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a palavra existe para fazer existir o que
ainda não existe, a palavra só serve quando
reinventa a vida... |
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CARTA DE AMOR
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Jorge Miguel Marinho
(*)
Escrevo-te
para dizer que te amo, escrevo-te para dizer que
partilho a vida contigo, escrevo-te também para
dizer que sou tão pouco e esse pouco é tanto, é tão
grande e quase imenso quando comungo nas palavras
essa parte minha contigo. Escrevo-te porque entre
nós, amantes que somos, amigos, companheiros ou até
rivais, quem sabe quase inimigos, escrevo-te sim
porque entre nós e no meio de tudo a distância se
faz como um destino e todo o destino pede palavras
para se consolar. Escrevo-te porque vivo entre a
fala e o silêncio e nenhum deles me basta, porque é
urgente escrever aquilo que só se diz com palavras
na página branca ou que se guarda vazia esperando o
traçado de nós. Escrevo-te para existir, acredita,
ou não acredites por enquanto para eu escrever mais
e sempre. Escrevo-te para a vida não se fazer tão
pouca, substância brumosa, inflacionada de tudo e
tudo é nada, tu sabes, a vida é ávida de palavras,
palavras gravemente escritas na intimidade de uma
calma indiscreta ou que faz da tranqüilidade
inquietação, mais ainda, numa confissão quase
espontânea que somos nós dois. Escrevo-te porque, se
escrever não salva de todo, não escrever salva
menos, algumas vezes não salva nunca. Pois então,
recebe a minha carta, essas maltraçadas linhas, a
carta é tua, mostra às pessoas, àquelas pessoas em
que tu confias, é claro, ou em quem não confias, por
que não? Não te intimides, a palavra existe para
fazer existir o que ainda não existe, a palavra só
serve quando reinventa a vida, ela se atreve, acolhe
e foge, morre duradouramente para dar vez a palavras
que também ainda não existem, a palavra só interessa
quando é palavra de todos. Entendes? É por isso que
te escrevo, escrevo para ti que conheço tanto e mal
conheço, para te conhecer melhor me reconhecendo nas
palavras que te preparo, nas letras que escolho
preciosamente, por vezes com esmero, outras vezes me
querendo distraído, nessas palavras que merecemos e
ingenuamente julgamos nossas nesse exato momento em
que envio essa carta para ti e nesse outro momento,
agora, quando me lês. Como ainda é hoje, escrevo-te
para adiar amanhã, como não sei direito se há brisa
depois da janela, escrevo-te para supor uma
acolhedora atmosfera, escrevo-te porque chove,
escrevo-te, escrevo-te na continuidade do dia para
não fazer tanto frio, quem sabe para que o calor não
seja demais, para que a moça do tempo não morra nas
próximas estações, para que nada morra na brevidade
da vida. Escrevo-te para sentir que a solidão agora
é doce espera e que a separação nunca existe, jamais
existirá, e que todas as ausências serão lembradas
como puríssima promessa de encontro. Escrevo-te
também e sobretudo para que as palavras não morram e
para que possamos escrever um para o outro
imaginando a provisória eternidade de nós dois.
Escrevo-te por isso tudo e mais tantas outras
palavras que vou te escrevendo aos poucos.
Escrevo-te porque não sei, não sei o quanto te amo,
tu que és anônima, tu que mal existes como eu e que
te tornas tão presente quando escrevo para ti que
também me fazes presente com um certo alento, com
uma lenta caligrafia que invento, com um certo além
de sentidos para quem me entrego buscando acreditar
que as palavras existem para te escrever.
(*)
Jorge Miguel Marinho é escritor e
professor de literatura brasileira.
jmm13@terra.com.br
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