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A LEITURA ENQUANTO PRÁTICA CULTURAL E SOCIAL
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Soraia Gontijo
Maia
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RESUMO:
A leitura tem de ser tomada como uma prática
social e, por isso mesmo, é submetida aos
condicionantes histórico-culturais para a
sua aprendizagem e promoção. Outrossim, as
concepções de leitura devem ser levadas em
consideração quando de uma reflexão sobre as
possibilidades de dinamização da leitura
numa sociedade
Palavras-chave: Leitura, História,
Cultura
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ABSTRACT:
The act of reading has to be taken as a
social practice and, because of that,
suffers the determination of historical and
social factor for its learning and promotion.
Likewise, the definitions of reading have to
be taken into consideration when one
reflects upon the possibilities of reading
in society.
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Key words:
Reading, History, Culture
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A
concepção de livro e de literatura que nós temos é
reforçada quando consideramos o papel da escrita nas
sociedades modernas, ou seja, a partir do século XV,
com o advento da burguesia, o crescimento das
cidades, a organização dos estados nacionais e a
invenção da imprensa. Passa a ser relevante então
percebermos que a importância do livro deve ser
historicizada e a escrita precisa ser
desmistificada, tendo o seu valor relativizado de
acordo com o seu uso - ou não - pelas variadas
culturas.
O livro passa a ser entendido
como sendo um produto cultural ativo, integrado ao
sistema de trocas da comunidade, desde a sua criação
até seu consumo, levando-se em conta as diferentes
formas de mediação da leitura, que interferem sobre
a quantidade, o gosto, o interesse e o comportamento
do leitor. Assim, o livro tem suas funções mais
abrangentes, uma vez que está presente no cotidiano
e nas práticas sociais e culturais.
Segundo Chartier (1996),
Entre as leis que modelam a
necessidade ou a capacidade de leitura, as da escola
estão entre as mais importantes, o que coloca o
problema, ao mesmo tempo histórico e contemporâneo,
do lugar da aprendizagem escolar numa aprendizagem
da leitura, nos dois sentidos da palavra, isto é, a
aprendizagem da decifração e do saber ler em seu
nível elementar e, de outro lado, esta outra coisa
de que falamos, a capacidade de uma leitura mais
hábil que pode se apropriar de diferentes textos.
Pois bem, cabe à escola como
instituição inserida na cultura e fruto de uma
história, a dupla função com relação ao ato de ler.
Funções estas necessárias e indispensáveis ao mundo
contemporâneo no qual estamos inseridos. Mudam-se os
contextos sociais e mudam-se também as formas de
ler. Nos séculos XVII e XVIII, nos meios urbanos,
circulavam entre as pessoas, leituras coletivas,
manipuladas e interpretadas por aqueles que
dominavam o código escrito; situação bem diferente
da que encontramos nas sociedades modernas, onde
predomina a leitura individual. De acordo com
Bourdieu (1996),
Historicizar nossa relação com
a leitura é uma forma de nos desembaraçarmos daquilo
que a história pode nos impor como pressuposto
inconsciente. O que considero como leitura é produto
das condições nas quais tenho sido produzido
enquanto leitor. E refletir historicamente sobre o
meu conceito de leitura é talvez a única chance que
tenho de escapar ao efeito dessas condições.
Nos diz ainda Chartier (1996,
p.251):
A pergunta histórica sobre o
livro deve atuar sobre dois registros. Um remete
para a questão da análise e da pragmática dos
textos, da análise das formas retóricas, do estudo
literário. E o outro remete para um saber mais
técnico, o da história do livro, da bibliografia
material, da história da tipografia. Creio que, de
seu cruzamento poderá nascer uma reinterrogação do
objeto-livro em função dos problemas que colocamos
hoje.
Do ponto de vista histórico da
leitura, faz-se pertinente fazer um estudo sob estas
duas perspectivas apontadas, pois desta forma
compreende-se mais amplamente o suporte livro como
parte de um contexto sócio-cultural, presente nas
várias épocas e camadas sociais com as mais variadas
formas de uso.
À
história da leitura se impuseram dois objetivos
fundamentais: estabelecer as correlações entre
pertencimento social e produção cultural, e
identificar objetos (ex. textos e impressos)
próprios aos diferentes meios sociais. Pois os modos
de apropriação dos bens ou materiais culturais são,
tão ou mais distintos quanto a inegável distribuição
social desses próprios materiais. Esta constatação,
que tem valor geral, tem uma validade muito
particular no caso do impresso já que, nas
sociedades dos séculos XVI a XVIII, os materiais
tipográficos (no caso, o livro) parecem ter sido
mais largamente presentes e partilhados do que se
pensou por muito tempo. A circulação destes mesmos
objetos impressos é mais fluida – de um quadro
social a outro – do que sugeria uma divisão
sócio-cultural muito rígida, que fazia da literatura
erudita apenas uma literatura das elites e dos
livros ambulantes destinados apenas aos camponeses.
Roger Chartier, a partir da
investigação histórica nos coloca uma questão
central: "Nas aprendizagens da leitura, qual o peso
respectivo das estruturas perceptivas e cognitivas
do homem e dos condicionamentos histórica e
socialmente variáveis que regem as aquisições?" Uma
tal questão que, segundo ele, convida ao
aprofundamento do diálogo com psicólogos e
pedagogos. E parte da constatação que reconhece os
empregos múltiplos. Fora das relações com os textos,
do próprio termo da leitura.
A chamada “crise da leitura”
não surge como mera decorrência do mau funcionamento
do sistema cultural, mas como um aspecto de uma
crise que, além de cultural, é também social e
política.
Edmir Perrotti, em seu livro -
Confinamento cultural, infância e leitura - nos diz
que “as propostas do 'pacto da leitura' enfrentam
vários e difíceis dilemas decorrentes das condições
de infra-estrutura cultural, por outro lado
encontram também limites que vão além de questões
técnicas e administrativas e que dizem respeito ao
modo como as relações entre infância e cultura vêm
se desenvolvendo no mundo contemporâneo”. Daí a
difícil tarefa de se constituir um pacto da leitura,
uma vez que os limites são inúmeros e permeiam as
várias instâncias sociais.
Não precisamos atribuir à
leitura uma eficácia mágica, esta eficácia, nos diz
novamente Bourdieu (1996), supõe condições de
possibilidade.
Desse modo, sem questionar as
condições culturais a que está submetida a criança,
sem relacionar a promoção da leitura a tais
situações, parece difícil criar condições que
facilitem a descoberta de pontes entre leitura e
cultura, ou seja, entre leitura e o universo de
relações, valores, objetos e concepções de um mundo
pós-moderno. Num mundo onde surgem novos suportes
como a Internet, os e-books, os textos fragmentados
dos sites, os chats e outros modos de ler, como se
estabelecem as relações de autoria, de coesão
textual, e de outras relações presentes nesses novos
modos de ler?

Pensamos então que esses novos
tipos de leituras não substituem os modos e suportes
tradicionais, mas sim passam a conviver e fazer
parte das práticas culturais das pessoas no mundo
pós-moderno.
Podemos pensar também nas três
instâncias onde se dá essa mediação da leitura, que
são: a família, a escola e a biblioteca e indagarmos
qual o papel de cada uma nesta apropriação do
escrito, seja impresso ou não.
Quando tratamos dos três
segmentos sociais que envolvem o ato da leitura, que
são: a escola, a biblioteca e a família, podemos
refletir um pouco sobre o que nos diz Silva (1986,
p.47):
“Certamente que cada um de nós
desenvolveu, ao longo do seu trajeto de vida, uma
determinada concepção de leitura. Possuímos
explícita ou implicitamente, uma definição de “ler”
em função de uma prática que executamos, em função
de experiências vividas em sociedade. Essa concepção
ou definição surge de nossa convivência social com
outros homens e, mais especificamente, de situações
vividas dentro daquelas instituições onde o livro e
a leitura se fazem mais diretamente presentes
(escola, biblioteca e família).”
Essas três instâncias estão presentes na formação do
sujeito leitor, deixando suas marcas nos seus modos
de ler e se apropriar dos materiais impressos.
Quando encontramos numa
família determinados tipos de leituras realizadas
habitualmente por alguns de seus membros, seja a
mãe, o pai ou algum irmão mais velho, podemos
perceber características leitoras semelhantes nas
crianças mais novas desta mesma família. Se o pai,
por exemplo, tem uma concepção de leitura como
lazer, diversão, as crianças tendem a imitá-lo,
escolhendo textos que lhe proporcionem prazer,
diversão. Já se a mãe gosta de ler textos poéticos,
literários, algum dos filhos, pode também ser
influenciado por suas leituras. Enfim, em se
tratando de concepções de leituras familiares
diferenciadas, temos também crianças com concepções
leitoras variadas em outros espaços que não seja o
da família, como na escola e na biblioteca, por
exemplo.
Percebemos essas variações de
concepções de leitura que têm as crianças, quando
temos a oportunidade de observá-las em suas práticas
leitoras no espaço da biblioteca, especialmente, na
Infanto-Juvenil, lugar destinado a elas. E quanto
mais à vontade elas estejam, mais deixam
transparecer suas concepções de leitura, seus
valores diante da cultura escrita, seus interesses e
apatias aos materiais impressos. Concepções essas
que não deixam também de sofrer influências da
escolarização. Não cabe a nós aqui, julgarmos essa
escolarização da leitura e sim tentar conhecê-la um
pouco melhor, pois estamos lidando com as práticas
leitoras das crianças advindas de uma instância
muito presente no cotidiano dessas crianças que é a
escola. O fato é que não podemos desconsiderar a
escola quando tratamos das concepções que as nossas
crianças têm da leitura, mesmo porque é a escola
sim, juntamente com a família ou não, da melhor
forma ou não, quem impulsiona o leitor ao escrito,
através de suas mais variadas facetas, seja pelas
múltiplas disciplinas e conteúdos escolares, seja
pelas pesquisas, pelos livros indicados, seja por
meio das atividades desenvolvidas nas classes e fora
delas, pelos livros didáticos, por meio das horas
dos contos e atividades de leitura realizadas no seu
contexto.
E para muitas crianças a
escola talvez seja a única instância onde elas têm
contato com materiais impressos. Parece ser absurda
ser feita essa afirmação em plena era digital, mas
sabemos que em nosso país encontramos essa
realidade. Famílias onde nem mesmo são atendidas as
necessidades básicas de higiene, moradia, saneamento
e habitação, o que podemos dizer do acesso a
materiais impressos?
Podemos citar algumas
iniciativas governamentais no sentido de facilitar o
acesso a materiais impressos, seja na escola ou na
família.
A partir de 1995, o Governo
Federal, através do MEC lança o PNLD - Programa
Nacional do Livro Didático, programa através do qual
as crianças têm os livros didáticos gratuitamente
nas escolas públicas de todo o país e ao final do
ano letivo, podem levar os seus livros para casa. O
MEC passa então a desenvolver e executar um conjunto
de medidas para avaliar sistemática e continuamente
o livro didático brasileiro. Essa iniciativa
contribui para o acesso de famílias a materiais
impressos, pois sabemos que muitos pais gostam de
ler os textos dos livros didáticos de seus filhos.
Com a implantação do PNBE –
Programa Nacional Biblioteca Escolar, também pelo
MEC, muitas escolas e crianças tiveram acesso a
livros de literatura de boa qualidade. Depois então,
surge o Programa Literatura em minha casa, onde cada
aluno da 5ª série do 1º grau, recebe um KIT contendo
uma Coleção de doze livros de Literatura,
selecionados. Essa coleção seria então destinada ao
aluno, para ler em casa, com a família.
Para famílias que têm acesso a
materiais impressos com facilidade, talvez isso não
signifique muito, mas para muitas famílias de nosso
país, o aluno levar para casa uma Coleção dessas
pode significar muito sim. E sabemos que,
infelizmente, muitas escolas não deixaram que seus
alunos levassem suas coleções para casa, alegando
que poderiam estragá-las ou desperdiçá-las, ou que
precisavam destas para compor o acervo da biblioteca
escolar.
Em 2005, as escolas receberam
os acervos do PNBE, enviados pelo MEC. Esses acervos
são de Literatura Infantil e Juvenil de alta
qualidade, tanto no que se refere aos autores e
obras, como o material utilizado nas edições.
Acervos esses que estão nas escolas para serem
usados pelos alunos e professores.
Pois bem, e são destas mesmas
escolas que estamos falando, com suas concepções de
leitura, de literatura e de cultura escrita; com
seus sujeitos também com múltiplas concepções de
leitura, com múltiplos repertórios de leitores, com
múltiplas formações leitoras. Escolas essas que
também de maneira diferenciada formam os seus
alunos-leitores, freqüentadores das bibliotecas
escolares ou públicas, das salas de leitura, das
livrarias, das bancas de revistas e jornais, enfim,
também leitores de variados gêneros textuais, com
variados objetivos e motivações quando procuram e
selecionam um material escrito.
Quando pensamos nos novos
suportes de leitura, que já fazem parte do nosso
cotidiano há algum tempo, nos remetemos também à
questão da exclusão digital, da qual faz parte uma
grande parcela da população e de estudantes
brasileiros. Assim, indagamos ainda, como tornar a
cultura escrita acessível a todos, seja ela impressa
ou virtual?
Referências bibliográficas
BATISTA,
Antônio Augusto Gomes.
Recomendações para uma política de livros didáticos.
Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de
Educação Fundamental, 2001.
BOURDIEU, Pierre. In: Escritos de educação.
Capítulos VI, IX, X.. NOGUEIRA, Maria
Alice; CATANI, Afrânio. (Orgs.).
Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes,1998.
CHARTIER, Roger (Org.). A leitura: uma
prática cultural - Debate entre Pierre Bourdieu
e Roger Chartier. In: Práticas da Leitura.
Tradução: Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação
Liberdade, 1996
Perrotti, Edmir.
Confinamento cultural, infância e leitura.
São Paulo: Summus,1990.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Leitura e
realidade brasileira. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1986.
Soraia Gontijo
Maia. Graduação em Pedagogia pela UEMG,
especialização em Psicologia da Educação pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gee Gerais (2004). Atualmente atua na Rede
Municipal de Ensino de Divinópolis e em cursos de
formação de professores nos níveis de graduação e
aperfeiçoamento. Tem experiência na área de
Educação, com ênfase em Literatura e formação de
leitores, atuando principalmente nos seguintes
temas: leitura, cultura escrita, mediação, criança e
biblioteca.
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