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... Não imaginava encontrar tão cedo outro livro capaz de me segurar madrugadas adentro, como aconteceu com o Klemperer. Pois tive sorte: encontrei dois.

LIVROS DE CABECEIRA
  Eustáquio Gomes (*)
Josélia Aguiar, editora da revista Entrelivros, prepara um livro sobre os ‘dez mais’ da predileção de uns quantos autores. Fui instado a fazer minha lista. Ei-la: O estrangeiro, de Albert Camus; o Diário de Franz Kafka; A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói; O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar; Quincas Borba, de Machado de Assis; Memórias, sonhos, reflexões, de Carl Jung; A educação sentimental, de Flaubert; Os diários de Victor Klemperer, de Victor Klemperer; Paris é uma festa, de Ernest Hemingway; Trópico de Câncer, de Henry Miller.

Instigado pela provocação da Josélia, deu-me vontade de reler os diários de Klemperer, um dos tais que eu levaria para a ilha deserta. É um tijolo de quase 900 páginas que se lê com prazer e angústia, sentimentos nada incompatíveis, pois para narrar sua tragédia descomunal o autor se serve de uma linguagem mais que bela: despojada. Victor Klemperer (1881-1960), judeu-alemão, mais alemão que judeu, filólogo e homem do mundo, fez das tripas coração durante o tenebroso reinado de Hitler (1933-1945). Desalojado de seu posto na universidade de Dresden, foi posto para fazer trabalhos manuais em fábricas, e em certa ocasião teve de ajudar a remover a neve das ruas do próprio campus onde ensinava literatura francesa, sob o olhar constrangido dos colegas de cátedra. Tinha já mais de 60 anos.

O heroísmo de Klemperer não estava na coragem, mas na resistência silenciosa e tenaz a um governo de assassinos. Incapaz de afrontar os capacetes de aço, travou uma guerra particular com a história, jurando deixar seu depoimento para a posteridade. Os diários causaram grande impacto quando publicados na Alemanha em 1995. No Brasil apareceram em 1999, em bem cuidada edição da Companhia das Letras. Um livro de Klemperer não traduzido no Brasil, o clássico Linguagem do Terceiro Reich, é uma das obras de cabeceira de Roberto Romano, possivelmente o maior filósofo brasileiro vivo, que o lê diretamente em alemão.

Não imaginava encontrar tão cedo outro livro capaz de me segurar madrugadas adentro, como aconteceu com o Klemperer. Pois tive sorte: encontrei dois. No começo deste ano descobri os diários de José Carlos Oliveira (Diário selvagem, Civilização, 2005). O cronista Carlinhos Oliveira, que viveu apenas 51 anos (levou-o uma pancreatite em 1986), também travou sua batalha particular, não num gueto, mas nos bares de Ipanema. Para quem sonhava ser o maior escritor brasileiro (“maior que Machado de Assis”), escreveu obra curta e desigual. Mas levou vida intensa e neurótica, o que não constituiria vantagem alguma não tivesse ele registrado com minúcia o seu drama cotidiano. Talvez possa ser colocado ao lado de Lima Barreto e João Antônio.

O outro livro tem por título O nariz do morto (Civilização, 2006), uma espécie de autobiografia da alma, da alma de Antonio Carlos Villaça (1928-2005), autor que me soava cult mas não indispensável. Estava enganado. Trata-se de obra-prima. Livro soberbo, livre, desataviado e centrado na busca íntima. Rico de humanidade. Dos mais envolventes que li nos últimos anos, uma história de transe pessoal, sincera e pródiga, corajosa mesmo, qualidades que só encontrei nuns poucos, por exemplo em Henry Miller e em Klemperer. O nariz me foi enviado pelo crítico André Seffrin, que conviveu com Villaça nos últimos anos da vida deste, no Rio de Janeiro. Villaça morreu num asilo, pobre e magro, ele que foi gordo a vida toda. “Era totalmente inábil para a vida prática, só sabia escrever e falar”, me conta Seffrin. “Era incapaz de trocar lâmpada”.

Outros livros que li recentemente e me marcaram: Amor e lixo, do tcheco Ivan Klima, Longe daqui, aqui mesmo, de Antônio Bivar (o nosso Jack Kerouac), Carta a D., de André Gorz (magnífico), A viagem vertical, do espanhol Enrique Vila-Matas, e, de J.M. Coetzee, talvez o grande romancista de nossa época, li de uma enfiada três livros: Vida e época de Michael K., Elizabeth Costello e O mestre de Petersburgo. Teria imenso prazer de falar sobre cada um deles, mas fica para outra ocasião.
 

 

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