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LEITURAS À
BEIRA DA PENA –
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O QUE LÊ UMA
ESCRITORA PARA PODER ESCREVER
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Romances,
contos, poemas nascem de uma necessidade de
expressão, vêm de um incômodo da existência,
nunca de uma alegria ou de uma sensação de
bem-estar. A literatura é uma experiência que
pede deságüe, em folha de papel ou tela, para
alcançar a comunicação com o bisbilhoteiro que
chega, e quer ver o quisto do outro lancetado,
sangue e pus de palavras.
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Sangue, pus e palavras alimentam-se de outros
sangues, outras palavras, outras vozes e
caldos de bactérias. Ao escrever, uma
escritora carrega consigo feridas dos outros,
orgasmos e êxtases alheios e próprios. E nisso
tem o dicionário a oferecer grafia e sentidos
das palavras. Escrevo dentro da biblioteca,
pelos corredores dela, entre as estantes, com
as janelas abertas, para deixar entrar e sair
a balbúrdia pertinente à escrita. Quando
escrevo literatura ou crítica, sou antena e
radar, windows(2)
abrindo os arquivos em
busca daquilo de que preciso para infectar
minha ferida, pois ela só chegará à saúde se
lutar para produzir seus anticorpos.
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Uma de minhas mais recentes feridas vem da
experiência narrada por um acadêmico de
medicina, vivida em plantão de pronto-socorro
num dos hospitais públicos mais importantes e
problemáticos da cidade do Rio, esta
cidade-feita-ferida. Carlos Eduardo passou por
uma situação bizarra, assustadora e com seu
lado de humor.
(3)
Convidei-o a escrever o que
contava, ele aceitou, e acabou não conseguindo
fazê-lo durante o semestre letivo, enquanto em
mim a história latejava, outro quisto
inflamado vindo a furo.
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Tinha ido recentemente à Cidade do México, me
abismado pela primeira vez frente a uma
pirâmide. Andei pelos caminhos mortos de
Teotihuacan, vislumbrei casas e templos, os
corpos de pedra enfeitiçados à espera do
humano que os habite ou contemple. Esculpida
nas colunas do Quetzal-Papalotl, uma
Quetzal-mariposa me observava; os olhos de
obsidiana não me faziam qualquer pergunta, era
natural eu estar ali, natural minha disposição
de conhecer o que, afinal, não passa de voltas
do mesmo. Subi e desci escadas na cidade
deserta, turistas e camelôs como rastros de
uma vida circunstancial e diurna. Voltei
impressionada, me impressiona muito a morte
das cidades.
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Com a história de Carlos Eduardo pulsando, um
parágrafo inicial se arrumando na cabeça,
memorizado enquanto dirigia o carro pela
avenida Brasil, artéria central de ligação da
zona oeste ao centro do Rio, e que redigi tão
logo cheguei à escola em que ia dar uma aula,
estava de novo imersa no processo de criação.
“Teotihuacan, a Cidade dos Mortos” começava a
ganhar seu contorno.
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Em casa, abri gavetas, busquei o material de
viagem que sempre coleto, Teotihuacan –
Historia, arte y monumentos, santinhos,
marcadores de livros em casca de árvore, um
fac-símile enviado a Nélida Piñon (que se
hospedava no mesmo hotel em que eu), cujo
assunto é “Carta Poniatowska”. Li todo esse
material, enquanto me lembrava de um conto, um
conto que ia me ajudar, devia procurá-lo, era
de Cortázar, estava certa. De que falava o
conto? Por que eu o procurava? Busca
instintiva, sem clareza ou teoria formulada,
eu trabalhava, dava conta das tarefas, e a
busca acontecendo, incessante, os arquivos
verificados um a um, que conto é esse, do que
fala? A memória ativa, interessada, movimento
incessante, vai desfazendo a bruma, lá estava
“La Noche Boca Arriba”, no volume Ritos, da
coleção Los Relatos, da Alianza Editorial. Li,
junto à bica de fel e mel.
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E a idéia veio clara: este “Noite De Boca Pra
Cima”
(4)
é um conto
de espelhos, de sonhos espelhados, e por esse
caminho deve seguir meu conto, ainda hoje
não-escrito, e já se escrevendo, no penhor que
é essa descrição do processo de leituras para
a escrita.
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Já inventariei, em outros momentos, as
leituras feitas durante a escrita de novelas
ou romances, fortunas de leituras que tenho
anotadas no texto de alguma palestra, em
cadernos de anotações, ou Em Vinha-d’alhos,
diário de Olho de Rembrandt,
(5) diário de ficção
que acompanha o romance escrito como tese de
doutorado, com orientação de Silviano
Santiago, e onde se detalham as leituras que
realizei por gozo e necessidade. Leio sempre
quando estou escrevendo, mesmo se meu leitor
predominante é criança, e o texto é de umas
poucas laudas. Posso ler Morte em Veneza, de
Thomas Mann, e consultar verbetes no
Dicionário dos Símbolos, de Chevalier e
Gheerbrant, para escrever Um Dente de Leite,
Um Saco de Ossinhos, voltado aos leitores
infantis. Posso ler Retrato do Artista Quando
Jovem, de James Joyce, para escrever Viver É
Feito à Mão / Viver É Risco em Vermelho,
novela para jovens; li o jornal e mitos
gregos, para escrever Manual de Tapeçaria,
romance. Se tanto leio, igualmente escuto,
venham as vozes de onde vierem, estejam
impressas ou circulando sem patrão, navegantes
diáfanas ou espessas, vindo pelas horas do dia
ou da noite, tomando de assalto ouvidos e
alma.
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História que me contam na conversa
desinteressada de todo dia periga ressurgir
escrita; história que leio periga de se
transformar, virar numa outra fantasia da
história original.
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No conto de Cortázar, um jovem motociclista
sofre um acidente, é socorrido e acometido, no
hospital, de delírios muito vivos, em que se
vê como um indígena cruelmente perseguido por
inimigos; alternam-se o acordar e o dormir,
cheiros de hospital, vozes de companheiros de
enfermaria, perseguição pela terra úmida, a
morte roçando a pele dele. Na disputa crua
entre vigília e delírio, o motociclista sofre
intensamente até a consciência final de que o
real é esta guerra, esta perseguição, e a
morte que logo vai ocorrer, o inegável cheiro
da morte na face do sacrificador que se
aproxima, enquanto o sonho é o outro, aquele
em que, montado em um inseto de metal e
andando por ruas do futuro, ele se acidentara
e, levado ao hospital, sonhava que era um
jovem indígena perseguido durante a guerra
florida, levado ao altar de um sacrifício
asteca.
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A web
(6) me informa que a guerra florida,
anunciada na epígrafe do conto, era uma festa
sacrificial, na qual o inimigo capturado devia
ser oferecido aos deuses como tributo à
continuação do ritmo vital do mundo. Em face
da morte, essa noite com a boca pra cima, o
guerreiro inventa o tempo futuro no qual se
refugiar, alcança pelos instantes do seu
delírio o tempo longínquo das cruentas
perseguições astecas.
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A escritora não inventa tempos, não está
envolvida em guerras floridas. Faz apenas o
seu trabalho – a escrita de um presente
incessante, que oferece à leitura. Ao fazer
isso, ela também se condena ao presente,
lendo. Que presente insensato, dádiva e
percurso sem saída, não admira que de Borges a
Umberto Eco, e em muitos outros antes deles, a
biblioteca seja representada como labirinto.
Para não sair dele, pois sair é ficar sem
palavras, sem escrita, a escritora lê e
escreve depois de ler, e escreve enquanto lê
ou lê enquanto escreve, nunca se sabe a ordem.
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E como esta escritora é também professora,
vício que não perde, ela toca na questão
básica da autoria: não há aluno ou aluna que
possa escrever se não ler e não ouvir as vozes
em circulação à sua volta. E como esta
escritora vive a fazer promessas, se meu
caríssimo amigo Ezequiel e os outros leitores
e as outras leitoras desejarem e permitirem,
ela pretende voltar a este espaço com
“Teotihuacan, a Cidade dos Mortos”, para
conferência geral das leituras à beira da
pena, ou das teclas.
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Nilma Lacerda é escritora, autora de
Manual de Tapeçaria, As Fatias do Mundo,
Cartas do São Francisco: Conversas com
Rilke à Beira do Rio e Pena de Ganso,
entre outras obras. É também professora da
Universidade Federal Fluminense.
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NOTAS
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(1) Quer ver
aí também o próprio quisto que ainda não
conseguiu expor, mas isso são outras
teorias.
(2) Nunca esquecer que todo o aparato da
informática constrói-se na extrema
similaridade do funcionamento cerebral
humano, e que toma para si processos já
percorridos na história da leitura e da
escrita.
(3) O acadêmico Carlos Eduardo de Meio e
Silva é aluno da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
onde a psiquiatra e professora Alicia
Navarro de Souza me convidou para
desenvolvermos a experiência de ministrar
uma disciplina eletiva, Reflexão sobre a
Prática Médica – Literatura e Medicina,
que segue para seu quarto semestre
consecutivo. A narrativa de Carlos Eduardo
é feita em uma das aulas do segundo
semestre de 2006.
(4) Tradução do título para este trabalho.
(5) Ainda inéditos, diário e romance.
(6) A web já teve outros nomes: biblioteca
de Alexandria talvez seja o mais antigo
deles. Como o que ganha outros nomes,
ganha com eles novas feições, a web – essa
rede www. – acolhe com freqüência
produções equivocadas.