seus pontos de vistas e de um lugar social. A literatura promove a dimensão da formação humana e pode contribuir na produção de sentimentos, atitudes e valores. Os professores e a escola, cumprem um papel de oportunizar o conhecimento e a informação da multiplicidade de narrativas e tradições.
Não sei como está o Zé, hoje mais velho que o “Cheiroso” e o “Mindingo” personagens que como muitos outros de nossas escolas sentam nos bancos escolares e encontram discursos que não resultam de suas experiências pessoais. Os demônios que assombram o Zé são de carne e osso, a vida ensinou “Cheiroso” e “Mindingo” a calar as vozes de outros como forma de sobrevivência e seguem oprimindo aqueles que deveriam ser seus pares. As duas favelas onde moram nossos personagens reais eram antigos quilombos, lugar histórico de resistência, transformadas em guetos que acumulam miséria e exclusão. As vozes do passado não são as mesmas vozes do presente.
Temos muito o que fazer. Temos muito o que dizer. Temos muito o que mudar.

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