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USO
DA IMPRENSA PERIÓDICA COMO ESTRATÉGIA DE DIVULGAÇÃO
E REIVINDICAÇÃO DE NOVAS PRÁTICAS DE ESCRITA NO ESTADO
DO RIO DE JANEIRO. CAMPOS, 1914-1915
Silvia
Alicia Martínez Boynard - Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro- UENF
Maria Amelia de Almeida Pinto Boynard - Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro- UENF
Ao longo
da década de 1980, a história cultural foi atravessada por
debates que respondiam a insatisfações que a história
cultural francesa das décadas de 1960 e 1970 vinha despertando
entre os historiadores, que viam nela os limites próprios da história
das mentalidades e da história serial da época.
Nesse contexto, Roger Chartier (1990) desenvolveu estudos que abordaram,
dentre outros temas, a análise crítica de textos –ordinários
ou literários, reconhecidos ou esquecidos-, a história dos
livros e de todos os objetos impressos que comunicam por meio da escrita
ou da imagem e, ainda, a análise das práticas que se apropriam
dos bens simbólicos produzindo usos e significações
diferenciadas.
Já nos anos de 1990, o historiador francês considerava que
o principal objetivo da história cultural era o de indicar como
- de forma diferente segundo os lugares e os tempos - as realidades se
constroem, se apresentam para a leitura ou para o olhar, e como são
apreendidas. Um dos pressupostos subjacentes a esta perspectiva é
que as representações do mundo social se sustentam sempre
nos interesses dos grupos que as forjam. Depreende-se daí que as
lutas entre as classes (e também de gênero, raça e/ou
credo) são lutas de representação, pondo em conflito
as imagens que os grupos ou poderes acreditam dar de si mesmos e as que,
contra a sua vontade, são impostas pelos seus competidores. As
percepções do social, portanto, não são discursos
neutros, geram estratégias e práticas (sociais, escolares,
políticas) que tendem a impor uma autoridade aos outros, a quem
desqualificam; legitimam uma dominação e justificam suas
eleições e condutas perante os mesmos indivíduos.
A esta perspectiva, outras foram se somando. Darnton (2001) apud Castillo
Gómez, A. (2003) considera que os sistemas de comunicação,
a cultura e o mundo simbólico não podem ser pensados como
se bastassem a si próprios, mas como uma língua através
da qual o poder, as relações sociais e a economia se expressam.
Dessa forma, ele pensa a cultura integrada profundamente no corpo social.
Dentre as formas específicas da história cultural, encontra-se
a história da cultura escrita, que centra seu objetivo na interpretação
das práticas sociais de ler e escrever (Castillo Gómez,
A., 2003). Portanto, os objetivos e temas da história cultural
são mais amplos do que os da história da cultura escrita.
A respeito, Castillo Gómez (2003) afirma que:
"Reconstruir
as conexões entre as diferentes materialidades do escrito, para
compreender seu significado global numa determinada sociedade, se apresenta
como referência fundamental do que deve ser a história da
cultura escrita. Ela pode ser entendida como a conjunção
de três histórias que tinham avançado em paralelo:
a história das normas, das capacidades e dos usos da escrita; a
história dos livros ou, mais amplamente, dos textos manuscritos
e impressos (e eletrônicos, haveria que acrescentar); e a história
das formas de ‘ ler’” (p. 28).
Nesse sentido,
convém destacar que os historiadores da educação
têm se debruçado, nos últimos anos, no estudo da escola,
entendida não só a partir dos dispositivos legais que a
normatizavam, mas também a partir das práticas cotidianas
que exerciam e dos materiais que utilizavam/produziam.
Segundo Magalhães (1998),
“No
plano histórico, uma instituição educativa é
uma complexidade espaço-temporal, pedagógica, organizacional,
onde se relacionam elementos materiais e humanos, mediante papéis
e representações diferenciados, entretecendo e projetando
futuro(s), (pessoais), através de expectativas institucionais.
É um lugar de permanentes tensões [...] são projetos
arquitetados e desenvolvidos a partir de quadros sócio-culturais”
(p. 61/62).
Este novo
olhar sobre a escola, fruto das discussões dos historiadores da
educação inspirados nos avanços teóricos da
história cultural, tem possibilitado a incorporação
do estudo de novos objetos, significativos para a compreensão do
funcionamento interno dessa instituição. Esses objetos,
como é o caso, por exemplo, das disciplinas escolares, são
analisados não apenas do ponto de vista do conteúdo como
também dos materiais e das metodologias empregados para seu ensino
(Julia, 2001; Vidal, 2004).
Vale lembrar aqui palavras de Vidal (2004) quando afirma que torna-se
"impossível compreender a história da escola primária
se não são questionados os desafios materiais e práticos
que a escola teve que enfrentar" (p. 17). O ensino da escrita é
uma das problemáticas que tem canalizado, também, esses
estudos.
O presente texto se insere, precisamente, na perspectiva da história
da cultura escrita. Tenta entender, por um lado, as estratégias
de divulgação, pela imprensa periódica, de nova prática
de escrita- a caligrafia vertical e, por outro, o efeito produzido por
essa inovação na tradição escolar. Pretende
contribuir, ainda, com os estudos sobre o ensino da caligrafia nos primeiros
anos da república brasileira, relatando a experiência vivida
em Campos , cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro.
O texto retoma reflexões de Luciano Mendes Faria Filho, Diana Vidal,
Silvina Gvirts, dentre outros, que tratam do ensino da caligrafia como
uma prática escolar que se materializa não apenas com o
controle do corpo e dos movimentos infantis, mas que, sobretudo, expressa
um momento particular na história social, política e educacional
do Brasil .
Para entender a caligrafia que era ensinada no cenário fluminense
da época, se utilizam dois documentos que datam de 1915, produzidos
por dois professores campistas. Analisam-se, portanto, dois discursos.
O primeiro deles, um artigo reproduzido em 9 de maio (Parte 1) e em 11
de maio (Parte 2) do ano de 1915, na Coluna Ensino Primário do
jornal Monitor Campista, reflete a defesa da Profª Antonia Ribeiro
de Castro Lopes , diretora de escola primária da cidade de Campos,
pela introdução do ensino da caligrafia vertical nas escolas
do estado do Rio de Janeiro. O segundo, em forma de “carta-resposta”
, foi dirigido pelo professor de Caligrafia da Escola Normal de Campos
, Carlos Hamberger , ao Diretor do mesmo Instituto, no ano de 1915. Nesse
documento, o professor defende a tradição e a manutenção
do ensino da caligrafia inclinada nas escolas.
Em que esses dois discursos se aproximam? Em que se afastam? Que conhecimentos
pedagógicos constroem? Que preceitos de saúde e higiene
manifestam? De onde falam e a quem se dirigem os dois professores, contemporâneos,
ambos docentes de tradicionais escolas campistas?
Indícios
de um debate sobre as novas práticas de escrita para a escola primária,
no Estado do Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século XX
Dada a originalidade
e a importância dos mencionados documentos, o artigo da Profª
Antonia Lopes (1) e a “carta” do Prof. Carlos Hamberger (2),
como fontes privilegiadas de pesquisa, optamos por transcrevê-los
na íntegra. Posteriormente, teceremos alguns comentários,
tentando responder aos questionamentos feitos acima.
(1)- MONITOR
CAMPISTA, 9 DE MAIO DE 1915
COLUNA ENSINO PRIMARIO pagina: capa
“Sob
o titulo - EM PROL DO ENSINO PRIMARIO, - a distincta professora D. Antonia
Ribeiro de Castro Lopes, directora da Escola Complementar 15 de Novembro,
desta cidade, escreveu o seguinte ao “Jornal do Commercio”:
Desde muito germina em meu cerebro a propaganda da “calligraphia
vertical”, a mais facil, a mais racional a que mais se coaduna com
o instincto, a tendencia natural da criança, systema de ensino
hoje seguido pela pedagogia hodierna – aproveitar o instincto, a
tendencia natural da criança.
No meu artigo intitulado “Impressões sobre o ensino do Estado
de S. Paulo”, publicado no “Jornal do Commercio”, de
9 de Julho de 1914, tive occasião de demonstrar, ligeiramente as
vantagens desse caracter de letra observadas nos institutos de ensino
daquelle progressivo Estado.
Hoje torno ao assumpto, desejosa de que os dirigentes da Instrucção
de meu Estado, voltem para esse problema a sua attenção,
livrando assim a infancia das deformações a que a calligraphia
inclinada ou “ingleza” a arrasta.
A escripta é a arte de perpetuar o nosso pensamento, é um
dos meios de communicação de nosso espirito, deve, pois
ser facilitada, o mais possivel, para que se propague com mais rapidez.
Hoje ainda restando laivos de aversão á escola, pois era
ella apontada pelos pais como castigo á criança traquinas,
cumpre que empreguemos todos os meios de facilitar o ensino. Todos os
esforços devem ser envidados para que desappareça esse horror,
esse estigma da escola antiga, moldando as de hoje pela pedagogia moderna,
observando os preceitos e dictames, tornando a escola um centro de attracção,
um remanso de paz, onde o affecto seja o vehiculo, o factor dirigente
da instrucção, que o professor ministra depois de bem ponderar
sobre o melhor methodo, o processo mais facil de trasmittir tal ou tal
disciplina.
Na escola hodierna quem mais trabalha é o professor, a elle compete
buscar todos os meios de facilitar o trabalho do alumno, e não
lhe sobrecarregar a memoria forçando-o a decorações,
com resultado deprimente do raciocínio: cumpre-lhe suavisar o mais
possivel o ensino, para que o alumno se apegue, se affeiçoe à
escola.
Pensando assim, julgo que a “calligraphia inclinada” denominada
“cursivo inglez”, deve ser substituida pela “calligraphia
vertical”, ou “franceza” muito mais pratica, facil e
perfeitamente adaptavel ás nossas escolas primarias.
Não tem ella a belleza e a elegancia do cursivo inglez, mas tem
vantagens sobre este, e neste ponto devemos visar antes o lado pratico
que o esthetico.
Não só é de facil aprendizagem, como tive o ensejo
de apreciar na escola modelo “Caetano de Campos” em S. Paulo,
pois, em quinze dias, crianças que no inicio das aulas mal pegavam
no lapis, já escreviam com lettra sufficientemente intelligivel!
A “calligraphia vertical” elimina os perigos a que a “calligraphia
inclinada” conduz a infancia, justamente na phase em que o tecido
osseo facilmente se deforma, obedecendo ás posições
forçadas que este typo de lettra obriga.
Crianças ha que entram para a escola perfeitas e de lá sahem
soffrendo da vista, myopes (em grande numero) ou trazendo a aberração
da columna vertebral; correndo tudo isso por conta da posição
obliqua da “calligraphia inclinada”.
Além disso, a escripta inclinada obriga a descançar naturalmente
o peso do corpo do lado esquerdo, e por mais cuidado que tenha o professor
em observar a posição do alumno, por mais vigilancia que
elle exerça, não póde evitar que este apoie a parte
esquerda do thorax na borda da carteira ou mesa, comprimindo as costellas,
obstando assim o bom funccionamentto do apparelho respiratorio.
Vemos, pois que esse problema de hygiene é digno de attenção.
As inconveniencias que aponto não são meios unicamente persuasivos
de quem faz propaganda, mas sim, resultantes da observação
e conclusão da leitura.
(continua).”
MONITOR CAMPISTA,
11 DE MAIO DE 1915, Pagina: Capa
“Conclusão
do artigo sob o titulo - EM PROL DO ENSINO PRIMARIO, - da distincta Professora
D. Antonia Ribeiro de Castro Lopes, directora da Escola Complementar 15
de Novembro, e publicado no “Jornal do Commercio”.
Na França onde os problemas de hygiene escolar merecem toda a attenção,
tem sido observado que o desvio da columna vertebral e a myopia são
molestias oriundas das escolas.
O Dr. Dujardin- Baumetz verificou que em uma escola normal feminina, sobre
20 alumnas observava-se em 17 o desvio da columna vertebral; em outra,
a proporção era de 19 sobre 20, e em uma terceira, observou
elle que essa deformidade era total.
Vemos, pois que a escripta vertical, cuja posição é
natural, não exije sacrifício, esforço do alumno,
é o unico meio de corrigir o mal que se propaga. Além disso
ella permitte facilmente o ambidextrismo, theoria hoje proclamada como
unico meio de desenvolvimento harmonico das circumvoluções
cerebraes, pois não ignoramos que o hemispherio esquerdo é
o factor dirigente da mão direita na execução dos
múltiplos trabalhos que lhe são confiados e por ella executados
com precisão.
Sabemos outrosim, que a esse hemispherio é confiado o prodigioso
mecanismo da linguagem articulada, descoberta essa devida a Broca, assim
como está actualmente provado que pela educação da
região que corresponde ao hemispherio direito, podemos readquirir
a flexão da linguagem nos casos de decadencia dessa, nos dextros
aphasicos.
A aprendizagem da “calligraphia vertical” faculta o desenvolvimento
do ambidextrismo, cujas vantagens são concludentes.
Citarei, comprovando as vantagens do ambidextrismo, o facto extraordinario
que em uma revista colhi. O desenhista Daniel V. tinha sómente
vinte annos quando a paralysia o atacou em plena celebridade.
Todo o lado direito do seu corpo estava condemnado a uma inacção
completa. Com uma arrogante energia, aos trinta annos, esse mestre de
desenho recomeçou a sua educação. Pouco a pouco,
a sua mão esquerda aprendia a traçar linhas rectas e curvas.
Após dous annos de trabalho encarniçado,Daniel V. - tornava-se
Daniel V!
Conscia de que compete ao professor proclamar, diffundir os methodos e
processos, mais vantajosos,as
modificações e as innovações que a evolução
pedagogica nos mostrar, na fórma de prestar algum serviço
ao meu torrão, sigo a directriz que a consciencia me traça,
embora como trombeta que ecoa no deserto, correndo o risco da critica,
plano inclinado em que resvala todo aqelle que se aventura a uma forma.
Não é novidade, bem o sei, o typo calligaphico cujas vantagens
proclamo, pois foi o adoptado até quasi o terminar do século
XVIII.
Nada mais é necessario para provar isso do que visitar a collecção
de autographos expostos na Bibliotheca Nacional.
Alli se vêem assignaturas de Luiz XIII, em escripta vertical, assim
como as de Pascal, Boileau, Racine e Mme, Sevignè provando que
a maioria dos autores da epoca classica adoptavam a “calligraphia
vertical”.
A Inglaterra, a Allemanha, o Japão e alguns paizes da America já
abraçaram esse caracter de lettra e, S. Paulo, que é o iniciador
de todas as ideas progressistas, já o introduzio em suas escolas,
como acima disse, e bem- assim o ambidextrismo.
Em Pariz foi fundada em 1806 uma liga para a sua propagação,
denominada “Liga Gratuita para a escripta vertical”, que conta
com o apoio de professores eminentes, membros da Academia de Sciencias,
da Academia de Medicina, da Academia franceza, etc.
Sigamos o exemplo desses cultos, experimentemos, implantemos em nosso
Estado as ideas progressistas”.
(2) Em carta-resposta
ao Diretor do Liceu e Escola Normal, o Prof. Hamberger escreve:
“Illmo
Sr. Director da Escola Normal de Campos.
Para corresponder
ao pedido de V. Sª e na qualidade de professor de Calligraphia e
Desenho deste Estabelecimento, sobre o metodo de escrita vertical redonda
do Sr. A. Teixeira, adoptada no curso primario do Estado de Minas, venho
ponderar o que a pratica do ensino simultaneo de Calligraphia e Desenho
durante 18 annos fez-me observar.
Em todos os tempos a linha vertical e as curvas derivadas da circumferencia
foram consideradas excessivamente difficeis de serem executadas com rapidez,
perfeição e symetria, razão por que o calligrapho
francez Barbedor, depois de ter inventado o caracter Ronde para substituir
o gothico antigo, ora empregado no uso commum, e cujo typo de lettra foi
adoptado pelo parlamento francez como typo nacional, em vista das difficuldades
que offerecia na sua formação, estabeleceu a lettra deitada,
que elle levou para a Inglaterra que, reconhecendo a sua vantagem, empregou-o
para a sua escrita commercial, o que lhe valeu o nome de lettra ingleza.
No século 16º generalisou-se a escrita obliqua; mais tarde
os allemães, que conservavam o caracter vertical (antigo gothico)
adoptaram a inclinação de 52º.
Nos diversos estabelecimentos officiaes e particulares, onde me foi confiado
o ensino de desenho, encontrei sempre difficuldade na formação
das linhas verticais parallelas ao contrario da linha obliqua, que se
forma naturalmente pelo movimento dos dedos e da mão.
No meiado do seculo passado a lettra ingleza soffreu uma modificação
que a tornou ainda mais facil e mais rapida, perdeu as grandes curvas,
que foram substituidas por ligeiras curvas angulosas e foi denominada
cursivo moderno. É o caracter que usei e uso com vantagem nesta
Escola e cujos resultados podem ser verificados pelos documentos archivados
nas Secretarias deste Estado e em muitas escolas primarias dirigidas por
professores diplomados por esta Escola.
Passando a considerar as vantagens hygienicas da posição
do corpo, comparativamente nas duas formas de escrita, vertical e obliqua,
não posso absolutamente concordar com a primazia da vertical.
Em todos os tempos a posição do corpo, do papel, o modo
de pegar na penna foram uma questão capital, com o fim de obter
um bom delineamento e ao mesmo tempo evitar as consequencias resultandas
de uma má posição.
O cursivo moderno recommenda a posição vertical do corpo,
perpendicular ao assento, ligeiramente obliqua para a esquerda, as pernas
perpendiculares ao chão com o pé esquerdo ligeiramente para
a frente, para maior firmeza e descanso, o braço esquerdo descançando
na beira da meza para dar um ponto de apoio ao corpo e deixar o braço
direito livre e desembaraçado.
A differença de posição para a vertical é
tão de minuta que não se pode atribuir vantagem a esta ultima,
alem de que, na escrita obliqua a mão leva o braço horizontalmente
sem esforço ao contrario da vertical onde o braço é
que arrasta a mão na mesma direção.
Sr. Diretor, os defeitos que possam ser attribuidos a escrita inclinada
serão os mesmos para a vertical, talvez em maior numero para esta,
porque a creança terá maior facilidade a debruçar
completamente sobre a meza.
A questão é entregue aos professores que, na sua maior parte,
pela grande quantidade de alumnos que são obrigados a ter debaixo
da sua vigilância não podem fiscalizar propriamente a aula
de calligraphia que, alias, occupa muito pouco tempo das horas geraes
do ensino, o que não se dá em curso particular ou mesmo
na própria Escola Normal, durante as aulas desta disciplina.
Nas minhas apostilas ditadas há 18 annos, no inicio deste curso
e repetidas todos os anos, encontrará V. Sª os preceitos a
observar no delineamento, fazendo um estudo especial sobre a posição
do corpo, papel e modo de pegar na penna.
Creio, Sr. Director, com esta exposição, ter correspondido
ao vosso desejo.
Saude e Fraternidade
Carlos Hamberger”
Ao analisar
os dois discursos apresentados, podemos observar algumas similitudes,
principalmente na argumentação, apoiada tanto em observações
empíricas -pela longa experiência de trabalho de cada um
deles- como em trabalhos científicos. Ambos, também, apelavam
aos conhecimentos pedagógicos numa perspectiva internacional, principalmente
européia, embora Antonia Lopes afirmasse conhecer -além
do método usado no "progressivo estado" de São
Paulo- também o que ocorria em alguns países latino-americanos
e no Japão e baseasse parte do seu discurso em leituras de revistas
especializadas. Os dois, ainda, apelavam à história da caligrafia
para justificar o uso da letra que cada um defendia. Por último,
ambos apoiavam sua argüição num discurso eminentemente
médico, amparado em preceitos de saúde e higiene.
Obviamente, havia entre ambos os discursos muitas questões de distanciamento,
principalmente nos diferentes pontos de vista defendidos em relação
ao tipo de caligrafia mais adequado para ser utilizado na escola primária,
e normal. O principal, como já anunciado, diz respeito ao tipo
de letra e às vantagens e desvantagens que seu uso provocava nas
crianças.
Antonia Lopes destacava a beleza e elegância da caligrafia inclinada,
ou cursivo inglês, mas denunciava as deformações que
produzia sobre a infância, dentre as quais a miopia, o desvio da
coluna vertebral, problemas no tecido ósseo e dificuldades no aparelho
respiratório. Já a caligrafia vertical era por ela considerada
prática, fácil e adaptável às escolas. E um
ponto forte da sua argumentação, que a torna bastante original
em relação a outros trabalhos que abordam o uso da caligrafia
vertical, se centra na questão do ambidestrismo, quando afirmava
que a caligrafia vertical o favorecia, provocando, ainda, o "desenvolvimento
harmonico das circumvoluções cerebraes". Por outro
lado, interessante se torna a descrição do estigma que a
escola carregava, como um lugar disciplinador, de "castigo a crianças
traquinas" e o convite ao trabalho docente para acabar com lições
que se apoiavam apenas no exercício da memória e na repetição.
Por último, podemos observar que seu discurso se dirigia a um público
amplo, na tentativa de atingir toda a população letrada
da região e, paralelamente, fazia um apelo direto às autoridades
da educação estadual.
Já Carlos Hamberger defendia a letra cursiva inclinada, também
denominada cursiva inglesa e, ainda, cursivo moderno. Era incrédulo
a respeito das desvantagens geralmente atribuídas à caligrafia
que ensinava, argumentando que esta caligrafia também apelava a
uma correta posição corporal e considerando ser "de
minuta" a diferença postural entre ambas. Chegou a considerar,
ainda, que a caligrafia vertical podia provocar maiores problemas, já
que a criança debruçar-se-ia sobre a mesa. Num apelo à
tradição e à sua própria e longa experiência
como professor da disciplina, destacou que trabalhava com as mesmas apostilas
há 18 anos, como exemplo do cuidado tido com a posição
do corpo, do papel e da forma de segurar a pena. Num claro arrebato de
exagero, ainda considera que estes elementos se constituem numa "questão
capital" da caligrafia "em todos os tempos". O discurso
desse professor do Liceu de Humanidades de Campos e da Escola Normal,
como já afirmamos, se direciona ao diretor dos estabelecimentos.
Apresenta nítidas características de resposta a um questionamento
do dirigente, que parecia ter abordado a reforma da caligrafia que já
tinha se generalizado no estado de Minas Gerais . Aproveita o momento
e critica a pouca atenção despendida à disciplina
no currículo formal das escolas públicas primárias..
A matéria do jornal e a “carta-resposta” nos instigam
a pensar nas trocas culturais que se davam no Brasil naquele momento e
que provocavam nos professores expectativas, dúvidas e/ou resistências.
E, de forma especial, no movimento de idéias pedagógicas
renovadoras que circulavam em 1915 em São Paulo, já que
foi após viajar a essa cidade que a Professora Antonia Lopes fez
publicar os artigos.
Por fim, depreendem-se da análise dos discursos dois assuntos que
merecem atenção especial: a influência do higienismo
no pensamento educacional da época e o uso de periódicos
e jornais para a circulação de idéias pedagógicas.
Caligrafia
vertical, ou caligrafia inclinada? O discurso escolar higienista
Faria Filho
(1998) afirma que a discussão sobre o uso da escrita vertical na
escola primária mineira era, no início do século
XX, uma preocupação de educadores, médico-higienistas,
dentre outros profissionais, de muitos países ocidentais.
A abordagem propiciada pelos documentos produzidos pelos dois professores
de Campos, na mesma época , nos remete, portanto, a um movimento
fortemente presente no Brasil da época, qual seja o movimento higienista.
Julgamos relevante apontar, nesse trabalho, algumas considerações
sobre o discurso escolar higienista que, desde finais do século
XIX, interferiu profundamente na nova organização proposta
para a escola e em suas práticas pedagógicas, dentre elas
a escrita.
Ajuda-nos nesta tarefa o livro do Dr. J. P. Fontenelle, Doutor em Medicina,
Inspector Sanitario do Departamento Nacional de Saude Publica e Docente
de Hygiene da Escola Normal do Districto Federal, intitulado Compendio
de Hygiene, publicado em 3ª edição em 1930. No item
denominado Methodos de escripta, assim se expressa:
“Dois
são os methodos de escripta geralmente adoptados: a escripta inclinada
ou obliqua e a escripta direita ou vertical. A “escripta vertical”
era a primitiva, do tempo em que todos escreviam com penna de pato. Depois
da invenção da penna de aço, que permittiu o trabalho
de escripta bem mais rapido, foi muito natural que a escripta se inclinasse
da esquerda para a direita, isto é, na direcção do
movimento. Importada da Inglaterra para a França, teve a “escripta
inclinada” o exito de tudo que é estrangeiro, passando a
ser moda e diffundindo-se por toda parte. Taes foram, porém, os
inconvenientes verificados pelos trabalhos de escolaridade, sobretudo
no que respeita á escripta, que se desenhou um movimento procurando
attenuar taes maleficios, movimento iniciado pela escriptora George Sand,
que lançou a formula “papel direito, corpo direito e escripta
direita”, adoptado, mais tarde, por varios congressos de hygiene
escolar [...]. Para escolher qual dos dois methodos devemos preferir e
recommendar nas escolas, precisamos attender á influencia de ambos
sobre a columna vertebral e a apparelho da visão” (p.837-840).
Após
várias considerações baseadas nos movimentos do braço
e da cabeça da criança durante o ato de escrever vertical
e obliquamente, o médico atribui o grande número de crianças
míopes “ao trabalho a curta distancia e continuado por muito
tempo [...], à iluminação deficiente, aos livros
impressos em caracteres muito pequenos ou pouco nítidos, à
má posição do corpo durante a escrita e ao horizonte
visual muito limitado” (pp. 430, 431). Diz, enfaticamente: “A
escripta, na escola, póde [...] determinar a myopia si é
feita em carteira defeituosa, ou em posição inconveniente,
obrigando o alumno a abaixar demasiadamente a cabeça” (p.
431). Sobre as deformações observadas na coluna vertebral
dos escolares, em especial a escoliose, assim diz: “a causa mais
frequente da escoliose escolar é a attitude defeituosa mantida
pelos alumnos durante os trabalhos na carteira, pelo que é até
denominada doença profissional dos escolares [sendo] as escolas
fabricas de myopes e de tortos” (p. 823). E acrescenta mais um dado
à sua defesa pelo uso da caligrafia vertical ou simétrica
ao relatar que “a circulação e a respiração
fazem-se irregularmente, nas posições asymetricas, produzindo
desastrosos effeitos sobre a saúde em geral. Especialmente em relação
á perturbação da respiração”
(p. 836).
Apesar das recomendações do Dr. Fontenelle serem datadas
de 1930, é preciso levar em consideração ser a obra
consultada uma terceira edição, o que nos faz supor que
as anteriores possam ser próximas da época em que Antonia
Lopes publicou seu artigo em defesa da caligrafia vertical.
Tomando parte do discurso da professora/diretora,
“Crianças
ha que entram para a escola perfeitas de lá sahem soffrendo da
vista, myopes (em grande numero) ou trazendo a aberração
da columna vertebral; correndo tudo isso por conta da posição
obliqua da ‘caligraphia inclinada’. Além disso, a escripta
inclinada obriga a descançar naturalmente o peso do corpo do lado
esquerdo [...] comprimindo as costellas, obstando assim o bom funccionamentto
do apparelho respiratorio”
encontramos,
nele, argumento bem semelhante ao apresentado pelo médico: para
a saúde física do escolar, a caligrafia vertical!
A coluna
ENSINO PRIMÁRIO do Jornal Monitor Campista como estratégia
de divulgação de idéias pedagógicas e como
fonte de pesquisa para a produção de uma memória
educacional – Considerações finais
As referências
a modelos de escrita adotados na França e na Inglaterra, usadas
pela professora Antonia Lopes, assim como as experiências de São
Paulo, são percebidas como argumentos para legitimar um discurso
“renovador”. Tentam evidenciar modelos, teorias e experiências
bem sucedidas, para sugerir a necessidade de mudança no ensino
das escolas primárias públicas do estado do Rio de Janeiro.
Demonstram, claramente, o alcance da circulação de idéias
pedagógicas para além dos grandes centros urbanos do Brasil.
Levando em consideração o que diz Fernandes (2004), que
“a imprensa de educação e ensino pode ser destacada
para a compreensão das formas de funcionamento do campo educacional”
[...] e “a coluna do jornal pode ser percebida como espaço
de confluências e disputas e também como lugar onde estão
em jogo diferentes interesses que levam à construção
do discurso pedagógico” (p. 164), este trabalho também
se preocupa em abordar o uso da imprensa periódica como estratégia
de propaganda de idéias renovadoras em educação.
O tom de debate teórico e a proposta de mudança pedagógica
sustentada por Antonia Lopes em seu artigo, demonstram que a professora
utilizava as páginas de um jornal de grande circulação
na época como forma de difundir conhecimentos “resultantes
da observação e conclusão da leitura”. Podemos
inferir, portanto, que a mestra repetia, em Campos, uma prática
usada a partir do final do século XIX nas grandes cidades .
Escrever e tornar públicas suas idéias e reflexões
sobre escola, ensino e aprendizagem evidencia a participação
ativa da Profª Lopes na produção de um campo sócio-profissional,
desde o momento em que considera que é competência do professor
“proclamar, diffundir os methodos e processos mais vantajosos, as
modificações e as inovações que a evolução
pedagogica nos mostrar....”.
Ao encontrar, ocasionalmente, o artigo da Profª Lopes, já
que o que nos preocupava na consulta ao Monitor Campista era reunir dados
sobre o cotidiano da Escola Normal de Campos , começamos a perceber
a incidência de artigos sobre educação publicados
no referido jornal, o que veio a ratificar a importância deste na
propagação de um ideário pedagógico na cidade/região.
Muitas das considerações a respeito da produção
intelectual sobre educação e ensino em geral, nos primeiros
anos da década de 1920 e sobre o movimento feminista, nos anos
1930, foram produzidas por Antonia Lopes através de artigos no
Monitor Campista. Antes dos escritos da professora, ainda encontramos
no jornal variadas matérias e colunas dedicadas ao ensino e uma
preocupação constante com a divulgação e/ou
crítica de reformas pedagógicas adotadas no Estado, evidenciando
diferentes concepções de escola e sociedade.
Portanto, indiscutivelmente, podemos afirmar que esse jornal tem desempenhado,
na cidade de Campos, papel similar ao exercido pelas numerosas revistas
que foram publicadas no Brasil, como por exemplo, a Revista de Ensino,
em São Paulo, e a Revista Pedagógica, no Rio de Janeiro.
Em relação aos efeitos inovadores que a denúncia
da professora teve sobre as práticas de escrita na escola primária
do Estado do Rio de Janeiro, ainda não chegamos a uma resposta
conclusiva. Entretanto, como tentamos demonstrar ao longo do trabalho,
constatamos que teve, sim, repercussões –ao menos no plano
das idéias- em outro espaço escolar, aquele que se ocupava,
precisamente, da formação das professoras primárias,
mesmo que através de uma postura de resistência, por parte
do professor que ministrava a disciplina Caligrafia. Ainda, e enunciada
em forma de hipótese, aventamos que a causa da retirada desta matéria
de ensino do currículo do curso da Escola Normal de Campos, no
ano de 1919, possa ter relação com este debate.
Por último, queremos reiterar a importância das revistas,
periódicos e jornais de grande circulação, assim
como dos manuais, para os trabalhos de pesquisa em história da
educação, ampliando o leque de fontes de investigação,
e permitindo o contato com as idéias que circulavam, provocando
debate, confronto, aceitação ... enfim, conformando o âmbito
pedagógico. Nesse sentido, reiteramos a importância do jornal
Monitor Campista para a produção de uma memória da
história da educação local.
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