Retinas

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... Escrever é reescrever, recriar de uma maneira diferente e subjetiva o que tantos escreveram antes... << >> ... Ao escrever, uma escritora carrega consigo feridas dos outros, orgasmos e êxtases alheios e próprios...

ESCRITOR LÊ O QUÊ PARA ESCREVER?  
Elias José & Nilma Gonçalves Lacerda

 retina de... ELIAS JOSÉ


Constantemente, leio livros de poesia, de ficção e memórias, sobretudo hoje que estou aposentado, como professor de Teoria Literária e Literatura Brasileira, não tenho obrigações de ler crítica e teoria, a não ser que o livro ou o artigo me atraia muito. A leitura alimenta, aduba e provoca. Tudo já foi dito, escrito, pintado, musicado, enfim recriado em termos de arte. Tenho certeza que, em cada texto que escrevo, inconscientemente, há elementos de linguagem, temática ou técnica de composição que já aparecem em centenas de outros textos. Escrever é reescrever, recriar de uma maneira diferente e subjetiva o que tantos escreveram antes. Não se trata de cópia ou plágio, mas de influência que passa despercebida pelo próprio escritor. No meu poema existem marcas de Drummond, Pessoa, Bandeira, Quintana, Cecília, Manuel de Barros e tantos outros que leio constante e apaixonadamente. O mesmo digo de minha prosa. Como abolir Machado de Assis, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Aníbal Machado, Murilo Rubião, José J. Veiga e os muitos estrangeiros, que leio em traduções?
 

Esta paixão pelas artes plásticas tem me levado a criar poemas e contos curtos inspirados em obras que atingiram o meu prazer e o meu imaginário. Comecei com Portinari, Djanira e Di Cavalcanti, de forma solta, sem que deixasse o leitor perceber que determinado personagem nasceu do que li neles. Depois, parti para Matisse, Magritte, Kandinsky, Miro e Picasso, aí já indicava no final do meu texto a obra e o seu pintor que me provocaram. Crie perto de uma centena de poemas que, por problemas de direitos autorais dos pintores, estão ainda inéditos em livro. Saíram recentemente dois livros meus inspirados em artistas plásticos. Ambos os parceiros retratam a cara do nosso país e de sua gente, as nossas festas religiosas ou não, nossas comidas e formas de expressar a vida. O primeiro livro é Mágica Terra Brasileira, publicado pela Formato em 2006, com poesias inspiradas numa pintora mineira, Meiga Vasconcelos. Ela retrata Minas de uma maneira lírica, lúdica, religiosa, social e poética _ o que, na verdade, acaba sendo o retrato de todo o país. O outro livro, Ciranda Brasileira, Editora Paulus, também lançado em 2006, pretende fazer a mesma viagem mas pelo nordeste brasileiro, que tanto me toca. Acho que mineiros e nordestinos têm muitas aproximações, sobretudo as sentimentais. Sempre amei a literatura de cordel e as xilogravuras, sobretudo a obra de um J. Borges, o ilustrador do livro. Primeiramente, nasceram alguns poemas sobre as xilogravuras dele que eu tinha em casa. Depois, veio a vontade de fazer um livro, acrescentando novos poemas. A Internet é mágica e me ajudou a localizar em Bezerros, cidadezinha do interior, o xilogravurista e cordelista pernambucano. Combinamos que ele selecionaria obras que falassem ao universo da criança e do adolescente. Ele selecionou 30 xilogravuras maravilhosas. Foi só sentar, olhar, ver, enxergar, ler e fazer com palavras aquela cena, aqueles personagens, aqueles toques de rude ternura.

 

                   

 

retina de... NILMA LACERDA

 
LEITURAS À BEIRA DA PENA –
O QUE LÊ UMA ESCRITORA PARA PODER ESCREVER
 
Romances, contos, poemas nascem de uma necessidade de expressão, vêm de um incômodo da existência, nunca de uma alegria ou de uma sensação de bem-estar. A literatura é uma experiência que pede deságüe, em folha de papel ou tela, para alcançar a comunicação com o bisbilhoteiro que chega, e quer ver o quisto do outro lancetado, sangue e pus de palavras. (1)

Sangue, pus e palavras alimentam-se de outros sangues, outras palavras, outras vozes e caldos de bactérias. Ao escrever, uma escritora carrega consigo feridas dos outros, orgasmos e êxtases alheios e próprios. E nisso tem o dicionário a oferecer grafia e sentidos das palavras. Escrevo dentro da biblioteca, pelos corredores dela, entre as estantes, com as janelas abertas, para deixar entrar e sair a balbúrdia pertinente à escrita. Quando escrevo literatura ou crítica, sou antena e radar, windows
(2) abrindo os arquivos em busca daquilo de que preciso para infectar minha ferida, pois ela só chegará à saúde se lutar para produzir seus anticorpos.

Uma de minhas mais recentes feridas vem da experiência narrada por um acadêmico de medicina, vivida em plantão de pronto-socorro num dos hospitais públicos mais importantes e problemáticos da cidade do Rio, esta cidade-feita-ferida. Carlos Eduardo passou por uma situação bizarra, assustadora e com seu lado de humor.
(3) Convidei-o a escrever o que contava, ele aceitou, e acabou não conseguindo fazê-lo durante o semestre letivo, enquanto em mim a história latejava, outro quisto inflamado vindo a furo.

Tinha ido recentemente à Cidade do México, me abismado pela primeira vez frente a uma pirâmide. Andei pelos caminhos mortos de Teotihuacan, vislumbrei casas e templos, os corpos de pedra enfeitiçados à espera do humano que os habite ou contemple. Esculpida nas colunas do Quetzal-Papalotl, uma Quetzal-mariposa me observava; os olhos de obsidiana não me faziam qualquer pergunta, era natural eu estar ali, natural minha disposição de conhecer o que, afinal, não passa de voltas do mesmo. Subi e desci escadas na cidade deserta, turistas e camelôs como rastros de uma vida circunstancial e diurna. Voltei impressionada, me impressiona muito a morte das cidades.

Com a história de Carlos Eduardo pulsando, um parágrafo inicial se arrumando na cabeça, memorizado enquanto dirigia o carro pela avenida Brasil, artéria central de ligação da zona oeste ao centro do Rio, e que redigi tão logo cheguei à escola em que ia dar uma aula, estava de novo imersa no processo de criação. “Teotihuacan, a Cidade dos Mortos” começava a ganhar seu contorno.

Em casa, abri gavetas, busquei o material de viagem que sempre coleto, Teotihuacan – Historia, arte y monumentos, santinhos, marcadores de livros em casca de árvore, um fac-símile enviado a Nélida Piñon (que se hospedava no mesmo hotel em que eu), cujo assunto é “Carta Poniatowska”. Li todo esse material, enquanto me lembrava de um conto, um conto que ia me ajudar, devia procurá-lo, era de Cortázar, estava certa. De que falava o conto? Por que eu o procurava? Busca instintiva, sem clareza ou teoria formulada, eu trabalhava, dava conta das tarefas, e a busca acontecendo, incessante, os arquivos verificados um a um, que conto é esse, do que fala? A memória ativa, interessada, movimento incessante, vai desfazendo a bruma, lá estava “La Noche Boca Arriba”, no volume Ritos, da coleção Los Relatos, da Alianza Editorial. Li, junto à bica de fel e mel.

E a idéia veio clara: este “Noite De Boca Pra Cima”
(4) é um conto de espelhos, de sonhos espelhados, e por esse caminho deve seguir meu conto, ainda hoje não-escrito, e já se escrevendo, no penhor que é essa descrição do processo de leituras para a escrita.

Já inventariei, em outros momentos, as leituras feitas durante a escrita de novelas ou romances, fortunas de leituras que tenho anotadas no texto de alguma palestra, em cadernos de anotações, ou Em Vinha-d’alhos, diário de Olho de Rembrandt,
(5) diário de ficção que acompanha o romance escrito como tese de doutorado, com orientação de Silviano Santiago, e onde se detalham as leituras que realizei por gozo e necessidade. Leio sempre quando estou escrevendo, mesmo se meu leitor predominante é criança, e o texto é de umas poucas laudas. Posso ler Morte em Veneza, de Thomas Mann, e consultar verbetes no Dicionário dos Símbolos, de Chevalier e Gheerbrant, para escrever Um Dente de Leite, Um Saco de Ossinhos, voltado aos leitores infantis. Posso ler Retrato do Artista Quando Jovem, de James Joyce, para escrever Viver É Feito à Mão / Viver É Risco em Vermelho, novela para jovens; li o jornal e mitos gregos, para escrever Manual de Tapeçaria, romance. Se tanto leio, igualmente escuto, venham as vozes de onde vierem, estejam impressas ou circulando sem patrão, navegantes diáfanas ou espessas, vindo pelas horas do dia ou da noite, tomando de assalto ouvidos e alma.

História que me contam na conversa desinteressada de todo dia periga ressurgir escrita; história que leio periga de se transformar, virar numa outra fantasia da história original.

No conto de Cortázar, um jovem motociclista sofre um acidente, é socorrido e acometido, no hospital, de delírios muito vivos, em que se vê como um indígena cruelmente perseguido por inimigos; alternam-se o acordar e o dormir, cheiros de hospital, vozes de companheiros de enfermaria, perseguição pela terra úmida, a morte roçando a pele dele. Na disputa crua entre vigília e delírio, o motociclista sofre intensamente até a consciência final de que o real é esta guerra, esta perseguição, e a morte que logo vai ocorrer, o inegável cheiro da morte na face do sacrificador que se aproxima, enquanto o sonho é o outro, aquele em que, montado em um inseto de metal e andando por ruas do futuro, ele se acidentara e, levado ao hospital, sonhava que era um jovem indígena perseguido durante a guerra florida, levado ao altar de um sacrifício asteca.

A web
(6) me informa que a guerra florida, anunciada na epígrafe do conto, era uma festa sacrificial, na qual o inimigo capturado devia ser oferecido aos deuses como tributo à continuação do ritmo vital do mundo. Em face da morte, essa noite com a boca pra cima, o guerreiro inventa o tempo futuro no qual se refugiar, alcança pelos instantes do seu delírio o tempo longínquo das cruentas perseguições astecas.

A escritora não inventa tempos, não está envolvida em guerras floridas. Faz apenas o seu trabalho – a escrita de um presente incessante, que oferece à leitura. Ao fazer isso, ela também se condena ao presente, lendo. Que presente insensato, dádiva e percurso sem saída, não admira que de Borges a Umberto Eco, e em muitos outros antes deles, a biblioteca seja representada como labirinto. Para não sair dele, pois sair é ficar sem palavras, sem escrita, a escritora lê e escreve depois de ler, e escreve enquanto lê ou lê enquanto escreve, nunca se sabe a ordem.

E como esta escritora é também professora, vício que não perde, ela toca na questão básica da autoria: não há aluno ou aluna que possa escrever se não ler e não ouvir as vozes em circulação à sua volta. E como esta escritora vive a fazer promessas, se meu caríssimo amigo Ezequiel e os outros leitores e as outras leitoras desejarem e permitirem, ela pretende voltar a este espaço com “Teotihuacan, a Cidade dos Mortos”, para conferência geral das leituras à beira da pena, ou das teclas.
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Nilma Lacerda é escritora, autora de Manual de Tapeçaria, As Fatias do Mundo, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio e Pena de Ganso, entre outras obras. É também professora da Universidade Federal Fluminense.

 

NOTAS

(1) Quer ver aí também o próprio quisto que ainda não conseguiu expor, mas isso são outras teorias.
(2) Nunca esquecer que todo o aparato da informática constrói-se na extrema similaridade do funcionamento cerebral humano, e que toma para si processos já percorridos na história da leitura e da escrita.
(3) O acadêmico Carlos Eduardo de Meio e Silva é aluno da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde a psiquiatra e professora Alicia Navarro de Souza me convidou para desenvolvermos a experiência de ministrar uma disciplina eletiva, Reflexão sobre a Prática Médica – Literatura e Medicina, que segue para seu quarto semestre consecutivo. A narrativa de Carlos Eduardo é feita em uma das aulas do segundo semestre de 2006.
(4) Tradução do título para este trabalho.
(5) Ainda inéditos, diário e romance.
(6) A web já teve outros nomes: biblioteca de Alexandria talvez seja o mais antigo deles. Como o que ganha outros nomes, ganha com eles novas feições, a web – essa rede www. – acolhe com freqüência produções equivocadas.

 

 

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