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Poema

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... e
as horas da manhã nas quais, como que
por descuido, o professor
cumpre os seus deveres conjugais e
desjejua...
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CAVALHEIRO SÓ
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Pablo Neruda *
(Trad. José Paulo Paes)
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Os jovens
homossexuais e as mocinhas amorosas,
e as longas viúvas que sofrem de insônia
delirante,
e as jovens senhoras há trinta horas
emprenhadas,
e os gatos roufenhos que atravessam meu
jardim em trevas,
como um colar de palpitantes ostras sexuais
rodeiam minha casa solitária,
inimigos jurados de minha alma,
conspiradores em traje de dormir,
que trocaram por senha grandes beijos
espessos.
O verão radiante conduz os namorados
em uniformes regimentos melancólicos
de pares gordos magros e alegres tristes
pares:
sob os coqueiros elegantes, junto ao mar e à
lua,
há uma vida contínua de calças e galinhas,
um rumor de meias de seda acariciadas,
e seios femininos a brilhar como dois olhos.
O pequeno empregado, depois de tanta coisa,
depois do tédio semanal e das novelas lidas
na cama toda noite,
seduziu sua vizinha inapelavelmente
e a leva agora a cinemas miseráveis
onde os heróis são potros ou são príncipes
apaixonados,
e lhe acaricia as pernas, véu macio,
com suas mãos ardentes, úmidas que cheiram a
cigarro
As tardes do sedutor e as noites dos esposos
se unem, dois lençóis que me sepultam,
e as horas de após almoço em que os jovens
estudantes
e as jovens estudantes, e os padres se
masturbam,
e os animais fornicam sem rodeios
e as abelhas cheiram a sangue e zumbem
coléricas as moscas,
e os primos brincam de estranho jeito com as
primas,
e os médicos olham com fúria o marido da
jovem paciente,
e as horas da manhã nas quais, como que por
descuido, o professor
cumpre os seus deveres conjugais e desjejua,
e inda mais os adúlteros, que com amor
verdadeiro se amam
sobre leitos altos, amplos como embarcações;
seguramente, eternamente me rodeia
este respiratório e enredado grande bosque
com grandes flores e com dentaduras
e raízes negras em forma de unhas e sapatos.
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Pablo Neruda (1904-1973)
foi um dos maiores poetas em língua espanhola.
Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1971.
Os seus escritos são marcados pela emoção e
solidariedade.
"Confieso que he vivido"
é o título da auto-biografia póstuma do autor,
que merece ser conhecida e lida por ser um
retrato fiel do seu tempo. Eis uma pergunta
oportuna de Neruda: "Porque em tempos difíceis
se escreve com tinta invisível?"
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