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o
letramento se distingue da alfabetização, pois
pressupõe que o indivíduo saiba responder às
exigências de leitura e de escrita que a sociedade
faz continuamente...
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Vanessa Souza da
Silva
(*)
Apesar de a presença do ser-leitor ressoar em nossa
trajetória ontológica, como diz Zaccur (2001, p.34),
pesquisas da UNESCO , Nova Escola , SAEB e outros
órgãos afins retratam que nossos alunos continuam
com deficiências na aquisição de conhecimento da
língua materna. De acordo com dados do PISA
(Programme for International Student Assessment),
exame realizado pela UNESCO em parceria com a OCDE,
o Brasil tem amargado nos últimos lugares entre 41
países, evidenciando que nossa nação precisa
reverter esse quadro.
Como educadores que somos não é possível fecharmos
os olhos diante da questão da linguagem como
“caminho de invenção da cidadania” (FREIRE, 1993,
p.41). Se o homem se constitui via linguagem, não há
dúvidas de que a escola é, também, responsável por
essa constituição. Por outro lado, se a escrita é
uma das principais chaves para a aquisição do
conhecimento, ensinar a ler e a escrever de modo a
atender os usos sociais que o mundo letrado requer
significa promover a inserção social. Então, quando
a escola promove o letramento, ela está, na verdade,
promovendo a inclusão social e dando ao aluno
condição para o pleno exercício da sua cidadania. O
letramento se torna, nesse contexto, uma “questão de
vida” (BOZZA, 2005,p.249).
Para tanto, o currículo escolar deve oferecer um
espaço para que as práticas de letramento se
operacionalizem. O papel transformador da escola
amplia-se cada vez mais nessa era marcada pela
competição em que progressos científicos e avanços
tecnológicos definem novas exigências para os jovens
que ingressarão no mercado de trabalho. Tal
realidade exige uma revisão dos currículos escolares
e da função da escola no que diz respeito à formação
de um ser pleno, permitindo aos jovens ter acesso ao
conjunto de conhecimentos socialmente elaborados e
reconhecidos como necessários ao exercício da
cidadania. Para ser satisfatória em sua missão, a
escola deve manter a aprendizagem, a permanência e o
sucesso escolar, o que só é possível através do uso
legítimo da palavra, em suma, via letramento.
O letramento é uma palavra que entrou há pouco tempo
em nossa língua. Inclusive o dicionário Aurélio não
registra essa palavra. Se voltarmos há mais de um
século atrás, encontraremos essa palavra num
dicionário de Caldas Aulete intitulado Dicionário
Contemporâneo da Língua Portuguesa, porém com um
sentido diferente do que costumamos usar na
atualidade, remetendo ao verbo “letrar” com o
sentido de “investigar”, apesar de não se restringir
a isso.
Mesmo sabendo que esse tema se configura sempre num
desafio, SOARES (2002, p.18) define o letramento
como resultado da ação de ensinar ou de aprender a
ler e escrever, ou seja, “o estado ou a condição que
adquire um grupo social ou um indivíduo como
conseqüência de ter-se apropriado da escrita”. Além
disso, convém destacar que o letramento focaliza os
aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita,
devendo ser considerado como um “continuum” (TFOUNI,
2005).
Entretanto, o letramento se distingue da
alfabetização, pois pressupõe que o indivíduo saiba
responder às exigências de leitura e de escrita que
a sociedade faz continuamente, ou seja, para uma
prática social, não se restringindo à aquisição da
língua. Todavia, o indivíduo pode ser alfabetizado,
saber ler e escrever, mas não exercer práticas de
leitura, não sendo capaz de interpretar um texto:
um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um
indivíduo letrado; alfabetizado é aquele indivíduo
que sabe ler e escrever; já o indivíduo letrado, o
indivíduo que vive em estado de letramento, é não só
aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa
socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura
e a escrita, responde adequadamente às demandas
sociais de leitura e de escrita. (SOARES, 2002,
p.40)
Isso nos faz refletir até que ponto a prática
docente dos nossos professores tem contribuído para
o exercício da cidadania dos nossos alunos e até que
ponto a leitura oferecida pela escola faz parte do
mundo deles, para que a teoria, da palavra, saia do
papel e sirva como instrumento de luta para a
assunção plena da cidadania. O que se nota é que
muitas pessoas se alfabetizam, conseguem ler e
escrever, mas não são necessariamente capazes de
incorporar a prática da leitura e da escrita para
envolver-se com as práticas sociais de escrita:
não lêem livros, jornais, revistas, não sabem
redigir um ofício, um requerimento, uma declaração,
não preenchem um formulário, sentem dificuldade para
escrever um simples telegrama, uma carta, não
conseguem encontrar informações num catálogo
telefônico, num contato de trabalho, numa conta de
luz, numa bula de remédio.”(op. cit. p.46)
Ao ver que muitos dos nossos alunos fazem parte
desses dados e, ao ouvir comentários como: “O aluno
tal não escreve direito, o fulano nada lê, aquela
menina nem sabe falar sua opinião acerca de um
texto”, isso nos frustra, pois também é nossa função
ser agente de mudança dessa situação. É função da
escola munir o aluno das ferramentas da leitura para
que ele, enquanto cidadão, esteja preparado para o
exercício de sua cidadania.
Se os índices e estatísticas acusam a dificuldade
dos alunos no que diz respeito à palavra, é sinal
que a dicotomia presente no mundo da leitura
prevalece e Freire nos indica um caminho quando
afirma que
Ao ler palavras, a escola se torna um lugar especial
que nos ensina a ler apenas as “palavras da escola”
e não as “palavras da realidade”. O outro mundo, o
dos fatos, o mundo da vida, o mundo no qual os
eventos estão muito vivos, o mundo das lutas, o
mundo da discriminação e da crise econômica (todas
essas coisas estão aí) não tem contato algum com os
alunos na escola através das palavras que a escola
exige que eles leiam. (FREIRE in ZACCUR, 2001, p.
22)
Assim, é notório que a escola está aumentando a
distância entre as palavras que lemos e o mundo em
que vivemos. Se o ato de estudar implica sempre o de
ler, mesmo que neste não se esgote (FREIRE, 1993,
p.29), a escola como sendo a mais importante agência
de letramento deve ser o lugar que considera a
aquisição da escrita como uma prática discursiva que
na medida em que possibilita uma leitura crítica da
realidade, se constitui como um importante
instrumento de resgate da cidadania e que reforça o
engajamento do cidadão nos movimentos sociais que
lutam pela melhoria de qualidade de vida e pela
transformação social. (FREIRE, 1991 in KLEIMAN, op.
cit, p. 48).
Não há dúvidas de que, na sociedade em que
vivemos, urge a necessidade de que essa dicotomia
apontada por Freire deixe de existir e que o
letramento seja um direito de todos. Somente quando
a leitura da palavra ensinada na escola fizer
sentido para o aluno e encontrar sentido em sua
leitura de mundo teremos resultados mais favoráveis
no que diz respeito ao ensino da língua materna no
Brasil. Somente quando isso acontecer, teremos
cidadãos mais aptos de usarem a palavra como
instrumento de transformação social rumo a uma
sociedade que faça ouvir a voz daquele que constrói
a sua história e pouco espaço tem para gozar dos
seus bens: o povo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOZZA, Sandra. Letramento: uma questão de
vida. In: Temas em Educação IV- Jornadas 2005.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança - um
encontro com a Pedagogia do oprimido. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1993.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três
gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
TFOUNI, Leda V. Letramento e alfabetização.
São Paulo, Cortez, 2005.
ZACCUR, Edwiges (org). A magia da linguagem.
Rio de janeiro, DP&A: SEPE, 2001.
* Vanessa Souza da Silva possui
licenciatura em Letras (UFJF) e especialização em
Linguagem, Imagens e Representações (USS). É
mestranda em Educação (UFF), tem experiência com o
ensino da língua materna há catorze anos, na rede
pública de ensino, e experiência com coordenação de
curso vestibular e de idiomas para alunos de classes
populares. Publicou o texto CIÊNCIA MODERNA: QUEM
VAI PAGAR A CONTA? na Revista História, Imagem e
Narrativas.
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