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...Os três meninos, trêmulos e afobados,
partilharam o alimento, utilizando a mesma
colher, até limparem o prato |
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VINTE CENTAVOS
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Carlos Eduardo de Oliveira Klébis

Na hora do recreio,
Micaelen veio procurar o professor de português na
sala dos professores.
– Professor, o senhor pode vir aqui fora um
instantinho?
– Claro que sim! O que foi? – disse o professor indo
de encontro à aluna que o esperava do lado de fora
da porta.
– O senhor pode me arrumar vinte centavos?
– Vinte centavos? O que é que você vai comprar com
isso, Micaelen?
– Um chupe-chupe de abacaxi, professor.
O professor reparou que a menina estava com o prato
da merenda escolar nas mãos e que ainda não havia
tocado na comida, que parecia ser arroz branco com
repolho refogado. Levou a mão ao bolso e sacou de lá
duas moedas.
– Toma, meu anjo; aqui estão os vinte centavos para
você comprar sua sobremesa. Mas prometa que antes
você vai comer a merenda da escola, se não ela vai
esfriar.
– Oba! Obrigado, professor! – agradeceu e saiu em
disparada, equilibrando o prato nas mãos, em direção
ao portão da escola, tão rápido que, no quinto ou
sexto passo, a tira de sua sandália não resistiu e
quebrou.
– Vem cá que eu ajudo a consertar sua sandália,
Micaelen. – disse o professor que havia ficado na
porta espiando.
Micaelen, apesar de ter dez anos, era tão miudinha
que mais parecia uma criança de seis ou sete. Quando
ela entregou a sandália nas mãos do professor,
esbaforida e morrendo de pressa, ele percebeu que a
sandália, além de velha e toda remendada com fita
crepe, era muito maior do que o pé da menina.
– Nossa! Que sandália grande, Micaelen!
– Ai, é da minha mãe, professor. Minha mãe me mata
se eu chegar em casa com a sandália dela quebrada,
porque hoje é o dia de ela ir à igreja e...
– Fique calma. – interrompeu o professor – Está
fácil de consertar. Eu vou pegar o grampeador na
secretaria para reforçar esta parte aqui, depois eu
passo um pouco de fita adesiva e vai ficar prontinha
para usar outra vez.
– Anda logo, professor! Vai acabar o recreio!
– Calma, meu anjo, eu já estou arrumando. É que eu
quero caprichar para a sandália não quebrar de novo.
Micaelen sentou-se ao chão um pouco aborrecida e deu
duas colheradas no arroz com repolho.
– Antes de você acabar de comer a sua merenda, eu já
vou ter terminado. – disse o professor compenetrado
na reforma improvisada da sandália.
– Eu não posso, professor! Vai logo, eu estou com
muita pressa!
– Então, faça o seguinte, Micaelen: deixe o outro pé
da sandália aqui comigo também, fique descalça uns
minutinhos e vá lá comprar seu chupe-chupe. Daqui a
pouco você volte para pegar suas sandálias comigo.
Mal o professor terminava de dizer isso, Micaelen se
pôs de pé e, novamente equilibrando o prato de
merenda numa das mãos e com os vinte centavos na
outra, saiu correndo em direção ao portão da escola.
– Para que tanta pressa, menina?!
E Micaelen respondeu alteando a voz, enquanto já
ganhava distância na corrida:
– É que meus irmãos estão me esperando...
Então o professor reparou que, do lado de fora do
portão da escola, três meninos tão miudinhos quanto
Micaelen aguardavam ansiosos.

A pequena Micaelen
chegou ao portão, deu mais uma boa colherada no
arroz com repolho e passou o prato, ainda com uma
boa quantidade da merenda, pelas grades do portão.
Os três meninos, trêmulos e afobados, partilharam o
alimento, utilizando a mesma colher, até limparem o
prato. Micaelen entregou a um dos irmãos os vinte
centavos; o menino atravessou a rua correndo,
exultante; voltou com um chupe-chupe de abacaxi nas
mãos e o passou à irmã, que repartiu o doce em
quatro partes iguais. Rapidamente, a sobremesa
desapareceu nas bocas famintas daquelas crianças.
O professor abaixou os olhos e mirou atônito as
sandálias surradas em suas mãos, como que pensasse:
“Meu Deus!”.
Micaelen vinha descalça e contente pelo corredor da
sala dos professores, abrindo um sorriso melecado de
chupe-chupe de abacaxi.
– Conseguiu consertar, professor?
– Consegui sim, meu anjo.
Olhando para os seus sapatos confortáveis e bem
engraxados, enquanto soava o sinal anunciando o fim
do recreio, o professor, que nunca havia
experimentado um chupe-chupe de abacaxi na vida,
deixou uma lágrima escapar por debaixo dos óculos.
– O que foi, professor? – perguntou Micaelen
preocupada, como se nunca tivesse visto um homem
daquele tamanho chorando.
– Nada não, meu anjinho. Nada não...
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