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... O repensar aromas e paladares, um café
ou um chá e biscoitos de polvilho ao final
do declamar poemas e contar memórias
poéticas. Eram as professoras da turma Leste
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REMEMORANDO O LER
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Luciana
Fernandes Ribeiro
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Este texto é resultado
de uma experiência com a técnica Caixas da Memória,
desenvolvida pela autora junto a várias turmas de
professoras do Projeto LER PARA APRENDER - SP,
2004-2007.
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É tarde quente das
vésperas do Natal, dia que convida a uma certa
melancolia, típica do reino de Noel.
Então é preciso escrever, pelo menos uma lauda, bem
objetiva, do que foi a minha parte na trama desta
teia sapiens. E eu, aqui, travo o meu embate com a
senhora objetividade e nada sai sob seu domínio.
Talvez seja Morin, leitura dos últimos dias que me
convoca o demens e a sabedoria do amor e da poesia.
Portanto me rendo a ele, e agora escrevo uma trama,
talvez mais coerente com a mulher das caixas
coloridas, das velas e incensos, das balas durante a
leitura de O Glutão Literário, dos véus a rodopiar
nos sabáticos trabalhos dos últimos meses.
Mulher, entre tantas outras em maioria, que como eu,
trabalham nas terceiras e quartas-séries do ensino
fundamental I. Porém mulheres que têm manhãs e
tardes tomadas por este trabalho que tem extremo
encanto, mas também um grande cansaço. Então, eram
as bocejantes do acordar às cinco da manhã que
chegavam às salas de aula às oito. Eram as muitas,
das vespertinas três horas cujos intelectos se
esvaíam pelas janelas, cujos desejos eram pelas
portas de saída. Mas eram mulheres bravas, no melhor
sentido da bravura, que chegavam comigo aos finais
de tarde, mesmo com a pressa em assinar a lista,
mesmo com a vontade de partir.
O repensar dos tempos. Talvez fosse o que elas
reivindicassem com a sua rebeldia dos horários de
almoço e desse pedido insistente e desgastante pelo
término do trabalho antes das cinco horas. Talvez
sábados de menor duração, até o tempo da presença
efetiva do corpo e do espírito. Talvez três da
tarde.
O repensar aromas e paladares, um café ou um chá e
biscoitos de polvilho ao final do declamar poemas e
contar memórias poéticas. Eram as professoras da
turma Leste 3 que no nosso terceiro encontro, não
precisaram sair desesperadamente para o café. O café
foi à sala.
Talvez essa turma seja uma importante representação
do fenômeno Concurso Público e a Teia. Havia uma
tensão e uma grande expectativa em torno deste
evento, que tornou os sábados, próximos ao dia do
concurso, particularmente irritadiços e marcados por
informações e conteúdos que concorriam com as aulas.
Mulheres de Almodóvar, à beira de um ataque de
nervos.
Foram esses ataques diante dos textos da minha
primeira manhã que talvez nos tenham feito, a mim e
a elas, ler para aprender com essa leitura. Mas um
ler em que a irritação era legítima e podia ser
explícita. Isso as desconcertava. Eu registrava os
gestos, os sons, as posturas que elas desconheciam
de si mesmas. Eu pedia as sensações provocadas pelos
textos. Mas era a análise, a interpretação, a
objetividade que preponderavam. Experimentamos o que
era sentir, antes de interpretar. Percebemos nos
próprios movimentos de conversar sobre o que se
lera, o quanto já nos embrenhamos na rotineira
Leitura e Interpretação de textos. Fruição?? O que é
isso?
E as sensações das professoras, provocavam as minhas
novas leituras sobre o material que eu escolhera.
“Isso não é para professor”! “Quantos nomes em outra
Língua”!
Então o que surgia era um conjunto feminino que se
desvalorizava no gênero, sem lembrar que são
mulheres; que se desvalorizava nas possibilidades
intelectuais do seu exercício profissional. O que é
para quem? Existem essas fronteiras na leitura?
Serão essas mulheres um gueto? Desconcerto e novas
possibilidades foram surgindo nestes momentos que
foram de embate e de encanto, pois há mulheres tão
livres e brincantes que lidaram com a dificuldade
dos textos como o desafio do Novo.
Nesse ponto é preciso frisar que os professores de
Fudamental II se permitem o vôo com mais facilidade,
dada a brecha, brincadeira aceita. Turma Oeste 22, a
turma que eu ganhei, quando as turmas se perderam
nas salas e eu desesperadamente os tomei para mim.
Acertos por linhas tortas.
Segundo sábado em cada turma, arabescos ares de
Sherazade: dia de confecção das Caixas de Memória de
Leitura. Tardes de seus relatos. Ainda converso com
as caixas que eu guardo comigo e que me fizeram
perceber nuances dos percursos de leitura destas
professoras. Caixas que me contam de um metrópole
partida entre o leste e o oeste.
É no poente, onde os ônibus chegam mais tarde, que
se encontram as professoras migrantes do Paraná,
Pernambuco, Paraíba, Minas Gerais. São as mulheres
que trabalham nesse hemisfério da cidade que contam
das alfabetizações tardias, das repetências, do
analfabetismo de suas famílias, do difícil acesso
aos livros e bibliotecas, tantas vezes inexistentes
nas escolas freqüentadas por elas. Mas nessas salas
também estavam coordenadoras e diretoras, que em um
exercício de Experiência de Leitura, em narrativa de
Benjamin, podiam perceber a diferença de caminhos de
leitura e formação das professoras que ali estavam e
re-olhavam os seus próprios. Reconhecer-se em
privilégios.
Foi no Oriente que surgiram pistas de um maior
acesso a bibliotecas, da existência das famílias
leitoras, da leitura que se faz no dia-a-dia com os
alunos.
Pistas da dicotomia Centro- Periferia? Será possível
pensar que o ler se acende de um lado da cidade e se
obscurece do outro?? O que se dá com a leitura nessa
grande metrópole?? Questionamentos que nas brechas
de caronas e intervalos, nós professoras (Leila,
Llyca, Clara, Ana Marisa) nos púnhamos a fazer.
Eis aí um dos grandes nós da Teia, a coordenação dos
fios da docência, as escolhas do Ezequiel, as
bibliografias que aproximam os professores e o
desejo por conhecer o trabalho do outro, com a
vontade de ser também aluna.
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Foram sábados de lida árdua, cujo auxílio da Márcia,
da Gisele e de todos os outros funcionários foram
indispensáveis para que tudo corresse bem e para que
as minhas pesadas caixas coloridas chegassem a seu
destino.
Foram sábados de festa, do Grupo Canoeiro, Das
Caixeiras da Guia, do Grupo dos Flautins Matuás.
Música, ciranda e riso que tornaram os sábados leves
e brotaram sorrisos e movimentos nos rostos mais
carrancudos.
Houve feira do Livro e a sua busca pelos professores
foi considerável e importantíssima. Mas ela deixou
uma sensação de que é preciso mais. É preciso
Literatura em mais abundância, tanto a tão comentada
adulta atual, quanto a literatura infantil e
juvenil. As mulheres e homens da Teia trabalham com
crianças e jovens.
Foram sábados de ousadia: Turmas de Jundiaí. Dia de
entremeio de Llyca e Lu. Caixas e dramatização de
poemas. Memórias, sons e movimentos em luz de
retroprojetor e batidas de pandeiro.
Sábados de Fim de Teia: Bragança Paulista. Da
madrugada na Funcamp à espera do transporte. Da
turma dançante piqueniqueira. Bons sábados de
trabalho: receptividade e maior desenvoltura na
escrita. Sábados de conhecer outros professores e de
novamente querer ser aluna.
Sábados intensos de trabalho, de aprender, de ler
para e com outro, de buscar o sentir o ler e de
desconcertar o já lido. Sábados de perceber no
vai-vem da memória o quanto é importante o que já se
leu (Como?, Com quem?, Onde? Quando?) e o quanto
ainda há para ler e contar ao outro.
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(*) Luciana Fernandes
Ribeiro
Mestre pela Faculdade de Educação da Unicamp
e hoje professora da rede estadual de ensino de São
Paulo. Professora do Projeto TEIA DO SABER- CURSO
LER PARA APRENDER,
coordenado por Ezequiel Theodoro da Silva.
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