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... uma filosofia democrática da educação, que visava despertar no homem a vivência participativa, o espírito democrático, a compreensão de sua responsabilidade na vida da nação....

O LIVRO LEITURA DE PÉ DO CHÃO: 1963 (UMA CARTILHA DEMOCRÁTICA)
Maria Elizete Guimarães Carvalho (*)

INTRODUÇÃO

A década de sessenta testemunhou um conjunto de experiências educacionais de caráter popular que se opunha ao sistema regular de ensino desenvolvido nas escolas públicas, buscando a erradicação do analfabetismo e o desenvolvimento da consciência social e política dos setores populares.

Tais experiências desenvolviam-se, na maioria das vezes, com adultos e utilizavam material impresso, como livros ou cartilhas, produzidos pelos próprios organizadores, como foi o caso do livro para adultos utilizado pelo movimento “De Pé no Chão Também se Aprende a Ler”, Campanha educacional implantada pela Prefeitura do Natal em 23 de fevereiro de 1961, o qual focalizava conteúdos pedagógicos articulados com a vida e a realidade dos educandos, abordando temáticas que se agrupavam em lições.

Esse Livro de Leitura, também conhecido como Cartilha de Alfabetização de Adultos, foi lançado em abril de 1963, no âmbito da Campanha, por ocasião do Congresso de Cultura Popular realizado em Natal.

O LIVRO DE LEITURA “DE PÉ NO CHÃO”

A Cartilha de Alfabetização de adultos foi criada no âmbito de uma concepção libertadora de educação, onde alfabetizar e conscientizar não se distinguiam, estruturando-se a partir de grandes temas que abordavam a realidade político-social local, utilizando a linguagem/fala adulta, adequada ao alfabetizando.

Esse Livro de Leitura não se constituiu uma proposta original, mas uma adaptação do Livro de Leitura para adultos, do Movimento de Cultura Popular do Recife, às condições de Natal, desdobrando seu olhar para a realidade local. Os dois livros têm inspiração na cartilha cubana Venceremos, editada em 1961, para erradicação do analfabetismo.

Em Cuba é o tempo de uma Revolução em construção e já no exercício do poder; no Recife e em Natal é o tempo de uma Frente Política com forte núcleo ideológico de esquerda que busca caminhos e cujo poder não fora alcançado, embora detenha governos locais em Pernambuco e na capital do Rio Grande do Norte. (GÓES, 1995, p. 48).

Pelo visto, as cartilhas são de uma mesma época, em que o cenário histórico da América Latina apresenta convergências e desdobramentos específicos de cada região. A proposta metodológica das cartilhas brasileiras reunia em síntese o sistema Paulo Freire e a posição de Norma Porto Carreiro Coelho e Josina Maria Lopes de Godoy, que, apesar de apresentarem conflitos internos, “partiam da conscientização do educando, do despertar de sua consciência crítica, buscando um processo global de politização” (GÓES, 1991, p. 133).

Ainda no que diz respeito à metodologia, a Cartilha “De Pé no Chão” apresentava um grande número de exercícios, ênfase na repetição como reforço à aprendizagem e na exploração de fonemas, permitindo a criação de novas palavras.

Buscando atender o objetivo da Campanha – alfabetizar, conscientizando, esse Livro de Leitura dirige seu olhar para a realidade local, pois alfabetiza com “casebre”, “bambelô”, “estrada de barro”, “algodão”, “sal”, “minério”, “desemprego”... , enfatizando o conteúdo vivenciado pelo educando em seu espaço político-social. Tais temas abordam questões relacionadas à realidade do povo, sua luta pela sobrevivência, saúde, educação e dignidade.

Os conteúdos das leituras eram trabalhados, criando-se uma discussão com a linguagem conscientizadora de Paulo Freire, estando implícita (e explícita) em todo o processo de alfabetização uma filosofia democrática da educação, que visava despertar no homem a vivência participativa, o espírito democrático, a compreensão de sua responsabilidade na vida da nação. Assim, as lições discutiam temas que orientavam para essa vivência, para a formação de uma consciência política, articulada com as reivindicações sociais.

As leituras revelam os anseios do povo por saúde, trabalho, educação e por participação na vida política e social do país, sendo o ponto de partida para uma discussão conscientizadora, realizada nos Círculos de Cultura, tendo o sistema Paulo Freire como pressuposto de orientação.
As lições da Cartilha “De Pé no Chão” manifestam um conteúdo político-pedagógico que trabalha a realidade dos educandos, focalizando temas, como Voto; Vida – Saúde – Pão; Casa – Casebre; Operário – Família – Emprego; Escola – Acampamento – Livro, entre outros. É uma cartilha mimeografada, apresentando seis ilustrações fotográficas, com alguns “desenhos à bico de pena” (GÓES, 1995, p. 54).

Os professores exploravam os temas iniciando com questionamentos sobre o cotidiano dos alunos. Observe-se o depoimento de uma Professora participante da Campanha, sobre o processo de alfabetização a partir do tema “profissão” proposto pela cartilha:

Então você ia pegando as profissões das pessoas, os padeiros, os pintores, as costureiras, as pessoas que faziam bolo para vender na feira, e, cada aluno adulto da sala de aula dizia a profissão dele, certo? A lavadeira, “quantas peças de roupa você consegue lavar por dia”? (...) Então, as profissões passaram a ser valorizadas e o aluno passou a aprender a partir da realidade em que ele vivia. Rapidinho o aluno começou a fazer frases (já estava totalmente alfabetizado), de frases foi passando para os parágrafos e depois pequenos textos. Foi um trabalho muito bonito na época (RÓSA, 2002, p. 19).

Pelo visto, esse processo de alfabetização ampliava-se para um processo de conscientização, que além da escola, operava-se através da Praça de Cultura (parque infantil, bibliotecas, jornal mural, campo esportivo, fórum de debates), teatrinho do Povo, Museu de Arte Popular Câmara Cascudo e Congressos, que faziam parte de uma política cultural globalizante, onde a cultura popular tinha função desalienadora, constituindo-se instrumento de libertação nacional.

CONCLUSÃO

O Livro de Leitura “De Pé no Chão”, originado no bojo de uma política de cultura popular, traz manifesto, em sua proposta pedagógica de alfabetização, o empenho de conscientizar o povo para sua libertação econômico-social e política. Nesse sentido, são apresentados e discutidos os conteúdos das lições, que procuram educar para a democracia, com o objetivo de despertar no homem sua responsabilidade na vida da nação, conscientizando-o de sua realidade e possibilidade de transformação.

REFERÊNCIAS

GERMANO,
José Willington. Lendo e aprendendo: a campanha de pé no chão. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1989.

GÓES, Moacyr. De pé no chão também se aprende a ler: 1961-64: uma escola democrática. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1991.

_____. "Cuba-Recife-Natal: ou o sonho de três cartilhas de alfabetização para mudar o mundo". Contexto & Educação. Revista de Educación em América y el Caribe. p. 45-64, jul/set. 1995.

RÓSA, Ivoneide da C. Entrevista sobre a campanha De Pé no Chão. Natal,18 outubro 2002.

* Maria Elizete Guimarães Carvalho.  Doutora em Educação. Professora de História da Educação da Universidade Federal da Paraíba.

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